quinta-feira

Aniversário - por Fernando Pessoa -


Resultado de imagem para fernando pessoaAniversário

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, 
Eu era feliz e ninguém estava morto. 
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos, 
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer. 

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, 
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma, 
De ser inteligente para entre a família, 
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim. 
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças. 
Quando vim a.olhar para a vida, perdera o sentido da vida. 

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo, 
O que fui de coração e parentesco. 
O que fui de serões de meia-província, 
O que fui de amarem-me e eu ser menino, 
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui... 
A que distância!... 
(Nem o acho... ) 
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos! 

O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa, 
Pondo grelado nas paredes... 
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas), 
O que eu sou hoje é terem vendido a casa, 
É terem morrido todos, 
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio... 

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos ... 
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo! 
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez, 
Por uma viagem metafísica e carnal, 
Com uma dualidade de eu para mim... 
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes! 

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui... 
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos, 
O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado, 
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa, 
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos... 

Pára, meu coração! 
Não penses! Deixa o pensar na cabeça! 
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus! 
Hoje já não faço anos. 
Duro. 
Somam-se-me dias. 
Serei velho quando o for. 
Mais nada. 
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira! ... 

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!... 

Álvaro de Campos, in "Poemas" 
Heterónimo de Fernando Pessoa 
__________________________________________________

Etiquetas: , ,

quarta-feira

Notas triunfantes de Fernando Pessoa


Será que Fernando Pessoa sabia que seria reconhecido ao tempo em que viveu e escreveu?! 

- Na maior parte dos seus escritos, alguma produção parece predizer que não. Contudo, em 1912, quando faz a sua estreia como escritor, designadamente através - não dos seus poemas - mas de crítica sociológica à nova poesia portuguesa, em que Pessoa analisa a história literária, social e política da Inglaterra e da França para demonstrar, por analogia, que Portugal - dada a sua conjuntura - se encontrava no limiar de uma época gloriosa da sua literatura, na qual apareceria "fatalmente" um "Grande Poeta", o qual remeteria para "segundo plano" a figura, até então, proeminente, de Camões. 

- Esse grande poeta seria, naturalmente, Fernando Pessoa. Na prática, e sem falsas modéstias, Pessoa sabia que seria reconhecido, e até tirou prazer intelectual dessa antevisão. Nolivro do Desassossego lemos o seguinte: 

(...) o prazer da fama futura é um prazer presente - a fama é que é futura. Eu que na vida transitória não sou nada, posso gozar a visão do futuro a ler esta página, pois efectivamente a escrevo; posso orgulhar-me, como de um filho, da fama que terei, porque, ao menos, tenho com que a ter

- Com efeito, Pessoa tinha a precisa noção que não era apenas um poeta, ou mais um entre muitos, pois em 1912, ele ainda não escrevera nada que o pudesse definitivamente catapultar. Mas sentia que o seu génio criador, após estudo aprofundado das literaturas e culturas de várias línguas, países e tendências, estava prestes a dar frutos. 

- Esta noção do valor que Pessoa tinha da sua própria capacidade literária e cultural contraria, por um lado, a opinião generalizada de que ele não se tinha em grande conta e, por outro lado, ajuda a fixar a noção de que o pensador genial que foi Pessoa pressentia que a sua obra, mais cedo ou mais tarde, seria reconhecida e o colocaria ao nível dos grandes entre os grandes das letras de Portugal com vocação universal. 

- Eis o que justamente veio a suceder. 

____________________


Etiquetas: ,

segunda-feira

Fernando Pessoa

Nota prévia: Original em Pessoa não é a sua poesia, mas a dimensão psico-filosófica, clínica, histórica, cultural e civilizacional que ele empresta aos seus pensamentos e reflexões. Duma futilidade mundana, Pessoa é capaz de a converter num pedaço de reflexão densa; dum poema banal, Pessoa projecta-lhe mundo; dum raciocínio complexo, Pessoa desmantela-o, como quem desmonta um motor dum carro velho, peça a peça, arrumando-as todas no sótão da sua oficina - onde também guarda a sua prosa, tão boa como a sua poesia. 

- E Pessoa é isto: singular, plural, complexo, problemático. Pessoa é nós; nós estamos encerrados nele, nas sua genialidade e contradições. Por isso o amamos, por isso dele não conseguimos escapar. Trazêmo-lo no bolso do pensamento. Vestimos as "suas cuecas" diariamente, na esperança de engravidarmos com algum do seu talento e dar à luz alguma prosa ou poesia. 

- Eu disse cuecas, mas também podia ter dito "lentes", embora fosse mais fácil usar aquelas do que recuperar estas. No fundo, necessário é criar...
____________



Tenho Tanto Sentimento

Tenho tanto sentimento 
Que é frequente persuadir-me 
De que sou sentimental, 
Mas reconheço, ao medir-me, 
Que tudo isso é pensamento, 
Que não senti afinal. 

Temos, todos que vivemos, 
Uma vida que é vivida 
E outra vida que é pensada, 
E a única vida que temos 
É essa que é dividida 
Entre a verdadeira e a errada. 

Qual porém é a verdadeira 
E qual errada, ninguém 
Nos saberá explicar; 
E vivemos de maneira 
Que a vida que a gente tem 
É a que tem que pensar. 

Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"
____________________________________

Etiquetas:

terça-feira

Poema em linha reta Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)





E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.


Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...


Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,


Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?


Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?



Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

___________


Etiquetas: , ,

domingo

Omnipresença - de Pessoa para o Mário -



Omnipresença

O poeta,
ente solitário,
senta-se à mesa do café.


Fica pensando,
fumando
seu cigarro proletário.

Da cinza,
cai o poema.
Do fumo,
evola-se o Mário!

________

____

__

Etiquetas: , ,

segunda-feira

Da Existência de Deus - por Fernando Pessoa -



Da Existência de DeusOs argumentos relativos ao problema da existência de Deus têm sido viciados, quando positivos, pela circunstância de frequentemente se querer demonstrar, não a simples existência de Deus, senão a existência de determinado Deus, isto é, dum Deus com determinados atributos. Demonstrar que o universo é efeito de uma causa é uma coisa; demonstrar que o universo é efeito de uma causa inteligente é outra coisa; demonstrar que o universo é efeito de uma causa inteligente e infinita é outra coisa ainda; demonstrar que o universo é efeito de uma causa inteligente, infinita e benévola outra coisa mais. Importa, pois, ao discutirmos o problema da existência de Deus, nos esclareçamos primeiro a nós mesmos sobre, primeiro, o que entendemos por Deus; segundo, até onde é possível uma demonstração.
O conceito de Deus, reduzido à sua abstração definidora, é o conceito de um criador inteligente do mundo. O ser interior ou exterior a esse mundo, o ser infinitamente inteligente ou não — são conceitos atributários. Com maior força o são os conceitos de bondade, e outros assim, que, como já notamos têm andado misturados com os fundamentais na discussão deste problema. 
Demonstrar a existência de Deus é, pois, demonstrar, (1) que o universo aparente tem uma causa que não está nesse universo aparente como aparente (2) que essa causa é inteligente, isto é, conscientemente activa. Nada mais está substancialmente incluído na demonstração da existência de Deus, propriamente dita. 
Reduzido assim o conteúdo do problema às suas proporções racionais, resta saber se existe no raciocínio humano o poder de chegar até ali, e, chegando até ali, de ir mais além, ainda que esse além não seja já parte do problema em si, tal como o devemos pôr. 

Fernando Pessoa, in 'Ideias Filosóficas'



















_______________

Obs: Medite-se nesta arrumação metodológica com que Fernando Pessoa coloca o assunto. Primeiro, definir o objecto: o que se entende por Deus; depois especular sobre essa existência. 
A esta luz, creio que não será abusivo afirmar que muita da poesia e prosa de Pessoa foram claras manifestações dessa perfeição na terra, e essa também poderá ser uma forma de equacionar Deus - na terra. 
Um dos grandes problemas nesta equação difícil resultou do facto de a Igreja Católica ter erigido em dogma que a existência de Deus pode ser demonstrada pela via racional. 
Ora, essa existência é, consabidamente, mais uma existência em matéria de fé, e não de demonstrabilidade racional, como se de uma experiência química ou física se [conseguisse] provar em laboratório. 
Há muitas confusões que se evitariam se apenas as deixássemos no domínio donde elas nunca deveriam ter saído... O que pressupõe algumas doses industriais de tolerância que nem sempre o homem, sobretudo o mais dogmático, está disposto a assumir. E depois mete-se num sarilho (teológico) do qual é incapaz de sair, porquanto as forças, as incertezas e as incógnitas que o envolvem nessa prova são tão complexas que as respostas ficam sempre por dar.
É assim há milhares de anos, e continuará a sê-lo por muitos anos, ainda que não percamos o gosto pela actividade especulativa, no fundo um traço que nos distingue dos macacos. 

______________

Etiquetas: ,

terça-feira

Dedicada ao RETIFICANTE - A Mentira Está em Ti -


A Mentira Está em Ti
"Olá, guardador de rebanhos, 
Aí à beira da estrada, 
Que te diz o vento que passa?" 

"Que é vento, e que passa, 
E que já passou antes, 
E que passará depois. 
E a ti o que te diz?" 

"Muita cousa mais do que isso. 
Fala-me de muitas outras cousas. 
De memórias e de saudades 
E de cousas que nunca foram." 

"Nunca ouviste passar o vento. 
O vento só fala do vento. 
O que lhe ouviste foi mentira, 
E a mentira está em ti." 

Alberto Caeiro, in "O Guardador de Rebanhos - Poema X" 
Heterónimo de Fernando Pessoa

Etiquetas: ,

segunda-feira

Evocação de Fernando Pessoa -

Falaram-me os Homens em Humanidade
Falaram-me os homens em humanidade, 
Mas eu nunca vi homens nem vi humanidade. 
Vi vários homens assombrosamente diferentes entre si. 
Cada um separado do outro por um espaço sem homens. 

Alberto Caeiro, in "Fragmentos" 
Heterónimo de Fernando Pessoa

Tema(s): Humanidade ______________________

Etiquetas: ,

quinta-feira

José Paulo Cavalcanti Filho.Li dez ou doze vezes as 30 mil páginas de Pessoa



Começou a fumar charutos quando o pai morreu, para trazê-lo sempre consigo, embrulhado no aroma de uma memória remota. Nem por acaso, foi nos versos da “Tabacaria” que em 1966 encetou outro vício. Um prazer obsessivo chamado Fernando Pessoa, amigo, parceiro íntimo, até fantasma, que jura ter avistado no Chiado. Ao longo de oito anos, visitou Portugal 30 vezes em busca de um autor que deixou escrito o equivalente a 60 livros com 500 páginas. Leu-o de uma ponta à outra, várias vezes. Colecciona tudo o que o deixam comprar. E chegou a ir a França, tentar levantar a urna de Mário de Sá-Carneiro em busca de cartas. Um brasileiro apaixonado pelo escritor e pela sua cidade. “Gostámos tanto que acabei comprando um apartamento em Lisboa. Já tenho conta no banco, sou sócio do Grémio Literário, da Biblioteca Nacional. E estou a seis horas e meia do Brasil.”, jornal i

Sei que ainda não foi hoje [ontem] que conseguiu comprar a mesa de Fernando Pessoa no Martinho da Arcada.

Não [risos]. Estou tentando fazer um museu particular, que provavelmente vou deixar para a Academia. Meus colegas vão saber o que fazer dele. Agora, tive a informação de que o Martinho estava para fechar e essa foi a primeira vez que voltei para ir lá falar com o dono para tentar comprar. Ele riu muito e disse que seria assassinado em hasta pública pelos portugueses se o fizesse.

Tem noção de quantas peças já tem?

Tenho várias edições originais da “Mensagem”, inclusive uma está toda anotada com a letra do Pessoa. Para minha sorte, as pessoas compram os livros, botam na estante e não abrem para ler. Senão o preço teria triplicado. Tenho edições dos sonetos, os manifestos originais, todos os números de todas as revistas que dirigiu, as revistas como a “Águia” e a “Presença”, praticamente todos os jornais e revistas em que escreveu, todos os livros que a editora dele, a Olissipo, produziu.

E objecto pessoais, como os óculos.

Sim, e a colecção de selos, papéis em que anotava nomes, cartões postais, fotos. Estou também alargando isso para pessoas próximas dele. De Eça de Queirós, tenho as 31 edições originais dos livros. De D. Sebastião, que era uma presença na vida dele, tenho a carta escrita à prima no ano de 1578, em que supostamente morreu. Cartas de D. Carlos e D. Amélia. Forma um universo grande que não será para os meus filhos.

Que acham eles disso?

Não têm que achar nada. Eu já avisei que o destino é outro. Essas coisas são feitas para servir a colectividade. Por exemplo, estamos doando um exemplar do livro a cada uma das 589 bibliotecas públicas de Portugal. Não quero direito autoral, não fiz isto para ganhar dinheiro.

E no entanto já ganhou o prémio Bienal de Brasília, que acaba de sair.

Ao dinheiro nem sei o que vou fazer. Sinto-me constrangido de ganhar dinheiro com isso. Acho que Pessoa é uma pessoa importante de Portugal e sinto-me satisfeito que quem não possa comprar o livro possa ir à biblioteca e ler.

Descobre Pessoa em 66, através da voz de João Villaret.

Não sabia nem que existia João Villaret ou Pessoa. Fiquei aterrado. Já havia sentido isso duas vezes antes. Primeiro, quando toquei Bach. Até aos 13 anos estudei para ser maestro, sei tocar tudo. Quando toquei Bach pela primeira vez percebi que não era como os outros. Estou convencido que Deus, sentindo muito tédio da perfeição divina, resolveu viver uma experiência terrena e foi baptizado como Bach. A segunda vez em que tremi foi quando tomei conhecimento com o realismo fantástico da América latina lendo o “Cem anos de solidão”. O terceiro, foi a “Tabacaria”, de Pessoa, que acabou de ser escolhido como o maior soneto do século XX na Inglaterra. Só uma inteligência superior é capaz de fazer aquilo. Foi ali que conheci. Aconteceu uma coisa curiosa. O livro que eu queria ler do Pessoa não existia. Há livros escritos por especialistas, mas estava pensando nos jovens, donas de casas. Queria saber como era o homem Fernando Pessoa, qual era a tabacaria da “Tabacaria”. Escrevi o livro que queria ler, pensando em mim. Estava-me lixando para o que os outros pensavam. Não ia mudar nada.

Que disse a editora?

A editora disse-me que a tiragem média de Pessoa é de 1000 exemplares. Achava que se vendesse o dobro já podia levantar as mãos para o céu. Tudo bem, mas não escrevi para ser um best seller. Quatro meses depois de sair, tinha vendido 30 mil exemplares. E só vendi 30 mil porque eles não estavam preparados, senão ia vender 60 mil. Subestimaram a importância que Pessoa tem para o Brasil, muito mais que para Portugal. Segundo, as pessoas afinal têm o livro que sempre quiseram ler. Procurei a precisão humanamente possível. A partir de certa altura percebo que Pessoa só escrevia sobre o que tinha à volta.

Diz que era um autor sem imaginação.

É, a imaginação tem dois sentidos. Ninguém teve a capacidade de sonhar como Pessoa, uma imaginação não no sentido prosaico, mas no estilo de escrever. Outros escritores referem pedaços da vida, experiências sensoriais. Pessoa não fez isso de vez em quando, Pessoa foi tudo aquilo que escreveu. A obra de Pessoa é um testamento que ele esperou 70 anos para alguém desvendar. Só para ter uma ideia, ninguém conhecia um amigo de Pessoa chamado Esteves. Contratei historiadores e analistas para o encontrarem. Leram todas as edições do “Diário de Notícias” dos dois anos antes de “Tabacaria” para encontrar os Esteves citados. Cheguei a três que pelas idades, profissões e residências não eram com certeza eles. Só depois descobri, lendo o atestado de óbito de Pessoa, que era mais simples. O Esteves era o Joaquim Esteves, um vizinho amigo íntimo da família. Mas ninguém vai acreditar que li dois anos de jornais para procurar um Esteves. As pessoas aceitam as coisas como elas estão.

Podia vasculhar-se muito mais?

Duas cartas de Ofélia foram censuradas. Ninguém nunca se preocupou com o que lá estaria. Localizei-as e descobri que ela falava na pobreza extrema da família e de doenças femininas. Quando um erra todos erram atrás. Morreu de quê, por exemplo? Formei uma junta com os dez melhores médicos da minha região, mostrei-lhes os textos em que falava de saúde. Até que chegámos à causa da apendicite. Fiz juntas médicas com psicólogos e psicanalistas para saber se era louco. Tinha essa obsessão em ser o mais fiel possível.

Os portugueses interessam-se menos do que deveriam por Pessoa?

Talvez não tenham a devoção que o brasileiro tem, que não tem limitações para adorar Pessoa. Recebemos a obra e essa merece ser venerada. Vocês ainda estão presos a certas características de Pessoa. Ele pressentiu isso, que os génios só seriam compreendidos em gerações vindouras. Gostava da monarquia, depois defendeu a república, mostrou-se a favor da Alemanha, falou contra a igreja católica, falou contra o marxismo, apoiou Salazar, criticou Salazar. Nós só recebemos os textos dele. Na exposição “Plural como o Universo”, às dez da manhã de um dia de semana a fila dobrava o quarteirão. Ali na Gulbenkian não tem fila.

Levou oito anos a escrever o livro.

Mudei a minha vida. Foram quatro horas e meia por dia, sem excepções. Há dois tipos de pessoas. Os felizes e os desesperados. Os felizes marcam um prazo para acabar e acabam. Depois tem o grupo dos infelizes eternos. Não é que a gente queira ser melhor que os outros – mentira, a gente quer ser melhor que os outros – mas não aceitamos fazer menos do que somos capazes de fazer. Só acabei o livro quando senti que não podia fazer melhor. Mais de um ano foi só redacção. O computador ajuda, apesar de escrever à mão.

Escreveu o livro todo à mão?

Tudo à mão. Não sei usar computador. Como tenho muitas secretárias trabalhando para mim, tirei uma e disse que não ia trabalhar para o dono do escritório, que sou eu, mas que ia trabalhar para Pessoa. Eu redigia, ela passava ao computador. Hoje, essas versões são deste tamanho [descreve uma sala ocupada]. Tinha essa obsessão de não ter erros, escrevendo como Pessoa. Não uso vírgulas. Pessoa usa duas antes do ponto. Troquei a minha maneira de escrever. Se abrir o livro, tem muito mais Pessoa que eu e se uma pessoa não souber onde são as aspas não se sabe quem é quem.

Leu as 30 mil páginas que Pessoa escreveu?

Li, umas dez ou doze vezes, era só o que faltava que não lesse! E fiquei louco com esse versinho de Pessoa [tira do bolso um papel] que não se sabe quando escreveu, nem onde, ou para quem. Encontrei na Biblioteca Nacional. Estava inacabado e completei. Sou parceiro íntimo de Pessoa. Eu vi-o no Chiado. Minha mulher fica dizendo que era um sósia mas ela não entende nada de fantasmas. Claro que era ele. Toda a gente que se aproxima de Pessoa acaba amigo dele. Borges virou tão amigo que lhe pediu para ser mais um heterónimo e disse que metade do que escreveu depois foi Pessoa que lhe ditou do além.

Descobre neste livro mais 55 heterónimos do que os identificados.

Sim, embora não lhe dê muita importância. No fim da vida, Pessoa estava a preparar-se para abandonar os heterónimos. Percebeu que só escrevendo em seu nome teria o Nobel, que deveria fazer um livro de poesia com umas 400 páginas. Se tivesse vivido um ano mais, teria publicado um livro assim, imortal. Mas acho que o tratei com tanto respeito e cuidado que se estiver em algum lugar lá em cima deve estar orgulhoso de ter despertado tanta paixão em alguém.

Costuma pensar-se que Pessoa não viveu porque estava ocupado a escrever, afinal estava a escrever a vida dele?

Concordo inteiramente. Deve ter sentido muita nostalgia por não ter vivido a vida que os outros viveram. Casar, ter filhos, morrer e deixar saudades. Por outro lado, tinha plena consciência da qualidade dos seus textos e sabia que seria imortal. Isso deve dar imensa felicidade para o autor. Tinha a certeza que ganharia o Nobel.

Tem mais novidades previstas?

O ebook saiu em Janeiro. Vai ser lançado o audiobook. Quero fazer um documentário sobre Pessoa, mas algo para cima, não quero esse negócio depressivo. Recusei duas capas. Nos livros de Pessoa é sempre tudo para baixo. “Então vamos botar o nosso melhor capista”. Deviam ter colocado desde o começo. Tenho outro livro para sair em Outubro mas a editora proibiu-me de falar mais de Pessoa. Eu infelizmente obedeço. Quem manda em mim é a minha mulher e a seguir são os editores.


Secretária e máquina de escrever de Fernando Pessoa vendidas por 80 mil euros.

A secretária e a máquina de escrever do escritor Fernando Pessoa foram vendidas ontem à noite em leilão por 80 mil euros a um advogado e escritor brasileiro. A secretária e a máquina de escrever que Fernando Pessoa utilizou no seu local de trabalho foram ontem a leilão, em Lisboa. José Paulo Cavalcanti Filho, autor da obra "Fernando Pessoa: Uma Quase Biografia", arrematou a secretária por 58 mil euros e a máquina de escrever por 22 mil.[...] in DN

 

Obs: A minha 1ª reacção (talvez mais epidérmica) seria exclamar: que vergonha!!! Mas como José P. Cavalcanti estudou e escreveu sobre a vida e obra do génio português mais cosmopolita, contribuindo para divulgar a sua obra no mundo inteiro e valorizando alguns aspectos da sua biografia, a reacção inicial é temperada por uma nota mais resignada. Os mecenas nacionais andam todos agarrados à vida, e a poesia não é preocupação essencial nos tempos que correm.., ainda que alguns, poucos, pensem que basta um poema para salvar o mundo.



Etiquetas: ,

domingo

Portugal contemporâneo e Pessoa

Regressar a Pessoa é invocar a alma humana e o seu crónico fingimento na recorrente adaptação ao disfarce que pauta tão bem a representação política dos actores que têm destruído Portugal no último quarto de século deste nosso centrão que nos tem desgovernado desde 1974.
É regressar à heteronímia, qual descentralização de si que se adensa a emergência do inconsciente, com fascínio de oculto.
Entre a naúsea e a perda de qualidade de vida que esses actores políticos têm obrigado o povo português a atravessar nesta estrada de Damasco, com múltiplos erros, incompetência e gestão ruinosa da coisa pública à mistura, faz com que nos aproximemos, pela mão de Pessoa, da tal naúsea gerada hoje pela austeridade imposteira e empobrecimento estrutural a que o nosso escol dirigente tem conduzido o povo e o país.
Esta privação material e moral, agora imposta pela Troika vem reactualizar a obra de Pessoa, já que colocará aos portugueses problemas emergentes de identidade. Recriando neles, como cogumelos, novas necessidades de produzir um sentido para a vida e para a existência, sem o qual não se consegue interpretar o mundo a partir unicamente dos sentidos e das sensações que o paganismo de Alberto Caeiro nos legou pela mão de Pessoa.
Em segundo lugar, o ambiente recessivo e crísico do Portugal-político de Passos colho também esmaga os portugueses com a indiferença e cepticismo com que estes olham (desconfiados) para a classe política. O fenómeno já não é novo, vem de trás (bem de trás), mas agrava-se com Coelho, na medida em que nele se adensou tudo aquilo que se criticou em Sócrates: a mentira política institucionalizada - verificada num panfleto eleitoral logo desmentido quando o psd ganha as eleições e revela que, afinal, Passos coelho não conhecia os números do passivo em cada uma das áreas da governação, nem sequer estava preparado para a governação, daí a sua não hesitação em ter recorrido ao expediente da mentira política para prometer aquilo que sabia não poder cumprir a prazo. Eis a fase da dissimulação de Ricardo Reis que se apoderou do psd de Passos coelho - que hoje vive o dia-a-dia como se não houvesse amanhã, daí a sensação do drama da fugacidade da vida e da fatalidade da morte.
A fase de Álvaro de Campos deste governo, ou melhor deste país por força da acção deste Governo (e doutros que se lhe antecederam em abono da verdade), constata-se no decadentismo em que vivemos: um tédio, misto de cansaço, desesperança ainda que animado pela necessidade de buscar novas sensações que tirem do atoleiro em que o Portugal de cavaco, guterres, durão (santana foi um epifenómeno, por isso nem merece citação), sócrates e agora passos coelho inscreveram o Portugal contemporâneo. Que já nem energia tem para exaltar a força colectiva, fazer a apologia duma civilização emergente concebida e executada por portugueses. Ver os discursos de cavaco e Paulo portas nos EUA pedindo aos nossos emigrantes bem sucedidos que aportem ao rectângulo com novos investimentos, é entrar numa depressão ainda maior. É quase regressar ao Portugal pós-salazarento que pede agora aos seus filhos da diáspora aquilo que há 30/40 anos a pátria lhes negou. E, para esse efeito, Belém envia aos EUA o cobrador-do-fraque para entregar uns prémios aos seus filhos esquecidos, agora bem sucedidos, pedindo-lhes por favor que regressem. Eis a missão de cavaco: pedinchar investimentos áqueles a quem um dia a pátria literalmente expulsou. É deprimente assistir a tudo isto, confesso.
E é assim que Portugal hoje pauta a sua política externa, misto de sinceridade e fingimento, consciência e inconsciência, boa e má consciência, utopias, sonhos e pesadelos. Um quadro impressionista cujo ramalhete é composto por cavaco e Paulo portas, outrora inimigos viscerais, hoje reunidos no mesmo barco para pedinchar uns dólares aos emigrantes tugas que fizeram a diáspora.

Em face disto já não sei se ria, chore ou faça como fizeram Camilo, Herculano e Antero de Quental. Até porque já não existe exílio possível e o mundo já está todo descoberto nesta heteronímia que assassina a esperança de Portugal neste 1º quartel do séc. XXI.

Etiquetas: ,

Fernando Pessoa - plural - e o Tempo -

Vive, dizes, no presente;
Vive só no presente.
Mas eu não quero o presente, quero a realidade;
Quero as coisas que existem, não o tempo que as mede.
O que é o presente?
É uma coisa relativa ao passado e ao futuro.
É uma coisa que existe em virtude de outras coisas existirem.
Eu quero só a realidade, as coisas sem presente.
Não quero incluir o tempo no meu esquema.
Não quero pensar nas coisas como presentes; quero pensar [nelas como coisas].
Não quero separá-las de si-próprias, tratando-as por presentes. (...)

Etiquetas: ,

sábado

Evocação de Fernando Pessoa

Fernando Pessoa, Orpheu, C. Pessanha, Mário de Sá-Carneiro... e outros valores rimam com uma busca inquieta de um "outro" além do seu "eu" representado na consciência.
Lamentávelmente, o nosso universo político está eivado deste tipo de actuações que acabam por ferir o efectivo interesse público e o bem comum da comunidade. Mas é nessa trajectória que talvez valha a pena recordar um poema que reza assim:
Eu não sou eu nem sou outro
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.
Ou seja, em linguagem política corrente: aprove-se o OE para 2011 e dê-se a revisão constitucional ao Pedrinho.
Todos ficam a ganhar e poupa-se uma crise gravíssima ao país.

Etiquetas: ,

Fernando Pessoa, Amizade,

Fernando Pessoa
"Um dia a maioria de nós irá separar-se. Sentiremos saudades de todas as conversas atiradas fora, das descobertas que fizemos, dos sonhos que tivemos, dos tantos risos e momentos que partilhámos.
Saudades até dos momentos de lágrimas, da angústia, das vésperas dos fins-de-semana, dos finais de ano, enfim... do companheirismo vivido.
Sempre pensei que as amizades continuassem para sempre.
Hoje já não tenho tanta certeza disso. Em breve cada um vai para seu lado, seja pelo destino ou por algum desentendimento, segue a sua vida.
Talvez continuemos a encontrar-nos, quem sabe... nas cartas que trocaremos.
Podemos falar ao telefone e dizer algumas tolices... Aí, os dias vão passar, meses... anos... até este contacto se tornar cada vez mais raro.
Vamo-nos perder no tempo...
Um dia os nossos filhos verão as nossas fotografias e perguntarão:
- Quem são aquelas pessoas? Diremos... que eram nossos amigos e... isso vai doer tanto!
- Foram meus amigos, foi com eles que vivi tantos bons anos da minha vida! A saudade vai apertar bem dentro do peito. Vai dar vontade de ligar, ouvir aquelas vozes novamente...
Quando o nosso grupo estiver incompleto... reunir-nos-emos para um último adeus a um amigo. E, entre lágrimas, abraçar-nos-emos. Então, faremos promessas de nos encontrarmos mais vezes daquele dia em diante.
Por fim, cada um vai para o seu lado para continuar a viver a sua vida isolada do passado. E perder-nos-emos no tempo...
Por isso, fica aqui um pedido deste humilde amigo: não deixes que a vida passe em branco, e que pequenas adversidades sejam a causa de grandes tempestades...
Eu poderia suportar, embora não sem dor, que tivessem morrido todos os meus amores, mas enlouqueceria se morressem todos os meus amigos!"
Ao AG - um amigo do lado esquerdo do peito, como diria Kundera.

Etiquetas: ,

quarta-feira

Evocar Fernando Pessoa - nas essências e entranhas de Portugal -

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena
.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

Etiquetas: ,

domingo

Evocação de Fernando Pessoa e o seu "banqueiro anarquista"

É sempre útil recordar o imenso legado de Fernando Pessoa, o mais criativo poeta nacional de todos os tempos, alguém que compreendeu transversalmente a modernidade dos tempos, dos processos e o seu "Banqueiro Anarquista" representa essa espécie de conto metafísico que absorveu o autor e tem a vantagem de resumir hoje aspectos da nossa vida económica e financeira. Este regresso ao mix de praxis com o dever-ser da ética e da moral faz com que os nossos banqueiros sejam, hoje, pérolas do disfarce que procuram mitigar com inteligência, dissimulação e alguma lógica. Até que sobrevém o vazio das suas palavras, eis o que entendo após ler declarações de banqueiros do regime, nas suas máscaras mercantis e egocentricas que tentam ocultar o vazio que existe por detrás do dinheiro que os cerca. São pessoas que nunca chegam a conhecer o valor da amizade, dos amigos, dos homens, pois o cálculo do dinheiro atravessa sempre todas essas relações. Casam entre si, consolidam-se endogamicamente para aumentar a formação dos respectivos capitais, são meros comerciantes sem personalidade, ainda que tentem dar uma imagem pública de a ter, mas uma análise mais fina demonstra aquilo que verdadeiramente são: meros comerciantes com máscaras múltiplas que utilizam para cada momento. Ou melhor, a sua personalidade deve ser subordinada ao seu comércio, que está fatalmente condicionada ao seu mercado, e Pessoa, que era poeta, e publicitário nas horas vagas, topou bem estes cromos modernos que hoje funcionalizam boa parte da nossa vida económica, para o melhor e para o pior. Pessoa foi o maior banqueiro de todos os tempos, na medida em que a sua obra é hoje um activo, nunca nos criou dívida nem sacou comissões indevidas. Com ele alguns mestres do disfarce da alta finança em Portugal deveriam aprender algo, deixando cair as máscaras do costume que hoje qualquer observador atento e informado já topou à légua.

Etiquetas: ,