As virtudes teologais - por Eurico Consciência
por Eurico Consciência -
Corre por aí uma anedota que quero pôr em letra de
forma, para tornar a gozar com ela, e não será por presumir que não há ninguém
que a ignore, não será por isso que deixarei de lhes contar que quando Deus fez
o mundo e os homens (entre os quais há hoje energúmenos que dizem que não foi
Deus que fez os homens, que os homens é que fizeram os deuses), adiante que se
faz tarde e pode varrer-se-me da memória a anedota que com grande aprazimento
e, para gozo dos que’inda a não sabem e alegre recordação dos que já a ouviram,
lhes quero contar; pois, como começara a dizer mas perdi-me, estava a dizer que
quando Deus fez os povos resolveu dar duas virtudes a cada um deles, virtudes
que os marcariam e distinguiriam per
saeculi saeculorum. Duas virtudes somente. Mas onde menos se espera surge o
Diabo a tecê-las, e Deus enganou-se e concedeu aos portugueses três virtudes em
vez de duas: os portugueses seriam inteligentes, honestos e políticos.
Reparou o S. Pedro, atento, no exagero mas, Deus, tu disseste que marcavas os povos
com duas virtudes e só com duas fadaste os restantes povos, mas abençoaste os
portugueses com três virtudes: inteligentes, honestos e políticos…
- Foi por descuido – atalhou Deus. Ando cansado.
Vamos lá corrigir isso. Toma nota: aos portugueses não retiro nenhuma das três
virtudes que lhes atribuí, porque os deuses são homens de palavra; mas cada
português só pode usar duas. Por isso, os portugueses podem ser inteligentes e honestos, ou políticos e
inteligentes, mas os portugueses honestos não podem ser políticos e os
políticos não podem ser honestos.
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Obs: É com gosto que republico aqui a boa prosa do decano e ilustre advogado de Abrantes - que tem a bondade de partilhar comigo estas peças que condensam reflexão e sabedoria.
Se bem que em matéria tão árida e complexa, como a da demonstrabilidade da existência de Deus - a melhor forma de abordarmos o tema é por recurso à "anedota", à ironia - que segundo Eça era o sorriso da razão, ao sarcasmo e, claro, como corolário final, empurrarmos para a bandalheira dos políticos que temos todas, ou quase todas, as desgraças que nos acontecem. Até mesmo aquelas que se prendem com a dificuldade "operacional" de demonstrar existência tão complexa, como é provar a existência de Deus.
Talvez seja boa altura para ler ou reler Sir Bertrand Russel - e recuperar alguns dos grandes argumentos que pugnam pela não existência de Deus, embora também não me passe pela cabeça, em regime alternativo, afectar tamanha responsabilidade e tarefa aos homens, simples cabeças rolantes que erram mais do que acertam.
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