quinta-feira

José Paulo Cavalcanti Filho.Li dez ou doze vezes as 30 mil páginas de Pessoa



Começou a fumar charutos quando o pai morreu, para trazê-lo sempre consigo, embrulhado no aroma de uma memória remota. Nem por acaso, foi nos versos da “Tabacaria” que em 1966 encetou outro vício. Um prazer obsessivo chamado Fernando Pessoa, amigo, parceiro íntimo, até fantasma, que jura ter avistado no Chiado. Ao longo de oito anos, visitou Portugal 30 vezes em busca de um autor que deixou escrito o equivalente a 60 livros com 500 páginas. Leu-o de uma ponta à outra, várias vezes. Colecciona tudo o que o deixam comprar. E chegou a ir a França, tentar levantar a urna de Mário de Sá-Carneiro em busca de cartas. Um brasileiro apaixonado pelo escritor e pela sua cidade. “Gostámos tanto que acabei comprando um apartamento em Lisboa. Já tenho conta no banco, sou sócio do Grémio Literário, da Biblioteca Nacional. E estou a seis horas e meia do Brasil.”, jornal i

Sei que ainda não foi hoje [ontem] que conseguiu comprar a mesa de Fernando Pessoa no Martinho da Arcada.

Não [risos]. Estou tentando fazer um museu particular, que provavelmente vou deixar para a Academia. Meus colegas vão saber o que fazer dele. Agora, tive a informação de que o Martinho estava para fechar e essa foi a primeira vez que voltei para ir lá falar com o dono para tentar comprar. Ele riu muito e disse que seria assassinado em hasta pública pelos portugueses se o fizesse.

Tem noção de quantas peças já tem?

Tenho várias edições originais da “Mensagem”, inclusive uma está toda anotada com a letra do Pessoa. Para minha sorte, as pessoas compram os livros, botam na estante e não abrem para ler. Senão o preço teria triplicado. Tenho edições dos sonetos, os manifestos originais, todos os números de todas as revistas que dirigiu, as revistas como a “Águia” e a “Presença”, praticamente todos os jornais e revistas em que escreveu, todos os livros que a editora dele, a Olissipo, produziu.

E objecto pessoais, como os óculos.

Sim, e a colecção de selos, papéis em que anotava nomes, cartões postais, fotos. Estou também alargando isso para pessoas próximas dele. De Eça de Queirós, tenho as 31 edições originais dos livros. De D. Sebastião, que era uma presença na vida dele, tenho a carta escrita à prima no ano de 1578, em que supostamente morreu. Cartas de D. Carlos e D. Amélia. Forma um universo grande que não será para os meus filhos.

Que acham eles disso?

Não têm que achar nada. Eu já avisei que o destino é outro. Essas coisas são feitas para servir a colectividade. Por exemplo, estamos doando um exemplar do livro a cada uma das 589 bibliotecas públicas de Portugal. Não quero direito autoral, não fiz isto para ganhar dinheiro.

E no entanto já ganhou o prémio Bienal de Brasília, que acaba de sair.

Ao dinheiro nem sei o que vou fazer. Sinto-me constrangido de ganhar dinheiro com isso. Acho que Pessoa é uma pessoa importante de Portugal e sinto-me satisfeito que quem não possa comprar o livro possa ir à biblioteca e ler.

Descobre Pessoa em 66, através da voz de João Villaret.

Não sabia nem que existia João Villaret ou Pessoa. Fiquei aterrado. Já havia sentido isso duas vezes antes. Primeiro, quando toquei Bach. Até aos 13 anos estudei para ser maestro, sei tocar tudo. Quando toquei Bach pela primeira vez percebi que não era como os outros. Estou convencido que Deus, sentindo muito tédio da perfeição divina, resolveu viver uma experiência terrena e foi baptizado como Bach. A segunda vez em que tremi foi quando tomei conhecimento com o realismo fantástico da América latina lendo o “Cem anos de solidão”. O terceiro, foi a “Tabacaria”, de Pessoa, que acabou de ser escolhido como o maior soneto do século XX na Inglaterra. Só uma inteligência superior é capaz de fazer aquilo. Foi ali que conheci. Aconteceu uma coisa curiosa. O livro que eu queria ler do Pessoa não existia. Há livros escritos por especialistas, mas estava pensando nos jovens, donas de casas. Queria saber como era o homem Fernando Pessoa, qual era a tabacaria da “Tabacaria”. Escrevi o livro que queria ler, pensando em mim. Estava-me lixando para o que os outros pensavam. Não ia mudar nada.

Que disse a editora?

A editora disse-me que a tiragem média de Pessoa é de 1000 exemplares. Achava que se vendesse o dobro já podia levantar as mãos para o céu. Tudo bem, mas não escrevi para ser um best seller. Quatro meses depois de sair, tinha vendido 30 mil exemplares. E só vendi 30 mil porque eles não estavam preparados, senão ia vender 60 mil. Subestimaram a importância que Pessoa tem para o Brasil, muito mais que para Portugal. Segundo, as pessoas afinal têm o livro que sempre quiseram ler. Procurei a precisão humanamente possível. A partir de certa altura percebo que Pessoa só escrevia sobre o que tinha à volta.

Diz que era um autor sem imaginação.

É, a imaginação tem dois sentidos. Ninguém teve a capacidade de sonhar como Pessoa, uma imaginação não no sentido prosaico, mas no estilo de escrever. Outros escritores referem pedaços da vida, experiências sensoriais. Pessoa não fez isso de vez em quando, Pessoa foi tudo aquilo que escreveu. A obra de Pessoa é um testamento que ele esperou 70 anos para alguém desvendar. Só para ter uma ideia, ninguém conhecia um amigo de Pessoa chamado Esteves. Contratei historiadores e analistas para o encontrarem. Leram todas as edições do “Diário de Notícias” dos dois anos antes de “Tabacaria” para encontrar os Esteves citados. Cheguei a três que pelas idades, profissões e residências não eram com certeza eles. Só depois descobri, lendo o atestado de óbito de Pessoa, que era mais simples. O Esteves era o Joaquim Esteves, um vizinho amigo íntimo da família. Mas ninguém vai acreditar que li dois anos de jornais para procurar um Esteves. As pessoas aceitam as coisas como elas estão.

Podia vasculhar-se muito mais?

Duas cartas de Ofélia foram censuradas. Ninguém nunca se preocupou com o que lá estaria. Localizei-as e descobri que ela falava na pobreza extrema da família e de doenças femininas. Quando um erra todos erram atrás. Morreu de quê, por exemplo? Formei uma junta com os dez melhores médicos da minha região, mostrei-lhes os textos em que falava de saúde. Até que chegámos à causa da apendicite. Fiz juntas médicas com psicólogos e psicanalistas para saber se era louco. Tinha essa obsessão em ser o mais fiel possível.

Os portugueses interessam-se menos do que deveriam por Pessoa?

Talvez não tenham a devoção que o brasileiro tem, que não tem limitações para adorar Pessoa. Recebemos a obra e essa merece ser venerada. Vocês ainda estão presos a certas características de Pessoa. Ele pressentiu isso, que os génios só seriam compreendidos em gerações vindouras. Gostava da monarquia, depois defendeu a república, mostrou-se a favor da Alemanha, falou contra a igreja católica, falou contra o marxismo, apoiou Salazar, criticou Salazar. Nós só recebemos os textos dele. Na exposição “Plural como o Universo”, às dez da manhã de um dia de semana a fila dobrava o quarteirão. Ali na Gulbenkian não tem fila.

Levou oito anos a escrever o livro.

Mudei a minha vida. Foram quatro horas e meia por dia, sem excepções. Há dois tipos de pessoas. Os felizes e os desesperados. Os felizes marcam um prazo para acabar e acabam. Depois tem o grupo dos infelizes eternos. Não é que a gente queira ser melhor que os outros – mentira, a gente quer ser melhor que os outros – mas não aceitamos fazer menos do que somos capazes de fazer. Só acabei o livro quando senti que não podia fazer melhor. Mais de um ano foi só redacção. O computador ajuda, apesar de escrever à mão.

Escreveu o livro todo à mão?

Tudo à mão. Não sei usar computador. Como tenho muitas secretárias trabalhando para mim, tirei uma e disse que não ia trabalhar para o dono do escritório, que sou eu, mas que ia trabalhar para Pessoa. Eu redigia, ela passava ao computador. Hoje, essas versões são deste tamanho [descreve uma sala ocupada]. Tinha essa obsessão de não ter erros, escrevendo como Pessoa. Não uso vírgulas. Pessoa usa duas antes do ponto. Troquei a minha maneira de escrever. Se abrir o livro, tem muito mais Pessoa que eu e se uma pessoa não souber onde são as aspas não se sabe quem é quem.

Leu as 30 mil páginas que Pessoa escreveu?

Li, umas dez ou doze vezes, era só o que faltava que não lesse! E fiquei louco com esse versinho de Pessoa [tira do bolso um papel] que não se sabe quando escreveu, nem onde, ou para quem. Encontrei na Biblioteca Nacional. Estava inacabado e completei. Sou parceiro íntimo de Pessoa. Eu vi-o no Chiado. Minha mulher fica dizendo que era um sósia mas ela não entende nada de fantasmas. Claro que era ele. Toda a gente que se aproxima de Pessoa acaba amigo dele. Borges virou tão amigo que lhe pediu para ser mais um heterónimo e disse que metade do que escreveu depois foi Pessoa que lhe ditou do além.

Descobre neste livro mais 55 heterónimos do que os identificados.

Sim, embora não lhe dê muita importância. No fim da vida, Pessoa estava a preparar-se para abandonar os heterónimos. Percebeu que só escrevendo em seu nome teria o Nobel, que deveria fazer um livro de poesia com umas 400 páginas. Se tivesse vivido um ano mais, teria publicado um livro assim, imortal. Mas acho que o tratei com tanto respeito e cuidado que se estiver em algum lugar lá em cima deve estar orgulhoso de ter despertado tanta paixão em alguém.

Costuma pensar-se que Pessoa não viveu porque estava ocupado a escrever, afinal estava a escrever a vida dele?

Concordo inteiramente. Deve ter sentido muita nostalgia por não ter vivido a vida que os outros viveram. Casar, ter filhos, morrer e deixar saudades. Por outro lado, tinha plena consciência da qualidade dos seus textos e sabia que seria imortal. Isso deve dar imensa felicidade para o autor. Tinha a certeza que ganharia o Nobel.

Tem mais novidades previstas?

O ebook saiu em Janeiro. Vai ser lançado o audiobook. Quero fazer um documentário sobre Pessoa, mas algo para cima, não quero esse negócio depressivo. Recusei duas capas. Nos livros de Pessoa é sempre tudo para baixo. “Então vamos botar o nosso melhor capista”. Deviam ter colocado desde o começo. Tenho outro livro para sair em Outubro mas a editora proibiu-me de falar mais de Pessoa. Eu infelizmente obedeço. Quem manda em mim é a minha mulher e a seguir são os editores.


Secretária e máquina de escrever de Fernando Pessoa vendidas por 80 mil euros.

A secretária e a máquina de escrever do escritor Fernando Pessoa foram vendidas ontem à noite em leilão por 80 mil euros a um advogado e escritor brasileiro. A secretária e a máquina de escrever que Fernando Pessoa utilizou no seu local de trabalho foram ontem a leilão, em Lisboa. José Paulo Cavalcanti Filho, autor da obra "Fernando Pessoa: Uma Quase Biografia", arrematou a secretária por 58 mil euros e a máquina de escrever por 22 mil.[...] in DN

 

Obs: A minha 1ª reacção (talvez mais epidérmica) seria exclamar: que vergonha!!! Mas como José P. Cavalcanti estudou e escreveu sobre a vida e obra do génio português mais cosmopolita, contribuindo para divulgar a sua obra no mundo inteiro e valorizando alguns aspectos da sua biografia, a reacção inicial é temperada por uma nota mais resignada. Os mecenas nacionais andam todos agarrados à vida, e a poesia não é preocupação essencial nos tempos que correm.., ainda que alguns, poucos, pensem que basta um poema para salvar o mundo.



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