Fátima e a profissão de fé
Ir a Fátima ainda é um acto imperativo que os mais crentes não dispensam. Vão pela memória do passado, pelo presente e pelo futuro. Vão pelos amigos, pelos familiares, por si. Vão. Essencialmente, as pessoas vão porque têm de ir. Especialmente numa sociedade como a nossa: pobre, corrupta, sem justiça nem igualdade de oportunidades, com políticos incapazes e trapalhões, com um tecido económico ainda muito débil e uma economia profundamente dependente do exterior.
Esta é uma altura em que os crentes recorrem ao materialismo e aos seus santuários. A igreja como que se converte num imenso CCColombo, qual catedral do consumo, e lá lêem o evangelho do talão através da iluminação das velas - que ardem às milhares. Uns e outros participam nessa congregação da fé, ou nas compras de domingo, acompanhados de cruzes e de cartões de crédito.
É óbvio que há uma ironia em tudo isto, desde logo porque as pessoas têm cada vez menos dinheiro, estão cada vez mais desempregadas, as indicações do Governo (e da economia internacional) são mais desanimadores do que esperançosas, desde logo, pelas declarações idiotas do PM e de alguns dos seus ministros e secretários de Estado.
Acresce, por outro lado, que as religiões tradicionais não atraem as pessoas pelo facto de as considerarem antiquadas e pouco estimulantes, mas elas, como se documenta pela imagem, continuam a ter necessidades espirituais que clamam por ser atendidas. As pessoas não desistem e vão ao encontro do milagre. Se os problemas pessoais se resolverem, ocorre o milagre; doutro modo, espera-se mais um ano, até que a roda dentada do ritual reinicie o processo de regressar a Fátima. E é assim desde a revolução soviética, em 1917, quando os "três pastorinhos" (Jacinta, Francisco e Lúcia) presenciaram as aparições. Não interessa agora discutir se tais visões se ficaram a dever à fome e à fraqueza - que por regra provoca alucinações - ou ao reflexo do sol nos vitrais do santuário; o essencial é que houve uma vontade férrea de ver ali umas aparições, uma vontade que depois se sedimentou por milhares, milhões de pessoas que hoje assumem o ciclo mariano como quem faz a higiene diária, e, isso é, ou tem de ser, respeitável.
Tal significa que os apetites das pessoas é muito diverso: nuns casos, as pessoas preferem ir ao médico para resolver os seus problemas; noutros, preferem usar amuletos ou iluminar velas, num espírito de comunhão que, supostamente, as faça sentir menos perdidas neste mundo apagado, escuro e sem promessa de ver luz ao fundo do túnel.
Qualquer que seja a verdade em que as pessoas queiram crer, e são perfeitamente livres de o fazer, até porque o nosso Estado não é confessional e até está apostado em rebentar com os feriados religiosos (como se isso resolvesse as questões e os desafios da organização do trabalho, da improdutividade, da escassa competitividade nacional, etc!!!) - de tudo ressalta, no íntimo de cada um, o dilema fundamental. O qual se pode exprimir, simplesmente, em saber se se acredita ou não se acredita. E que consequências isso terá consoante a opção seja pela via da crença ou da não crença.
Seja qual for a opção, o homem precisa sempre de dar um significado à sua vida e à sua existência, e isso fará dele, à partida, um ser que crê em algo. Até porque o homem é o único animal racional que sabe que vai morrer, por isso tem uma apetência natural para a religiosidade que outros, forçosamente, não têm. É, pois, essa religiosidade que lhe vai dar duas coisas: a sensação da transcencência; e uma espécie de "ideologia" de justificação que aliviará o peso da sua morte - quando ela sobrevier.
No fundo, inventámos a religião porque, pura e simplesmente, temos MEDO da morte e do que representa o seu DESCONHECIDO. E, segundo consta, ainda ninguém regressou para produzir o relato de como são as coisas no outro lado nessa viagem que é sempre One way ticket...
Numa palavra: o homem é esse animal que crê, mesmo que tudo em seu redor esteja a arder.. Mas isso também é um sinal da sua preserverança, da sua sensibilidade e da sua inteligência.
Fátima é esse jogo de crenças nos intervalos das descrenças e dos medos que nunca nos abandonam. Tudo dependerá do qual alimentamos mais...Mas que não restem dúvidas: a viagem é só mesmo de ida...
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