Jürgen Habermas revisitado e aumentado no conceito de esfera pública. O peso da Internet
A importância crescente da Internet na vida do indivíduo, das famílias, das organizações e dos Estados - organizados em torno do sistema internacional - permite-nos avaliar a influência da abordagem do papel da comunicação no empenhamento do cidadão na polis, tendo como ponto de referência a esfera pública. Um conceito relativamente simples que espelha a dimensão na qual os assuntos públicos são discutidos pelos actores públicos e privados num processo interactivo que culmina na opinião pública, a qual se constitui como energia da sociedade civil que acaba por influenciar o processo de tomada de decisão dos governos.
Sendo certo que numa sociedade complexa, como são a generalidade das sociedades europeias, a esfera pública desdobra-se numa estrutura intermediária cuja missão é fazer a mediação entre o sistema político, i.é, a sociedade política (o Estado, lato senso) e a generalidade dos sectores e dos interesses privados - corporativos e neocorporativos - oriundos do "mundo empresarial" que demandam o Estado querendo, directa ou indirectamente, por acção ou por omissão, no domínio financeiro, economico ou legislativo, alguma coisa dele. São, com efeito, esses interesses empresariais e centros patrimoniais que dinamizam os sistemas de acção e funcionalizam a economia, das telecomunicações aos transportes, do sector financeiro à energia.
Habermas, recorde-se, defendeu que o desenvolvimento do capitalismo moderno durante o iluminismo anunciava uma nova era de comunicação baseada numa cultura racional, crítica, e razoavelmente debatida entre o público mais ilustrado, designadamente através das classes médias mais possidentes que tiveram um acesso à cultura e ao conhecimento que as dotou duma mentalidade crítica.
De resto, foi essa cultura, progressivamente independente, que coadjuvou na criação de meios de comunicação de origem privada, e cultivou o gosto pelo debate nos salões, nos cafés, nas ruas das cidades. Esse movimento encorajou formas racionais de discussão e deliberação públicas que passaram a escapar aos domínios do Estado, circunstância que permitiu suprimir o tradicional controlo que o Estado tinha na forma de pensar das pessoas quando procuravam emitir uma opinião sobre os negócios do Estado. Foi, pois, essa esfera pública, segundo o filósofo alemão, Habermas, que se desenvolveu na Europa ocidental durante o séc. XVIII, atingindo o seu ponto de maturação na 2ª metade do séc. XIX, começando a declinar nos finais de 1900 e as primeiras décadas do séc. XX, especialmente à medida que foram sendo domesticados pelo crescimento dos oligopólios privados na área dos media associados ao desenvolvimento da moderna burocracia do Estado.
De resto, foi essa cultura, progressivamente independente, que coadjuvou na criação de meios de comunicação de origem privada, e cultivou o gosto pelo debate nos salões, nos cafés, nas ruas das cidades. Esse movimento encorajou formas racionais de discussão e deliberação públicas que passaram a escapar aos domínios do Estado, circunstância que permitiu suprimir o tradicional controlo que o Estado tinha na forma de pensar das pessoas quando procuravam emitir uma opinião sobre os negócios do Estado. Foi, pois, essa esfera pública, segundo o filósofo alemão, Habermas, que se desenvolveu na Europa ocidental durante o séc. XVIII, atingindo o seu ponto de maturação na 2ª metade do séc. XIX, começando a declinar nos finais de 1900 e as primeiras décadas do séc. XX, especialmente à medida que foram sendo domesticados pelo crescimento dos oligopólios privados na área dos media associados ao desenvolvimento da moderna burocracia do Estado.
A esta luz, Jürgen Habermas alegou que a esfera pública foi históricamente marcada e não um instrumento para julgar a comunicação. Sucede, contudo, que muita coisa mudou desde o enunciado da teoria de Habermas até ao momento presente: apareceram novas tecnologias de comunicação, criaram-se novas formas de comunicação, enquadradas por normas, hábitos e velocidades radicalmente distintos das fases precedentes de comunicação em ordem a fixar uma determinada opinião pública aquando da discussão da coisa pública. Essa mudança, que não foi de somenos, criou a folga - conceptual e material - para aqui revisitarmos algumas ideias do filósofo da intercomunicação e da racionalidade crítica, enquanto fonte de legitimidade de discussão e de fixação das medidas tomadas pelos poderes públicos que afectam a vida das comunidades. Aliás, já não são os agentes da vida pública que entram na nossa vida privada por intermédio da tv. Ao invés, é pela nossa própria iniciativa que convocamos os agentes da mediação. Cada um de nós revela-se o encenador do espectáculo do mundo que integramos, o que altera o conceito de representação e o modo como passamos a comparar-nos.
É esse esforço que nos põe em contacto com as múltiplas esferas públicas - que passam a influenciar as dinâmicas de comunicação emergentes, seja nos aspectos micro, meso e macro-social da esfera pública - que passaram a operar quer no espaço infra-nacional, quer no espaço supranacional, onde, aliás, boa parte da legislação é votada e passa a vincular os Estados que estão organizados nos chamados grandes espaços, leia-se integrados em organizações internacionais de que a União Europeia é uma organização sui generis, porque não é uma federação clássica de Estados, nem uma confederação simples de Estados.
Todavia, mesmos aqueles autores que nunca secundaram as ideias de Habermas, curiosamente usaram o conceito de esfera pública enquanto ideal normativo capaz de julgar a existência de estruturas de comunicação nas sociedades contemporâneas. O que reforça o nosso ponto de partida que consiste em revisitar - e valorizar - os aspectos mais singulares do legado de Habermas, especialmente aqueles que mais facilitaram a emergência das teorias acerca do discurso fundador da deliberação, que forneceu os critérios para a lógica crítica e racional do discurso público.
Para o efeito, destacamos aqui o trabalho de Lincoln Dahlberg, um académico que usou a teoria hebermasiana para avaliar o papel da Internet, extraindo desse exercício seis condições que os enunciados da democracia electrónica, facilitadora da lógica deliberativa na esfera pública emergente, segundo a matriz de pensamento de Habermas. A esse propósito, é útil sumariar essas seis condições, algumas das quais estão implícitas no que referimos acima:
1. Autonomia do Estado e do poder económico: o que pressupõe que o discurso público deve centrar-se nas preocupações dos cidadãos e não ser conduzido pelos interesses das grandes corporações (de media e doutros sectores de actividade económica) e das elites políticas;
2. Razão ao contrário da afirmação: já que a deliberação envolve um compromisso crítico recíproco entre os actores, assumindo posturas críticas, normativas e racionais, e não posições de natureza dogmática;
3. Reflexividade: na medida em que os participantes do debate público devem espelhar os valores culturais do seu tempo, o que comporta os interesses, mas numa perspectiva de interesse social alargado, de bem comum, diria, e que efeitos tem esse debate sobre as vidas das comunidades;
4. Abertura e diálogo: que exige dos participantes diálogo permanente na audição dos argumentos contrários, compulsando perspectivas contraditórias, até se atingir uma harmonia ou convergência pela ideia/solução mais eficiente perante o problema colocado pela comunidade;
5. Sinceridade: em que cada participante deve fazer um esforço genuino em apreender toda a informação, incluindo as verdadeiras intenções, os interesses, as necessidades e as expectativas e aspirações das comunidades - no quadro do problema social objecto de discussão;
6. Discurso de inclusão e igualdade: temas cada vez mais candentes nas sociedades contemporâneas, por força do crescente desemprego e injustiças sociais e das inevitáveis considerações normativas, éticas e políticas que sobre esse flagelo europeu (e global) os poderes públicos, com especiais responsabilidades nessa matéria, têm de lidar.
Mesmo na era pré-Internet cresceu a tendência de aplicar à esfera pública o modelo de análise concreto ligado às instâncias da comunicação de raiz habermasiana. Daí a oportunidade deste pequeno tributo a Jürgen Habermas. Aliás, o que a Internet veio potenciar, mormente através das ferramentas que facilitam o aparecimento e multiplicação das redes sociais, em que pontifica o Facebook, que passou a ser cotado em bolsa, foi a crescente autonomia da esfera de comunicação na qual os cidadãos, de forma livre, debatem os mais variados temas, e fazem-no fora do alcance e do condicionamento do Estado. É certo que nestes meios o nível da discussão é francamente baixo, mas já há excepções interessantes em que vale a pena apostar. Uma autonomia de pensamento que vai muito além do Estado, escapa também ao pensamento "único", que era, em certos casos, imposto pelos velhos media e não desagradava aos interesses (neo)corporativos dominantes das grandes empresas, algumas delas a operar em regime de oligopólio.
Em suma: o alargamento do conceito de esfera pública teorizado por Habermas tende a regressar à origem da democracia ateniense, à velha Ágora, uma quase democracia directa, agora mediada pelos new media que vieram "desintermediar" e desvalorizar o clássico papel dos partidos políticos, das burocracias e dos poderes públicos em geral. A esta luz, a função e potencialidade do rizoma permitiu fazer emergir múltiplos espaços de diálogo e, por essa via, conceder aos cidadãos uma maior espaço ao auto-governo das comunidades.
Hoje, a conversação pública já não se opera em torno de livros, salões e cafés; repercute-se através dos novos media. Por eles se agendam e organizam revoluções sociais, como decorreu na chamada Primavera Árabe em 2010-11. Foi através desse novos meios que a comunicação formatou a opinião pública. O que nos permite concluir que a emergência do ciberespaço implicou uma mutação radical na forma de comunicar da chamada inteligência colectiva, por via da qual se criam múltiplas opiniões nos inúmeros espaços públicos - que ora se cruzam entre si.
Ainda que desactualizado pela força natural das coisas, mercê do declínio do carácter desterritorializado dos media e a sua crescente dependência face a comunidades virtuais, convergência entre suportes mediáticos (rádio, tv e internet) e ainda pela emergência dos automedia, dado que cada um de nós se constitui num actor social mais ou menos relevante na formação do(s) espaço(s) público(s), o legado de Habermas ainda oferece algum potencial analítico e pode ter algumas perspectivas de futuro.
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