- Notas prévias referentes a O Chalet da Memória - de Tony Judt -
O que fazer quando perdemos a capacidade de movimentos, a voz, a respiração e, ao mesmo tempo, temos um conhecimento profundo da sociedade, da política e da economia do nosso tempo, uma imaginação extraordinária e uma memória prodigiosa?!
Poderia bem ser esta a questão de partida que tolheu a vida ao historiador britânico, Tony Judt, quando em 2008 lhe foi diagnosticado a ELA - Esclerose Lateral Amiotrófica - (uma doença degenerativa), que acabou por o vitimar dois anos depois.
O que impressiona em Judt, é a forma interligada como encadeou factos da política, da sociedade e da economia - em contexto de guerra e pós-guerra - com as suas memórias pessoais, familiares e do seu universo de relações privadas. O que conferiu a este seu pequeno grande livro um testemunho simultaneamente privado e público de boa parte do séc. XX que, em muitos aspectos, ainda têm ressonâncias no nosso tempo.
Para tentar esquecer a sua dor e do fim que se anunciava, Judt encontrou uma solução: a minha solução tem sido percorrer a minha vida, os meus pensamentos, as minhas fantasias, as minhas memórias, evocações e coisas do género até deparar com acontecimentos, pessoas e narrativas que possa usar para desviar a minha mente do corpo em que está encerrado. Estes exercícios têm de ser suficientemente interessantes para captar a minha atenção e fazer-me supor uma comichão no ouvido ou no fundo das costas; mas também têm de ser suficientemente chatos e previsíveis para servir como prelúdio fiável e encorajamento para dormir. (pág. 26).
Noutra passagem, em que disserta sobre carros e da sua importância na vida de seu pai, dou comigo a pensar quantos carros já tive, de que marca, cor e durante quantos anos os tive e por referência a que acontecimentos e vivências com certas pessoas, entretanto desaparecidas pelo rolamento fatal da vida.
Refere a reputação dos carros italianos, bem desenhados, mas não os podiam construir; A Renault, dizia, estava desgraçada pela colaboração activa do seu fundador aos nazis. O Peugeot era uma marca respeitável, mais conhecida pelas bicicletas; os seus carros eram construídos como tanques e parecia que lhes faltava estilo, o mesmo se diria dos Volvos. Opiniões que as pessoas da minha geração também defendiam.
Este historiador, autor duma obra considerável da historiografia contemporânea, memoriza muitos outros assuntos e temas interessantes, relacionando-os de forma ímpar, por vezes de modo labiríntico, mas o que é de relevar foi a determinação revelada em continuar a trabalhar após lhe ter sido diagnosticada a ELA, o que ao fim de meses o deixou tetraplégico, facto que o obrigou a usar um aparelho para respirar.
Ora, sem se poder mexer, respirando com extrema dificuldade, privado da vox, restava apenas uma faculdade brutal que todos temos, uns de forma mais apurada do que outros: a memória. A ferramenta que focaliza coisas específicas e requer grande quantidade de energia mental, mas que se degrada muito com a idade. Tony Judt - já em condições de saúde precárias, ainda conseguiu reunir forças e talento para ligar pedaços da sua memória íntima, pessoal e familiar aos factos políticos, sociais e economicamente relevantes que ajudam a explicar o nosso tempo, num testemunho ímpar.
Podemos lembrar-nos do primeiro abraço, do primeiro beijo, de um café no jardim, de um refresco numa esplanada sobre o mar, de um cheiro deixado numa peça de roupa e o mais... Fazemos tudo isso com a nossa memória, de modo declarativo e de modo não-declarativo: naquele lembra-nos de que o facto A, B e C tiveram lugar, nesta percepcionamos como tudo isso se desenrolou.
Ou como diria um amigo, entre uma "cápsula do tempo" e um "comboio" - ele preferia sempre um zoom à própria vida a acompanhar com morangos..
Foi isso, com extrema coragem e dignidade, e superioridade intelectual, que Tony Judt fez e nos legou. Por isso aqui o evocamos e admiramos. Por isso fica.
Assim como ficam outras coisas e outras pessoas que partilham connosco ideias, opiniões, livros e impressões acerca desta breve passagem pela vida. A vida que nos foi dado viver.
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Etiquetas: Evocação de Tony Judt - historiador britânico e conhecedor profundo do séc. XX -