O episódio é contado na investigação académica da socióloga Rita Ribeiro sobre praxes académicas. Um grupo de alunos estava à volta de um lago numa praxe quando os colegas mais velhos dão a ordem de saltar. Em vez de molharem os pés e saltitarem, os mais novos atiraram-se para dentro de água. “É o exemplo do clima de intimidação e de quem está sempre à espera do pior”, diz a professora da Universidade do Minho (UM).
Foi este o ambiente que encontrou no trabalho de campo que fez, inicialmente sob o ponto de vista da antropologia, olhando as praxes enquanto ritual de passagem. Foi também autora – juntamente com outro sociólogo da mesma universidade, Carlos Gomes – de um relatório sobre as praxes na UM, encomendado pela reitoria da instituição. “A intenção nunca foi julga-las, antes entendê-las”.
O que explica esta necessidade de os jovens estudantes enfatizarem esta etapa da sua vida?
Por um lado, há uma questão histórica e uma ideia de tradição, que é sempre usada como discurso legitimador. Depois, as praxes funcionam como um sinal da elevação estatutária que significa a entrada para o ensino superior. Para todos os efeitos, este ainda é um sector minoritário na sociedade portuguesa. Essa dimensão elitista leva a que se valorize a entrada na universidade. O traje e todos os signos da praxe são formas de os alunos sentirem um reconhecimento estatutário por parte da sociedade.
Mesmo para aqueles que são praxados?
Talvez até mais para esses, porque é um momento em que isso é visível para todos. Quando vão na rua com a cara pintada e não se importam com isso é porque estão a dizer aos outros: “Eu entrei para a universidade”. As praxes eram uma prática da Universidade de Coimbra e entraram em declínio nos anos 1960, por questões políticas. Emergiram no final dos anos 1980 e ganharam força nos anos 1990, precisamente quando o ensino superior se democratiza.
Não seria expectável que fosse ao contrário: a partir do momento em que alarga o espectro dos que entram na universidade, o peso simbólico é menor?
Podia ser assim, mas, apesar dessa massificação, só uma percentagem muito restrita da população entra na universidade. Sobretudo naquela altura [anos 1990], em que havia uma forte pressão de procura e muitos dos que se candidatavam não entravam.
O possível embaraço público pesa menos do que o sentimento de orgulho por pertencer a esta comunidade?
Tirando aqueles alunos que participam porque não têm capacidade para se escusar a fazê-lo, na grande maioria das situações que pude recolher é isso que acontece. As pessoas sentem-se [impelidas] a participar de livre vontade. Muitas vezes, esse embaraço nem sequer é sentido, porque o lado provocatório que a praxe tem estimula-os. Estão a fazê-lo em grupo, a coberto de uma tradição, e isso funciona para alimentar essas práticas.
Qual é o papel das reitorias ou das direcções das faculdades neste processo?
Nunca tiveram muita vontade de expulsar as praxes ou de as domesticar sequer. Há aqui questões políticas, porque os reitores precisam de ter os alunos do seu lado. E, para muitos alunos, uma posição mais forte contra as praxes pode ser vista como uma afronta. A solução também não está numa rejeição completa, até porque as praxes parecem-me mais perigosas quando estão fora das universidades do que quando estão dentro. Algum equilíbrio da domesticação destas práticas é o ideal, mas não é fácil de se conseguir.
Dizia que a tradição aparece muitas vezes como discurso legitimador da praxe. Mas em universidades como a do Minho ou a de Aveiro, que são recentes, que tradição existe?
É uma tradição inventada, como são quase todas. O que há é uma recuperação de práticas históricas que são mobilizadas para aquilo que são os interesses dos estudantes. Estas tradições existiam em algumas universidades antigas – no caso português, Coimbra. O que as universidades novas fizeram foi apropriar-se destas práticas e, simultaneamente, dar-lhes uma tonalidade local, recuperando histórias mais ou menos mitificadas acerca daquilo que os estudantes liceais de cada cidade faziam ou das instituições eclesiásticas que tinham uma componente de ensino superior. Isso é também uma forma de legitimação, sobretudo numa universidade nova que precisa de criar uma identidade.
Na sua investigação, escreve que as regras da praxe são “implícitas” e “informuladas”. Como é que isso se explica?
Num ritual, sabe-se o que se deve fazer, mas muitas vezes o sentido das coisas está implícito. Por isso é que eles são polissémicos, servem para muita gente. E agregam vontades devido a essa plasticidade. Quando lemos o código de praxe, está lá um conjunto de limitações, mas não diz como fazer. O como fazer é uma prática que se constrói e que se reproduz num certo contexto institucional.
Mas há regras mais óbvias?
Embora operando numa lógica do implícito, estruturalmente, estão lá os significados. No caso da praxe, elas são interessantes do ponto de vista do estudo dos rituais devido a duas dimensões. Os pilares em que assentam são a hierarquia e o igualitarismo entre aqueles que são praxados. A praxe desenvolve-se nesta tensão permanente de reprodução das estruturas hierárquicas da sociedade de uma forma muito linear. E, ao mesmo tempo, do lado dos que estão a ser iniciados, é promovida a sua homogeneização, o seu nivelamento, a sua desinvidualização.
Essa é uma das críticas mais frequentes à praxe: o nivelamento e esta reprodução da hierarquia. No trabalho de campo, isso é uma coisa óbvia?
Está no nível estrutural daquilo que são os rituais associados à praxe, mas está. Há uma violência hierárquica muito forte, sobretudo nos primeiros tempos de praxe. Ao mesmo tempo que há uma completa formatação daqueles que estão a ser praxados e um apagamento das individualidades. Esta é uma prática comum a todas as instituições em que estão muitas pessoas juntas durante muito tempo, como as forças armadas ou os mosteiros.
Quando alguma coisa corre mal, é comum que as estruturas associadas à praxe não falem. O silêncio também é uma das regras implícitas?
Tal como outros rituais desta natureza, as praxes servem para constituir aquilo a que alguns autores chamam o espírito de corpo. Isso significa sempre que estamos a criar uma certa identidade entre nós e a afastar os que não têm o direito a passar pelo mesmo. Esse pacto de silêncio que às vezes se percebe tem a ver com isso: há uma protecção dos nossos. Se a praxe consegue alguma coisa é isso, é criar um espírito de corpo, uma identificação com a universidade, com um curso, com um grupo de pessoas. Do ponto de vista sociológico ou antropológico, quando os grupos se formam passando por este tipo de práticas violentas, reforçam ainda mais esse espírito.
Como é que se conciliam estas regras implícitas com o anúncio feito em Agosto de 2012, por nove estruturas académicas, de criação de um código de praxe comum para o país todo?
Provavelmente, estamos apenas no domínio da intenção. Não vejo que seja muito possível essa cooperação tão estreita entre diferentes universidades, que criaram “tradições” de praxes diferentes. Até pode ser que se chegue a esse código, mas será sempre suficientemente vago e pouco operativo.
Onde é que a praxe se cruza com a lei?
Essa é uma zona de sombra. Todas as sociedades acabam por ter esta capacidade de acomodar certas práticas que estão contra os valores explícitos ou a lei. Qualquer juízo baseado na nossa lei condena muitas das coisas que se passam na praxe e muitas delas são efectivamente situações de tribunal. Mas o significado que nós atribuímos de fora não é o significado que está a circular dentro do grupo que está a ser praxado e está a praxar. Temos que ver as praxes como uma dramatização feita por um grupo. É esse jogo de papéis que está ali a acontecer. Fora deste contexto específico, aquilo são situações intoleráveis.
Mas há espaços para a lei eventualmente intervir?
Apesar de as ver nesta óptica da dramatização, é evidente que não deixamos de estar numa sociedade onde há regras muito explícitas acerca dos direitos das pessoas. Essa subversão é calendarizada, sabe-se quando e onde pode acontecer e também se sabe quando e onde não pode acontecer, e é este contexto específico o que leva as instituições universitárias e a sociedade em geral a tolerarem as praxes. Mas não deixam de ser cidadãos que estão envolvidos. Há aqui também uma questão que é muito importante: a responsabilidade individual tanto de quem praxa como de quem é praxado. Quem é praxado também tem responsabilidade, porque está ali porque quer.
É, de facto, possível dizer que não à praxe?
Dependerá muito das universidades, dos cursos, de quem está a dirigir as comissões de praxe, mas é possível dizer que não. E há também estruturas institucionais que são capazes de ajudar, como o provedor do estudante, que é uma figura relativamente nova.
Quem participa também assumiu que aquelas eram as regras do jogo?
Mas a qualquer momento tem que poder dizer que não. O mais importante no trabalho pedagógico junto dos alunos é que, a qualquer momento, devem poder parar o jogo. Essa responsabilidade individual não pode ser esquecida.
Nos dois casos mais mediáticos que chegaram a tribunal – a Universidade Lusíada foi condenada a pagar uma indemnização à família de um aluno que morreu na sequência de uma praxe, em 2001, e o Instituto Piaget também teve que compensar uma aluna que se queixou da violência da praxe, em 2002 –, a condenação recaiu sobre a instituição e nunca sobre os indivíduos. É difícil que o ascendente que alguém tem sobre outro no âmbito deste jogo possa ser entendido como estando para lá da fronteira da lei?
Não sei como é que os processos foram tratados do ponto de vista judicial, mas imagino que, tal como em muitas outras situações que cruzam o domínio da lei, seja possível atribuir responsabilidades e culpas que vão para além desta forma quase abstracta de condenar uma instituição. Se sabemos que acontecem situações muito graves, elas têm protagonistas. A cumplicidade que a sociedade portuguesa tem com as praxes está em todo o lado.
O álcool e as drogas também fazem parte da praxe?
Em relação às drogas, não me deparei com nenhum caso. Mas o álcool faz parte. Algumas praxes ocorrem à noite e ocorrem quase sempre tendo o álcool também como actor. Os estudantes passam pelos bares e muitos deles são constrangidos a beber.
O que é que justifica que um país que se mobiliza com o bullyingno ensino obrigatório tolere estas práticas no superior?
Há uma razão muito simples: estamos a falar de adultos. Não podemos esquecer isso. É difícil fazer uma intervenção quando estamos a falar de pessoas que estão ali de livre vontade. Seria preciso provar que estão na praxe fortemente coagidos e intimidados e isso não acontece, na maior parte dos casos. Isto é uma brincadeira de gente crescida.
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Obs: As praxes comportam várias dimensões na vida das universidades e das pessoas/estudantes que buscam obsessivamente um pseudo-estatuto que, presumivelmente, lhes garanta um reconhecimento social perante a sociedade.Tamanho erro e ilusão.
Vejamos algumas dessas falácias:
Em primeiro lugar, é do interesse da universidades (sobretudo privadas) fomentar este circo de aparentes tradições e rituais para manter os alunos satisfeitos e investidos dum poder ilusório que doutro modo não teriam. A contrapartida para as universidades é óbvio: atrair o maior número de estudantes, capitalizar em visibilidade social e, desse modo, FACTURA$. Pois é disso que se trata.
Em segundo lugar, os estudantes séniores tratam os caloiros de forma infra-humana, resultado de práticas neo-feudais e fascistas, ou seja, que educam para o desrespeito e o aviltamento da personalidade e singularidade do outro que, por ser caloiro e desejar integrar-se, se sujeita às maiores ignomínias. Ao saber destas práticas as direcções da universidades, os seus órgãos de decisão pouco ou nada fazem para não gerar incompatibilidades com os "chefes dessas orquestras neofascistas" (muitas vezes, assemelham-se aos holigans que têm dado mau ambiente ao futebol) que grassam como cogumelos um pouco por todas as universidades, com especial incidência nas privadas - que têm maior sede de protagonismo social e de financiamento.
O Estado, sabendo de casos que já redundaram em mortes, quer por via da prática directa desses rituais fascistas nas instalações da universidades, quer por via de suicídio decorrente da circunstância de alguns desses alunos/caloiros não terem aguentado a pressão psicológica sobre eles exercida, não legisla no sentido de limitar e disciplinar esses actos a meras formalidades civilizadas de integração académica.
Nesse contexto, estão todos mal: as universidades privadas (especialmente estas, onde tais práticas neofascistas são mais recorrentes e aberrantes) nada fazem, pois só têm a lucrar em manter esse circo gerador de uma visibilidade social e mediática que pode, a prazo, atrair mais estudantes para o seu orçamento; os séniores (os padrinhos) comportam-se como animais sedentos de domínio sobre o outro (em todos os aspectos, até na esfera sexual); e o Estado age com negligência por não se querer meter numa área que é - ou tem sido - da reserva de decisão da chamada autonomia universitária.
Por último, cumpre referir que este Governo tem imensa sorte por estes dramáticos episódios ocorrerem no preciso momento em que crato está literalmente a cilindrar a Investigação & Desenvolvimento em Portugal.
Assim, em vez de ser confrontado com a necessidade de definir uma política científica para o país, o processo de agenda-setting noticiosa obrigará a discutir o drama das famílias que perderam os seus filhos no Meco - e não a urgente política de ciência para Portugal.
Ante tanta dor e tristeza, o XIX Governo (in)Constitucional tem sido bafejado pela sorte. E a sorte, neste caso, resulta da desgraça dos outros como tristemente se pode verificar.
A esta luz, não será exagerado afirmar que o Governo de passos coelho sobrevive com a tragédia dos outros.