segunda-feira

Fernando Pessoa

Nota prévia: Original em Pessoa não é a sua poesia, mas a dimensão psico-filosófica, clínica, histórica, cultural e civilizacional que ele empresta aos seus pensamentos e reflexões. Duma futilidade mundana, Pessoa é capaz de a converter num pedaço de reflexão densa; dum poema banal, Pessoa projecta-lhe mundo; dum raciocínio complexo, Pessoa desmantela-o, como quem desmonta um motor dum carro velho, peça a peça, arrumando-as todas no sótão da sua oficina - onde também guarda a sua prosa, tão boa como a sua poesia. 

- E Pessoa é isto: singular, plural, complexo, problemático. Pessoa é nós; nós estamos encerrados nele, nas sua genialidade e contradições. Por isso o amamos, por isso dele não conseguimos escapar. Trazêmo-lo no bolso do pensamento. Vestimos as "suas cuecas" diariamente, na esperança de engravidarmos com algum do seu talento e dar à luz alguma prosa ou poesia. 

- Eu disse cuecas, mas também podia ter dito "lentes", embora fosse mais fácil usar aquelas do que recuperar estas. No fundo, necessário é criar...
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Tenho Tanto Sentimento

Tenho tanto sentimento 
Que é frequente persuadir-me 
De que sou sentimental, 
Mas reconheço, ao medir-me, 
Que tudo isso é pensamento, 
Que não senti afinal. 

Temos, todos que vivemos, 
Uma vida que é vivida 
E outra vida que é pensada, 
E a única vida que temos 
É essa que é dividida 
Entre a verdadeira e a errada. 

Qual porém é a verdadeira 
E qual errada, ninguém 
Nos saberá explicar; 
E vivemos de maneira 
Que a vida que a gente tem 
É a que tem que pensar. 

Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"
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