quinta-feira

A FORÇA prevalece sobre o Direito . O bio-poder




É notório que o poder soberano, em particular de alguns Estados (nucleares e com vocação revisionista), assume cada vez maior poder sobre a vida de cada um dos cidadãos e as organizações em geral. 

Nesse sentido, estamos perante um poder verdadeiramente assimétrico entre o Estado, por um lado, e as pessoas e as organizações, por outro. Se revisitarmos os escritos de Hannah Arendt e Carl Schmitt identificamos os contornos dessa teorização, a qual depois foi desenvolvida e aperfeiçoada pelo filósofo, teórico social, historiador das ideias e crítico literário Michel Foucault. Que identificou, como práticas de poder na sociedade moderna, uma mutação fundamental no modo como o poder soberano lida e passou a controlar a vida dos seus súbditos. 

A implicação prática desta histórica constatação, leva-nos a reconhecer que o Estado, especialmente os que observam a matriz autocrática (ex., Federação Russa), ou mesmo aquelas democracias pluralistas inspiracionais, mas que conhecem derivas autoritárias (EUA, com a administração Trump) - passaram a dispôr da vida e da morte dos seus cidadãos, assim como do confisco e da extorsão dos seus bens ou força de trabalho, e ainda por sobre eles exercer o reforço de medidas de controle e vigilância dos seus súbditos e da organizações que lhe são submetidas, como ilustra o caso chinês. Ou, mais surpreendentemente, as práticas de incitamento à violência por parte do atual locatário da Casa Branca, nos EUA, aquando do demolidor ataque ao Capitólio, numa exorbitante tentativa de golpe de estado constitucional, que ocorreu a 6 de Janeiro de 2021, após partidários do então presidente Trump terem sido por ele convocados a reunirem-se em Washington, D.C. a fim de protestar contra o resultado da eleição presidencial de 2020, justamente a data em que as duas câmaras legislativas se reuniram para ratificar a vitória do seu opositor, Joe Biden, que ganhou legitimamente as eleições. 

Fundada na (falsa) alegação de Trump, de que houve fraude nas votações, argumentava que o seu vice-presidente, Mike Pence e o Congresso rejeitassem a vitória do presidente eleito, Joe Biden. Felizmente, não teve sucesso. 

Mesmo que o objetivo do Estado não seja matar os seus cidadãos/súbditos, é lícito reconhecer que ele passou a gerir a vida de todos os seus aspetos, seja no plano produtivo ou da autonomia da sua vontade política, como uma forte possibilidade de causar a sua morte. Aliás, no ataque ao Capitólio, em 2021, houve numerosas mortes, e em que prostestantes/apoiantes do então presidente foram postos contra os próprios agentes policiais, cuja função era garantir a segurança da casa da democracia na América; na China, quem não obedece aos ditâmes emanados do Partido Comunista Chinês (PCC), seja por (alegadamente) violar a liberdade de expressão ou cometer "delito" de opinião, desaparece de cena e a família e os amigos nunca mais o vêem; ou no regime autocrático da federação russa, os súbditos não só têm acesso à informação do exterior ou qualquer liberdade de expressão ou de opinião, como são recrutados compulsivamente para a guerra. Neste conjunto de casos, é fácil concluir que o Estado, de forma sistemática, investe contra a vida  dos seus cidadãos/súbditos, sujeitando populações inteiras, algumas das quais são obrigadas a abandonar as suas terras e, assim a converterem-se em deslocados de guerra e a viver em condições humanamente miseráveis. 

Foi, aliás, a este conjunto de restrições dos direitos básicos das populações que Michel Foucault designou o conceito de "bio-poder. Na verdade, Foucault adoptou este conceito específicamente às novas práticas que emergiram no Ocidente a partir do séc. XVII, ao passo que aqui pretendemos aplicá-lo à inclusão da vida diária dos cálculos do poder estatal na sua relação corrente com os seus cidadãos/súbditos no quadro da história contemporânea. 

Esta parece ser uma lógica de compreensão que abre a porta para o entendimento da atualidade política, em que a vida das pessoas está cada vez mais dependente dos inputs dos estados e dos seus contextos de guerra no quadro das relações internacionais. 

A vida das pessoas e das organizações, seja na Europa Ocidental, seja na Europa de Leste e Rússia, tem vindo a ver reforçadas as assimetrias entre o poder soberano e a vida miseravelmente desumana das respetivas populações. Em rigor, o Ocidente tem vindo a agravar esse desnível, pois o soberano, na definição do jurista, filósofo e teórico político alemão (e membro proeminente do partido Nazi) Carl Schmitt (1888-1985), é o que decide sobre o estado de excepção, que é uma figura complexa, porquanto está simultaneamente dentro e fora do ordenamento jurídico, que demonstra que o indivíduo está, verdadeiramente, dependente da vontade do soberano, que dele dispõe como quer, apesar da existência de um ordenamento jurídico que, supostamente, deveria zelar pelos excessos do poder que acabam por limitar ou condicionar o exercício dos seus direitos essenciais. 

No limite, e como corolário lógico do exposto, quando os estados matam algum dos seus cidadãos/súbditos o(s) autor/res desses actos não poderiam ser responsabilizados por tais mortes. O caso extremo desta assimetria de poder foi a criação do campo de concentração, em que o Estado alemão reclamou para si a possibilidade de fazer experiências com súbditos seus a quem não reconheciam qualquer direito e a quem eram retirados todos os seus bens. Os judeus morriam sem direitos e despojados de todos os seus bens. De forma mais atenuada, alguns daqueles exemplos encontram-se hoje replicados nos campos de refugiados para imigrantes clandestinos na Itália, ou nas zonnes d´attente dos aeroportos franceses, ou ainda nos campos de estupro étnico da antiga Jugoslávia ou, mais genericamente, a corroborar a ideia central desta reflexão política, na relação desigual dos cidadãos/súbditos que se encontram totalmente à mercê da vontade e discricionariedade do poder do soberano. 

Perante estas evidências históricas, que não emanam apenas dos poderes autocráticos, de que a China e Federação Russa são paradigmas invertidos e negativos da contemporaneidade, temos hoje sinais preocupantes de que nos EUA, com esta administração de empresários e de negociantes, que pretendem destruir o Estado por dentro e fazer negócios à custa dele e enriquecer as suas elites, os cidadãos se encontram hoje cada vez mais desprotegidos dos seus estados, que supostamente os deveriam defender e representar, e não subjugá-los num permanente estado de excepção em que o soberano os coloca. 

Sendo este um perigo existente no passado, em que o Estado nunca abdicou das suas prerrogativas respaldadas nas estruturas de coação sobre a sociedade, quer por via do ordenamento jurídico, quer pelo uso bruto ou seletivo da força, os sinais que temos pela frente revelam quão desprotegidos hoje se encontram os cidadãos e as sociedades civis a Ocidente e a Oriente desta Velha Europa que, presentemente, tenta desesperadamente encontrar um caminho de salvação entre o abandono da solidariedade transatlântica, e a força bruta projetada sobre a Europa a partir da autocracia russa. 

E a equação desta proposição acaba por ilustrar a ideia de que a força tem submergido completamente o direito no quadro das relações internacionais contemporâneas.