Da Existência de Deus - por Fernando Pessoa -
Da Existência de DeusOs argumentos relativos ao problema da existência de Deus têm sido viciados, quando positivos, pela circunstância de frequentemente se querer demonstrar, não a simples existência de Deus, senão a existência de determinado Deus, isto é, dum Deus com determinados atributos. Demonstrar que o universo é efeito de uma causa é uma coisa; demonstrar que o universo é efeito de uma causa inteligente é outra coisa; demonstrar que o universo é efeito de uma causa inteligente e infinita é outra coisa ainda; demonstrar que o universo é efeito de uma causa inteligente, infinita e benévola outra coisa mais. Importa, pois, ao discutirmos o problema da existência de Deus, nos esclareçamos primeiro a nós mesmos sobre, primeiro, o que entendemos por Deus; segundo, até onde é possível uma demonstração.
Demonstrar a existência de Deus é, pois, demonstrar, (1) que o universo aparente tem uma causa que não está nesse universo aparente como aparente (2) que essa causa é inteligente, isto é, conscientemente activa. Nada mais está substancialmente incluído na demonstração da existência de Deus, propriamente dita.
Reduzido assim o conteúdo do problema às suas proporções racionais, resta saber se existe no raciocínio humano o poder de chegar até ali, e, chegando até ali, de ir mais além, ainda que esse além não seja já parte do problema em si, tal como o devemos pôr.
Fernando Pessoa, in 'Ideias Filosóficas'
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Obs: Medite-se nesta arrumação metodológica com que Fernando Pessoa coloca o assunto. Primeiro, definir o objecto: o que se entende por Deus; depois especular sobre essa existência.
A esta luz, creio que não será abusivo afirmar que muita da poesia e prosa de Pessoa foram claras manifestações dessa perfeição na terra, e essa também poderá ser uma forma de equacionar Deus - na terra.
Um dos grandes problemas nesta equação difícil resultou do facto de a Igreja Católica ter erigido em dogma que a existência de Deus pode ser demonstrada pela via racional.
Ora, essa existência é, consabidamente, mais uma existência em matéria de fé, e não de demonstrabilidade racional, como se de uma experiência química ou física se [conseguisse] provar em laboratório.
Há muitas confusões que se evitariam se apenas as deixássemos no domínio donde elas nunca deveriam ter saído... O que pressupõe algumas doses industriais de tolerância que nem sempre o homem, sobretudo o mais dogmático, está disposto a assumir. E depois mete-se num sarilho (teológico) do qual é incapaz de sair, porquanto as forças, as incertezas e as incógnitas que o envolvem nessa prova são tão complexas que as respostas ficam sempre por dar.
É assim há milhares de anos, e continuará a sê-lo por muitos anos, ainda que não percamos o gosto pela actividade especulativa, no fundo um traço que nos distingue dos macacos.
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