sexta-feira

Máquina do Mundo - António Gedeão - Rómulo de Carvalho -



Máquina do Mundo
O Universo é feito essencialmente de coisa nenhuma.
Intervalos, distâncias, buracos, porosidade etérea.
Espaço vazio, em suma. O resto é matéria.
Daí, que este arrepio, este chamá-lo e tê-lo, erguê-lo e defrontá-lo,
esta fresta de nada aberta no vazio, deve ser um intervalo.

António Gedeão/Rómulo de Carvalho

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Os donos da voz - por Viriato Sormenho Marques -

Até há bem pouco tempo parecia existir um consenso. Um governo era uma equipa unida por um programa a cumprir, e onde existia uma clara cadeia de comando, no topo da qual se encontrava um primeiro-ministro (PM). Cada governo refletia, necessariamente, a personalidade do seu PM. Uns mais colegiais, reflexo de figuras dispostas a repartir funções. Outros mais centralistas, imagem de PM habituados a tratar os membros da sua equipa como meros "ajudantes". No entanto, o princípio sagrado era o de que em qualquer disputa a voz do PM fechava o conflito das interpretações. A palavra do PM era, em definitivo, a palavra do poder legítimo. Com este Governo tudo é diferente. Não é só o facto de Lisboa se ter transformado numa capital sem poder efetivo, na metrópole do exílio interior de uma nação inteira, com o centro do poder real deslocalizado nas cidades que albergam as instituições da troika (Frankfurt/BCE; Washington/FMI; Bruxelas/Comissão Europeia, sem esquecer Berlim, onde se realiza o milagre da unificação desta trindade). O PM resolveu ir mais longe, subvertendo as regras do jogo na gestão do uso da palavra. Resolveu multiplicar os seus discursos e declarações (bateu todos os recordes de entrevistas de um PM desde 1974, o que significa desde sempre!), mas visando e conseguindo provocar um ruidoso efeito de irrelevância. As palavras decisivas ficaram entregues, durante algum tempo, a Miguel Relvas, mas, como se confirma no caso da RTP, até um consultor como António Borges pode servir para anunciar o que é importante. Um governo que se destina a dissolver o Estado pode dar-se ao luxo da coerência máxima que é a de prescindir de uma voz. Ou melhor, de a submeter ao princípio ultraliberal da "contratação externa" (outsourcing).dn



Obs: Além da explicação eficiente dada pelo filósofo VSM, com clareza e eficiência, como é seu timbre, rematando com uma graça final (bem ao estilo do Consenso de Washington e dos "Chicago boys"), creio, contudo que haverá uma outra razão - de natureza técnica e metodológica - para que as coisas aconteçam como têm acontecido até aqui. Ou seja, a degradação da cadeia de comando no processo de tomada de decisão do vértice do Estado, ocupado no topo pelo PM, dever-se-á também ao próprio método, deliberadamente escolhido, para governar Portugal, desgovernando-o (e deslegitimando-se o Gov), na prática. 

Com efeito, tem sido prática corrente deste Governo anunciar, a título experimental, medidas que diz ir tomar a curto e médio prazos. Para tal, escolhe as pessoas que comunicam à sociedade tais intenções, que nem sempre são os ministros da tutela dessas pastas, nem os respectivos secretários de Estado, por regra o escudo protector do respectivo ministro.

Com este modus operandi, é legítimo perguntar o que o Governo pretende com este mecanismo, designado de proof-lies?

Na prática, mentiras experimentais que representam uma espécie de sondas cuja finalidade é colocar a "1ª carga de explosivos" na sociedade e depois esperar para ver... 

Aqui o propósito do Gov é duplo: 1) detonar, em termos sociais, essas intenções governamentais - de que o próprio Governo não está seguro de serem as melhores políticas públicas, por vezes ao arrepio do respectivo Programa de Governo com que foram eleitos; 2) e aferir como se comportam as oposições - e a sociedade civil em geral (incluindo aqui, um pouco forçadamente - os sindicatos e as corporações de interesses) - às medidas e políticas públicas comunicadas à sociedade.

É isto que tem acontecido reiteradamente no caso da pseudo-privatização da RTP (e também nas pastas da Educação, Saúde, Agricultura, Defesa, etc) e do seu modelo de privatização e de negócio que ainda ninguém percebeu, nem o próprio PM, cujo pensamento sobre esta matéria vale ZERO.

Talvez isto explique por que razão a resposta de Passos Coelho acerca do futuro da RTP seja, invariavelmente, a mesma: está a "estudar" o dossier. Afinal, não é só o relvas que precisar de "estudar", o qual foi fazer terapia clínica para Timor. Mas nem as distâncias eliminam os problemas revisitados nas bandeiras, pinturas, slogans, etc..

Se assim for, na prática, quem tem sido o PM informal deste Gov, é o sr. Borges, ainda que tal não ocorra por acaso, mas porque o Gov, na expectativa de enviar os seus "peões de brega" para se proteger das medidas impopulares que anuncia, as comunicações à sociedade têm tido tantos efeitos perversos que quem, verdadeiramente, se queima é o PM e o Gov no seu conjunto, e não aqueles que estão formalmente fora dele. 

A política, hoje, em Portugal, é feita essencialmente de absurdos. 



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quinta-feira

Encontros políticos de verão: quando o sonho se mistura com a realidade para diagnosticar o que já sabemos. Universidade de Évora de Verão do PS




UNIVERSIDADE DE VERÃO DO PS NA UNIVERSIDADE DE ÉVORA, in Expresso


Estes encontros políticos, marcando a reentré, à esquerda, à direita ou ao centro, são sempre momentos festivos em que o sonho esbarra com a realidade, e aquilo que se diz nesses fora não encontra (a maior parte das vezes) depois prolongamento nas medidas e políticas públicas. Seja porque a estrutura política, económica e social do país não deixa, os recursos não permitem, seja ainda porque o quadro de mentalidades oferece resistências e a entropia organizacional é geral. 

Ficam, contudo, os registos das intervenções úteis para publicação posterior e abrir mais o partido à sociedade, mediante a polémica e o debate, com isso pretendendo alargar a sede de apoio socioeleitoral, pois é também esse o objectivo deste tipo de eventos políticos, ainda que mitigados com uma componente cívica e académica.


- Os utópicos tentarão fazer aquilo que fazem sempre: a quadratura do círculo, apelando ao melhor liberalismo com a mais potente igualdade fazendo, assim, o pleno, "agradando a gregos e troianos". Resultado: mais utopia - sem que das propostas decorra algo de concreto e útil para o país;

- Os realistas, por sua vez, vão para estes encontros de verão pensando que a importância dos seus discursos é tal que têm suficiente força para interferir na realidade e corrigir os males do mundo no day-after;

- A grande vantagem destes encontros é, salvo melhor opinião, a dois títulos: a cobertura mediática pelos media, recentrando as actividades do partido A, B ou C no agenda setting nacional, que é o pasto que as estações servem à plebe pela hora do jantar; e também o diagnóstico que tais discursos têm a virtude de fazer denunciando, por essa via, o mal-estar da política corrompida pelos interesses e pela deflação das ideologias - a que se juntou, para a gravar o clima geral, a desconfiança progressiva, senão mesmo aversão por parte dos eleitorados relativamente a alguns políticos que têm dado péssimos exemplos (éticos, morais, cívicos e até políticos) às populações, e aos jovens em particular - convidados, compulsivamente, a emigrar. 

Convite nunca visto em Portugal, nem no tempo da ditadura de António Oliveira Salazar. A esta luz, este "convite" (reiterado sob diferentes formas) é uma novidade política, mas também espelha a novidade económica e social que reflecte a miséria da nação e a fraca qualidade das elites dirigentes que exercem o poder, além do reconhecimento da derrota implícita nesse convite, dado que se admite, preto no branco, que a economia nacional deixou de ter capacidade e condições para absorver os seus próprios quadros - saídos das universidades e politécnicos. O que é uma tragédia nacional, talvez a maior após 1974. Agora, já não se fala em Portugal em instalar o saneamento básico às populações, pretexto ainda em curso nas eleições angolanas; hoje o tema é o convite aos desempregados nacionais à emigração compulsiva. 

Todavia, devemos reconhecer a inteligência e a oportunidade na escolha dos 4 temas-quadro desta reentré do PS na sua universidade de verão, a realizar em na histórica Universidade de Évora, donde procurará nascer o bastião que conduzirá o PS à vitória nas próximas eleições legislativas, daqui a três anos, folga temporal bastante que levou Passos coelho a dizer o que disse, ao afirmar: "quero que as eleições se lixem", pois em três pode-se manipular muito orçamento, mexer em inúmeras políticas públicas, compensar interesses preteridos, satisfazer clientelas e corporações penalizadas e o mais. Em três podem-se gerar muitos milagres e confeccionar muitos ingredientes secretos que farão da economia portuguesa, à última da hora, um tigre asiático com 7, 8 e 10% de crescimento ao ano. 

Esses quatro temas-quadro são: 1) Economia justa - relevante pela incapacidade de por a economia nacional a crescer, sem o qual não haverá mais e melhor repartição da riqueza; 2) Sociedades coesas - pela pressão que pessoas, famílias e empresas sofrem, seja por via da brutal carga fiscal, seja pela precarização galopante das condições de trabalho, o que fragmenta ainda mais a sociedade portuguesa, tradicionalmente subsidiopendente do Estado e das suas estruturas de apoio social; 3) Europa das pessoas - por contraponto à Europa dos processos de decisão liderados quase em exclusivo pelo eixo franco-germânico e por uma elite dirigente europeia sem capacidade, estatuto e grandeza para reconstruir a Europa de J. Monnet e R. Schuman - do pós-IIGM; 4) Democracia activa - ou mais participativa - aproveitando as redes sociais e outras modalidades de participação e de auscultação das preocupações, interesses e expectativas das sociedades a fim de estreitar mais as relações de confiança entre governados e governantes que, hoje, se encontram manifestamente afastadas e descrentes. 

Creio, contudo, que estes quatro temas propostos - inteligentemente - pela direcção do PS para debate, ou o estádio de desenvolvimento (por efeito de contraste) em que eles se encontram em concreto na sociedade portuguesa, que está completamente paralisada, tributada, desempregada, endividada e, mais grave, sem qualquer esperança, sendo importantes, são, presumo, o sub-produto de duas revoluções simultaneamente ligadas: uma de ordem tecnológica; e outra de ordem económica, qual espécie de 2ª revolução capitalista. Esta última definida pela globalização competitiva da economia e pelo predomínio da esfera financeira sobre a economia real.

Contudo, ela não deixa de assentar, acima de tudo, nas chamadas auto-estradas da informação e na alterações daí decorrentes na esfera da comunicação. Se associar-se a esta ideia, já comum, a circunstância de que o objectivo da produtividade e uma rentabilidade acrescidas em todos os domínios da economia portuguesa, que teima em não crescer, sendo certo que o aumento das exportações não espelha a saúde global da economia portuguesa, como alguns procuram fazer crer, compreendemos que aquelas revoluções (tecnológica e económica com hegemonia financeira) não poderá deixar de afectar a natureza das políticas públicas, as relações de confiança entre governantes e governados, a forma como se captura o poder, frequentemente associado a um discurso facilitista e de promessas alicerçadas na "mentira política", na qualidade (fraca) da democracia representativa, sequestrada por interesses corporativos que absorvem a maior parte dos recursos do Estado e potenciam os mecanismos de corrupção entre nós. 

Eis alguns dos factores que impedem a institucionalização e a normalização em boas condições daquelas quatro questões propostas pelo PS - de operar na economia e sociedade portuguesas. 

Quer dizer, boa parte da economia é injusta e corrupta, até pela manifesta inexistência do funcionamento eficaz da justiça em Portugal, que é um verdadeiro câncer social e económico no país; a sociedade está cada vez mais fragmentada, originando formas crescentes e imaginosas de criminalidade que não são detectadas atempadamente pelas forças e autoridades policiais, gerando um sentimento difuso de insegurança na sociedade; a Europa está sequestrada pela Alemanha de Merkel e só actua a peso de dinheiro (que ele tem e controla) e de interesses também por ela dominados; a democracia activa converteu-se num espectador passivo, e mesmo com as redes sociais, paradoxalmente, os poderes públicos, o Estado permite-se manter no Governo pessoas que, noutros países em que a democracia e a justiça funcionam, já há muito teriam sido demitidas e, muitas delas, estariam a cumprir pena na cadeia. Mas o Estado português, consabidamente, nem dinheiro tem para pagar o papel higiénico nas escolas, quanto mais alimentar criminosos albergados nas cadeias portuguesas sustentadas pelo erário público.  

A constatação óbvia e intuitiva destes problemas crescentes na sociedade portuguesa, revela, ainda que de forma tosca, o estado da arte em que nos encontramos: sem economia, sem políticos à altura, sem sociedade com espinha dorsal, sem mecanismos de regulação eficazes e transparentes da democracia que temos (sequestrada pelos interesses privados de consultadorias sedeadas na Assembleia da República), com uma oposição ainda a procurar o seu papel nesta nova e incerta narrativa, e sem uma Europa social que possa ver a linha do horizonte para lá do umbigo das suas potências directoras, mormente a Alemanha que subverteu, a letra e o espírito europeu. Especialmente nestes últimos anos, e gozando duma situação de quase pleno emprego, como diria J.M.Keynes, os ideais fundadores da Europa, remetendo para o caixote do lixo da história o legado de homens como Monnet, Schuman, Altiero Spineli, Churchill, P.H.Spaak entre outros.

A pergunta que se coloca é óbvia: como sair deste impasse? Como anular esta letargia - nacional e europeia - em que caímos? Como convidar a sair do rectângulo a Troika (que nos examina regularmente como se fossemos burros) - que cá entrou com 10 milhões de portugueses ajoelhados e rezando diante dum pão-de-lo inacessível?

Como, em suma, podemos voltar a ser livres e independentes, se é que alguma vez, na evolução da história da independência nacional, o fomos?!

A questão não é fácil e tem, naturalmente, inúmeras respostas. Desconhecendo eu próprio se integro a categoria dos "utópicos" ou dos soit-disant "realistas", ou ainda o tercium genius da ideal-politik, misto de sonho e de realismo, que norteia algumas políticas externas dos Estados. Mas até ao momento, de par com as duas revoluções citadas (tecnológica e económica) - as sociedades tinham três esferas de acção: a da cultura, a da informação e a a da comunicação - que envolvia o marketing, os media empresariais, as rela. públicas, a Pub. Só que estes meios eram autónomos entre si, tinham cada qual o seu próprio sistema de comunicação e desenvolvimento.

Ora, em virtude daquelas duas revoluções - tecnológica e económica - a esfera da comunicação tende a absorver a informação e a cultura, desencadeando, assim, uma única esfera global e universal, da qual resultou a chamada world culture que, embora sendo de inspiração anglo-saxónica (ou mais americana) criou uma espécie de de communiculture de massas planetária potenciada pelas redes sociais, que tem ou pode ter - o Facebook à cabeça. 

Isto significa, na prática, que os problemas colocados pela Economia (in)justa portuguesa, mais as sociedade fragmentadas, uma Europa espartilhada e subjugada aos ditames do "marco" alemão e uma democracia hiper-corporativa à medida das actuais elites europeias, verdadeiramente iníquas para perspectivar e resolver os problemas e os desafios que têm pela frente, são, simultaneamente, problemas da economia portuguesa, mas também são problemas da economia espanhola, grega, italiana, francesa, irlandesa, etc...

Quando essas três esferas, quais bolas de bilhar (cultura, informação e comunicação) regressam ou se fundem nas duas revoluções citadas (tecnológica e económica) - que são dominadas pela economia alemã e pelas multinacionais norte-americanas, que se encontram também numa fase de alguma concentração, resta à Europa do sul um papel residual, ou seja, com pouca ou nenhuma capacidade de ser o porta-voz dos seus verdadeiros interesses nessas esferas de acção, de que depende o take-of da economia nacional. 

Esta incursão permite verificar que a INFORMAÇÃO - rapidamente se converteu numa mercadoria, e como mercadoria que é, ao menos que esteja ao serviço do bem-estar das sociedades, das comunidades e das populações em geral, mormente na Europa do sul onde os problemas de desenvolvimento, de injustiça social, de carga fiscal bárbara e sem freio, dotada duma máquina fiscal actuando arbitrariamente junto dos contribuintes, e dum aparelho de justiça "africanizado" - pela lentidão e dualidade de critérios, o que rebenta ainda mais a economia nacional e afasta qualquer investidor de querer investir em Portugal, com inúmeros custos de contexto, - é, afinal, a pedra de toque para que os eleitorados possam escolher elites melhor preparadas, produzir melhores leis e uma menos imperfeita democracia representativa e, por todas essas razões, assegurar um debate público mais produtivo, o que facilitará uma eficiente tomada de decisões em prol do bem comum e gerar um novo clima de confiança facilitador de mais crescimento, mais justiça social e mais igualdade de oportunidades e de desenvolvimento.

Mudanças que implicam a discussão sobre os quatro pontos em agenda, mas também sobre a necessidade duma nova reflexão acerca da INFORMAÇÃO, e do que podemos hoje fazer com ela, revelando ao mundo, afinal, que a forma mais eficiente de assegurar aquelas condições desenvolvimentistas de que hoje estamos privados, é auto-informarmo-nos, e não ficar à espera de discursos mais ou menos artificiais que têm a validade do tempo que demoram a ser lidos ou interpretados. 

Há, contudo, excepções, razão por que espero ver nalguns desses filósofos políticos, convidados para o evento partidário, designadamente JAM e VSM, a sagesse de reconhecer que nas suas propostas algo de útil, original e concreto poderá coadjuvar o programa político da governação emergente, num tempo e num modo em que uma certa esquerda se encontre, de novo, em condições de regressar ao poder em Portugal.

Se assim for, devemos reconhecer que a bonita e histórica cidade de Évora,  património da humanidade, não terá sido uma escolha em vão...


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terça-feira

Camões e parte do seu legado político. Tudo muda para que tudo fique na mesma


Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.
Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades



Tudo muda para, afinal, tudo regressar ao ponto de partida desse eterno retorno. Se no plano existencial e metafísico essa é uma lei natural inelutável à qual não podemos escapar, na esfera política não a podemos aceitar, de forma fatalista, até pelos efeitos nefastos que gera nas sociedades e nas populações em concreto.

Mas tudo muda, como diria Camões, ainda que no quadro duma permanência de hábitos e costumes esmagadores: as relações de força entre as pessoas, os países e as empresas, a repartição das riquezas, o quadro de mentalidades e também a política, ou seja, a luta constante pela conquista e pela conservação do poder, o modo de usar o poder, as razões que o fundamentam e até mudam os motivos de abandono do poder, variáveis com o tempo e as lideranças. 

Mas enquanto constatamos estas subtilezas mais ou menos óbvias, notamos todos que estamos cansados de mentiras: ainda por cima mentiras tão torpes quanto idiotas, a espelhar bem a cultura e a preparação  técnica dos seus autores. Pois até na arte da mentira, uma arte antiga e de que sempre se usou e abusou, há que saber montá-las, e é também nessa arte que aferimos pela "qualidade" dos seus autores. 

Agrade ou não à hipocrisia dos homens, a verdade é que os combates políticos sempre se estruturaram em torno de valores e de princípios éticos que estiveram em conflito. O que ontem era verdade continua a sê-lo hoje, qualquer que seja o regime. Nos regimes tirânicos e depois totalitários, todos os meios eram bons para garantir a dominação, então fundada no império do medo. E nesse império se burilavam mentiras, violações de vária ordem, massacres.

Com as ditaduras modernas, de Lenine a Mao, passando por Il Duce, Estaline (talvez o mais criminoso no séc. XX), Adolfo, Saddam, entre outros, podendo incluir aqui todas as ditaduras do velho e esfarrapado continente africano, as coisas não eram muito diferentes. 

Os meios modernos, "envernizados" com a propaganda, alterou o método da domesticação dos povos, sempre com o fito de os reduzir à sua condição passiva, que os privava das liberdades cívicas que os impedia de contestarem eficazmente os poderes públicos que os tiranizavam.

Com isto pretendo sublinhar o facto de serem as liberdades que, de facto, emprestam sentido à democracia, e o político, ao invés do passado, já não guia a sua acção com a preocupação de amedrontar os povos que lidera, mas procura governá-los por recurso à simpatia, ao agrado fácil e abrangente, à sedução permanente em que se converteu a arte de governar. No fundo, saber agradar a gregos e a troinanos.. Por vezes, em vão.

Daí a celebração da democracia em todo o mundo, potenciada pela utilidade que concede aos povos, afastando os métodos do poder não convergentes com ela. Mas este utilitarismo da democracia não bastou, de facto, para acabar com a velha contradição de valores, hipocrisia e mentiras - com que hoje se governa - e se engana as pessoas. Ao ponto de, tal como quem conta uma mentira, ter de encadear mais uma centena de mentiras para suportar a mentira inicial, de modo a que o engano e a ilusão tenham eficácia junto dos destinatários.

É nisto, em rigor, que se tem convertido a governação em inúmeras democracias contemporâneas, mormente em Portugal, neste rectângulo na Europa; e é por ser assim que devemos perguntar, afinal, qual a diferença entre democracia e ditadura, já que parece ser o mesmo, como ensina o florentino, Nicolau: a conquista e a conservação do poder, quaisquer que sejam os meios que tenham de ser envolvidos para atingir determinados fins. 

Todavia, o recurso à mentira coloca uma questão que atravessa ao mesmo tempo a democracia e a ditadura, unindo ambas pelo mesmo fio fatal, ou seja, a mentira revela-se ainda mais eficaz em democracia porque permite captar votos e manipular vontades do maior número de pessoas de forma doce e suave, enquanto que a utilização da mentira em ditadura impõe-se pela força, logo com mais resistência por parte das populações. 

Até nisto, as democracias ficaram mais expostas ao risco, à simulação e à dissimulação na manipulação das vontades do que as ditaduras - que dominam as populações pela força, não tendo, por isso, o trabalho de as convencer pela via argumentativa. 

O que se verifica hoje em Portugal? 

- O programa do Gov é um, mas a práxis política é outra; onde seria suposto encontrar valores, seriedade, competência e qualidade nos titulares de cargos públicos, encontramos aquilo que cada um de nós conhece mais ou menos bem desses mesmos titulares; o agenda-setting é o "arquitecto" das políticas públicas, e não o planeamento racionalizado dessas políticas; onde seria suposto identificar um desígnio nacional e um rumo para Portugal, encontramos a crónica submissão de Portugal à Alemanha de Merker e, mais grave, um deserto de ideias que não concede a Portugal nenhum papel na Europa e no mundo, apesar da nossa história e tradição cosmopolita. 

Não há, hoje, em Portugal uma única circunstância que dignifique as pessoas e o país. País que pede às pessoas que emigrem, solicitação que nem em ditadura António de Oliveira Salazar se arrogou comunicar aos seus concidadãos. 

Hoje Portugal precisa de heróis e só encontra uma cultura enraizada de chico-espertismo traduzida em turbo-licenciaturas que, provavelmente, serão apenas a ponto do iceberg que esconde muito mais do que aquilo que os portugueses julgam existir. 

Mas é o que temos. Sendo certo que a programação irá seguir dentro de momentos...

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segunda-feira

Efeitos perversos duma coligação contra-natura: governar por mentirinhas



Já se percebeu que o affair RTP está a escavacar o que resta da coligação centro-direita no poder. O PSD envia o seu testa-de-ferro, o sr. Borges para fazer o dirty job, que Relvas há muito está incapacitado de fazer; e o CDS opõe-se não só ao aumento de impostos, como também discorda da forma como este assunto da RTP está sendo tratando, ou seja, com os pés. 

Todavia, o silêncio de Portas não irá durar muito mais tempo, ainda que esta situação objectivamente lhe interesse, na medida em que quanto mais tempo o Gov estiver em lume brando, mais rapidamente o PM se deslegitima do poder perante o eleitorado e a opinião pública, o que abrirá espaço político a Portas para este rasgar novos horizontes e dar largas à sua crónica ambição política, necessária para alimentar as suas crónicas clientelas privadas, muito privadas.
Daí que, paradoxalmente, estes erros de palmatória na forma como Coelho está a lidar com a privatização da RTP, que é uma pegada barafunda, serve os interesses políticos e partidários do CDS, que, aqui, até por uma questão de Estado, já deveria ter manifestado publicamente a sua (o)posição (assumida em surdina), mesmo que isso minasse ainda mais a confiança entre a coligação que, cada vez, é mais contranatura e insustentável. 

Por outro lado, o país também não pode (nem deve) estar sistematicamente a ser governado sob o método da projecção da mentira, que se põe a circular na opinião pública para aferir reacções dos vários domínios da sociedade. Eis o propósito do Gov ao pedir ao sr. Borges que apareça nas televisões, com ar grave - suscitando um desinteresse botânico - afirmando que o Gov deve encerrar a RTP2 e concessionar o Canal1 da RTP. 

Na forma, que em democracia é crucial, Borges não tem legitimidade para o fazer; na substância, a ideia é lesiva do interesse nacional. Uma dupla derrota que o Gov, com mais este teste de polígrafo da Lapa, arrecada na sua deslegitimidade crescente aos olhos dos portugueses.

Daqui decorre que as paixões e os interesses pessoais e empresariais, muito ligados a certas pessoas deste Gov, não deveriam ser o fio condutor para privatizar o que quer que fosse. Os portugueses não são parvos, e sabem que na calha está uma negociata altamente lesiva para o erário público, ainda por cima com uma quebra de identidade e de memória indesculpáveis. Ninguém está a ver uma empresa nacional concessionada a um grupo empresarial angolano saber fazer serviço público em Portugal. 

Com que quadros? Com que know-how? Os angolanos sabem, de facto, extrair petróleo e diamantes, não têm tradição nos media, salvo se se considerar que a nova censura poderá configurar um esteio de conhecimentos interessantes para produzir conteúdos ao nível dos media...

O sr. relvas (e o sr. PM) já deveriam saber que, apesar de tudo, é preferível tiranizar o saldo bancário dos portugueses a tiranizar os seus concidadãos, como este modelo trôpego de privatização, muito matizado de ouro negro e diamantes, tem denunciado.

Creio que os portugueses, no quadro do pior cenário pós 74, preferem continuar a ser alegremente esbulhados por Gaspar, nas Finanças, do que serem idiotizados por um modelo de privatização irreconhecível, nunca apresentado, desconhecido do próprio PM, de quem o país desconhece o que pensa sobre o assunto. 

Creio, salvo melhor opinião, que o affair RTP é daqueles temas quentes que testa a fiabilidade da república na denúncia dos homens e dos seus principais pecados: cobiça pelo dinheiro através de negócios ilegítimos, senão mesmo ilegais; o puro e duro desejo de poder, assente na libido dominandi; e alguma luxúria ao saber que se pode fazer o que se quer com os bens públicos, com os recursos comuns, restando uma certa ideia de impunidade e de que o Poder em exercício encontra sempre uma regra que excepciona o seu protagonista dos piores males que pode fazer ao bem comum.

Tal como ensinou Espinosa, todos os homens procuram os proveito próprio, mas raras vezes guiados pela razão sólida; na maior parte dos casos, o apetite é o seu guia, e os seus desejos e juízos sobre o que é benéfico ao bem comum são afastados pelas suas paixões, as quais não têm em conta o futuro ou o que quer que seja.

Neste quadro doutrinário, alguém está a ver Relvas ler Espinosa? Sobretudo, com a pressa que sempre teve em licenciar-se...

Parece que hoje já ninguém disputa o desejo de honra e de glória assente na competência, no mérito, na credibilidade, na transparência - verdadeiras pedras de toque da grandeza e virtude dos homens. Coisas que este Gov nunca soube, desde que tomou posse, revelar, e é pena.., até porque é composto de gente nova. 

Até pela média de idades o actual Gov poderia dar o exemplo, mas o que fica é apenas uma mancha de carvão, envelhecida...  

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sábado

O affair RTP e o desvio à normalidade


Quando uma empresa sofre derrapagens sustentadas pelo Gov algo vai mal; há que racionalizar meios, recursos e pessoal; dispensar os funcionários menos necessários negociando com eles justas indemnizações. 
- A concessão da RTP 1, por razõe
s históricas e de identidade nacional, é um ideia verdadeiramente IDIOTA - tal como o autor(es) que a tiveram.

- Por isso, a preocupação de António Pedro Vasconcelos veiculado no Expresso é legítima, oportuna e deve prevalecer na sociedade portuguesa. Ainda que Belém, pelos precedentes conhecidos, seja mais sensível aos frutos cristalizados dos bolos-rei do que propriamente a razões de natureza e de alcance cultural e identitária. 

- Este tipo de propostas do Gov reflecte bem a ignorância funcional e a falta de preparação cultural do suposto escol dirigente, manifestamente impreparado em certas áreas da governação. Aliás, creio que isto sucede para que a opinião pública encontre a demonstração prática dessa suposição que passou a realidade, e tão lamentável que ela É!!!

- Todavia, esta atabalhoada apresentação de proposta de privatização da RTP - que nem o próprio Gov entende, o que é surrealista, remete a análise para a circunstância de que os políticos perdem a sua condição de especialistas em assuntos públicos, muitos dos quais nunca o foram de facto, para passarem a ser intérpretes da flutuação dos interesses e das vontades empresariais potencialmente interessadas na aquisição da RTP, é isto que justifica a sistemática cambalhota feita pelo Governo na forma desnorteada e contraditória como apresenta o dossier privatização RTP.

- Relvas, que tutela a área da comunicação social, pode desconhecer muita coisa, e desconhece certamente, até porque não estudou, mas sabe uma coisa: as cerimónias e os rituais políticos são hoje liturgias professadas no altar televisivo, onde o sujeito político, finalmente, ganha a sua dimensão ontológica. Mas também pode perder toda a sua credibilidade, como foi o caso por força dos escândalos de que foi autor, envolvendo uma universidade privada cujo reitor, então, também se deixou corromper. It takes two to dance tango...

- A televisão é, assim, uma esfera sensível porque do domínio da sedução, do poder, da influência e também da alienação. Eis os ingredientes do desvio comportamental em que o actual Governo caiu ao estar a gerir este delicado dossier com os pés. 

- Por outro lado, os grandes homens da informação em Portugal, que são poucos, olham os ministros com um desinteresse quase botânico, mas outros há, a maioria seguramente, temem-nos, especialmente pelo que podem perder, ou deixar de ganhar, na sequência de terem a veleidade de os criticarem publicamente. Eis a dualidade e ambivalência dos homens da informação perante os agentes políticos que decidem.

- Significa isto que os políticos não têm, nunca tiveram rédea solta, pois estão sempre mais ou menos vigiados pelos imperativos e pressão da informação a que estão sujeitos, o que faz supor, com algum fundamento, que, de facto, os políticos estão ainda muito dependentes da chamada nomenklatura jornalística que, apesar de terem menos influência junto da opinião pública do que julgam ter, em contrapartida, têm enorme influência sobre os dirigentes políticos, sempre cansados e expectantes de saber o que os jornais, revistas e televisões dizem e mostram sobre eles no barómetro da sua popularidade.Alguns vivem até obcecados com isso, embora digam, perversamente, - "que se lixem as eleições", a três anos das legislativas..., qualquer um o diz com a mesma simulação representativa na coreografia do poder. 

- Creio que esta pressão dos jornalistas sobre os políticos poderá afrouxar se estes tiverem do seu lado (mediante a privatização da RTP aos angolanos, por ex.,) empresários amigos - cujos jornalistas de quem dependem contratualmente - passarem a ser mais suaves nas críticas públicas que lhes dirigem. Logo, manter uma televisão pública na actual conjuntura, com jornalistas pagos pelo Estado é, paradoxalmente, um risco acrescido para a actual classe dirigente do que ter uma imprensa privada dependente de empresários amigos que passaram a mandar na RTP, ainda por cima com receita garantida à cabeça pelos 140ME de taxas pagas inclusas na factura da EDP pelos contribuintes, outro escândalo que deveria ser imediatamente revogado compulsivamente pelo TC. 

- Para já o resultado é desastroso, mas não surpreende na medida em que está em linha com as demais áreas da governação da actual coligação centro-direita que hoje desgoverna com afinco os assuntos de Portugal. 


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sexta-feira

Tertuliano no Pontal - por Viriato Soromenho Marques -

Nas decisões guiamo-nos por mecanismos psicológicos que se situam na categoria do que poderemos designar como "aposta média". Não se trata da aposta máxima que fazemos nos jogos de sorte e azar, mas sim na confiança que temos de que os acontecimentos ocorram dentro de uma certa ordem regular (embora não necessária). Essa regularidade pode ser natural (quando envergamos uma gabardina, depois de ler o boletim meteorológico de véspera anunciando chuva) ou convencional (quando acreditamos que o avião para o qual comprámos um bilhete está no aeroporto). Temos de apostar, pois a decisão humana faz-se sempre num contexto incompleto de conhecimento. A política é o domínio mais elevado das apostas coletivas. Nas democracias, onde existe a obrigação de os governantes se explicarem aos governados, as apostas para o futuro coletivo traduzem-se em "promessas". Mas estas, para serem credíveis, têm de se situar no nível da aposta média. Devem ser razoáveis, coincidindo com as tendências que se podem desenhar a partir do melhor conhecimento disponível. A promessa do primeiro-ministro, na Festa do Pontal, anunciando para 2013 a "inversão da atividade económica em Portugal" viola as regras do jogo da aposta média, para entrar no equívoco terreno da fé. Com os indicadores económicos nacionais a declinaram precipitadamente, a Espanha aflita aqui ao lado, e o clímax da tragédia grega anunciado para breve, a promessa do PM está mais próxima do paradoxo teológico de Tertuliano ("creio porque é absurdo"/ credo quia absurdum est) do que da boa navegação que se exige às políticas públicas. Do PM apenas queremos que contribua para nos proteger a propriedade e o corpo. Da salvação da alma cada um tratará da melhor maneira. DN

Obs: Quando as promessas feitas pelos agentes políticos em contextos eleitorais e comunicadas às sociedades não coincidem com as realizações desses agentes políticos uma vez no Governo, onde podem manipular os botões e a "caixa de velocidades" dos recursos e dos meios necessários à concepção e execução das políticas públicas, estamos diante dum fosso que cada vez mais se inscreve naquilo que pode designar-se "mentira política".

- Esta é sempre uma reinterpretação interessada da "verdade", segundo o actor que a professa na ânsia de legitimar o seu discurso e, mais do que isso, absolver os seus erros diante da opinião pública que o agente político procura, a todo o custo, seduzir com meias verdades. E fá-lo porquanto ele deseja sempre ser reeleito.

- Deste espectáculo decadente - entre a distância do discurso e da acção - resultam estragos sociais elevados, por regra suportados pelos contribuintes. Eis o que ocorre nesta "democracia de cartola relvada" em que a governação se resume, literalmente, à política do imposto, feita por imposteiros que julgam que governar consiste em tributar mais e mais os portugueses, sem que, nesse esbulho institucionalizado o Estado não faça equivalente esforço de racionalização de custos por parte da complexa máquina do Estado, hoje pendurada em passivos de milhões por entre (a)fundações e observatórios (muitos deles desconhecidos).

- Razão tinha (e tem) Maurice Duverger, um sociólogo de sólida formação, com quem sempre se aprende, quando revelava que a história do Estado era a história do imposto. Contudo, se o autor conhecesse de perto a praxis política portuguesa teria uma surpresa desagradável, dado que nunca teria pensado que a sua professia se condensasse tão trágicamente em Portugal como o actual Gov neoliberal tem imposto aos portugueses.


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domingo

1826 - O estado do País segundo Garrett

Uma pérola do nosso realismo político e sociológico que urge recuperar.

[...] Estamos num país pequeno, pobre, mal povoado, mal educado. Certo é, ainda mal que certo; pequenos somos, pobres nos fizeram, despovoados nos deixaram, pessimamente nos têm educado. Mas são esses os males tão graves, tão renitentes, tão incuráveis, como a ignorância ou a má fé, senão é que ambas juntas nos pregam partidas todos os dias? 

Mal dividido, incomunicável quase é esse território porque as naturais comunicações por água são poucas e derrancadas, artificiais nenhumas, e por terra passaram em provérbio as estradas de Portugal. Desses belos portos muitos ou estão inutilizados pela incúria da administração como o de Viana e outros, ou desaproveitados pelo mesmo desleixo como o de Aveiro: muitos de pouco prestam pelo abandono do governo, que não provê a nenhuma das comodidades e seguranças que se buscam ao demandar e ancorar em um porto. Outros não são metade do que podiam ser, e nessa conta vão os primeiros e mais frequentados do reino, como o do Porto, e ainda direi o de Lisboa (por não deitar aqui o que noutro lugar mais devagar trataremos, e só notar de passagem um objecto que todos conhecem), os poucos faróis que convidam e guiam a entrar num dos primeiros ancoradouros do mundo, parecem antes fanais mandados acender por alguma mão caritativa para avisar o navegante de que se afaste e fuja de um país onde se persegue o comércio, a indústria é crime e o amor do trabalho capitulado de inovação perigosa.

Amargas, duras, desanimadoras verdades são estas; mas verdades são. Porém, o mínimo senso comum, já não digo o amor da causa pública, o mínimo lampejo de razão nos administradores do estado, não pode remover estes males que nem nascem da natureza do terreno, nem de sua pequenez provém, nem irremediáveis são?

Somos pobres. Não há dúvida que o somos; muito mais se se olhar ao quanto ricos podíamos ser. E ainda assim não é tal a nossa pobreza que, a par com muitas nações, não possamos considerar-nos abastados. A principal origem da nossa pobreza é a desigualdade dos haveres: este achaque só tem remédios, um falível, imperfeito e demais horroroso e abominável, é o sistema nivelador que os descamisados franceses queriam dar ao seu país, de sanguinosa e execranda memória. Outro que é o que em Inglaterra  tem dado a indústria e o comércio, que todos os dias mete na balança das fortunas públicas muitos milhões, com que ela se equilibra apesar do demasiado peso com que para o outro lado a pende a massa enorme da indivisa propriedade natural, urbana e rústica, quase toda nas mãos de certas famílias. Em Portugal não é o vício nem um décimo do que é em Inglaterra; e os remédios são, portanto, mais fáceis. Talvez nenhuma nação de nosso tamanho tenha a quantidade de numerário que nós possuímos ainda hoje mesmo; estagnado, sim, por avaros cofres enterrados, e com razão, por seus possuidores, porque aonde não há segurança para o especulador ninguém quer arriscar seu dinheiro. Haja, porém, essa segurança e ver-se-á circular o sangue do Estado por suas veias e artérias logo que lhe desatem as compressas com que todos os membros do corpo lhe têm ligado. 

A nossa agricultura está em miserável estado; mas não toda, porque a dos vinhos não vai ainda tão decaída como a dos cereais. E essa mesmo tem, conquanto lentamente, melhorado muito do triste estado em que a achou a lei de 1821..

Os vinhos são o nosso primeiro género de cultura de exportação. Que tem feito a administração para o animar? Quantos tratados de comércio poderiam fazer com as potências cujos géneros nós importamos, ou podemos importar!

A cultura das árvores para madeira é uma coisa abandonada inteiramente entre nós, e todavia quase não haverá género algum de árvore que em nosso clima se não dê perfeitamente. Resta-nos o pinhal de Leiria, [...]

Não falaremos da exploração das minas, que muitas temos; não mencionaremos as fábricas, das quais muitas já floresceram tanto, muitas facilmente podem florescer; isso exige longo, pausado espaço para se tratar, nós so podemos por ora tocar os capítulos das coisas. Numa porém nos demoraremos um momento mais, que é a mais certa e poderosa causa da nossa pobreza; queremos falar da falta de comunicação em que as províncias do reino estão umas com outras, estão ainda entre si as terras de uma mesma província. Este estado de isolação produz dois males terríveis que um do outro se geram: 1.º, a nulidade do comércio interior que é a mais segura fonte da prosperidade pública, que é aquele que maior número de cidadãos enriquece, e que mais espalha e equilibra as fortunas públicas; 2.º, a estagnação, que daí provém, dos grandes capitais nas terras principais do reino, que por não terem canal por onde derivem para ir fertilizar o interior do país, ou apodrecem nas burras dos enormes capitalistas, ou refluem para mais industriosos países.

E sem falar nas estradas, cuja administração tem sido sempre a mais absurda; quantos ribeiros há em Portugal que podem formar excelentes canais para a chamada navegação de terra? Quantos rios que seriam navegáveis, se tão somente removessem os obstáculos que a sensualidade e a cobiça dos grandes proprietários eclesiásticos e seculares lhe têm posto com seus açudes, pesqueiros, etc., etc., quantos, que sem muita despesa, o seriam? [...]

Triste estado, mísero povo que a tal chegou! Muita fé é precisa para esperar a salvação pública em tal posição. Essa fé temos nós todavia, porque não há nada que as boas leis não emendem.

Essas leis esperamos nós de uma legislatura em que todas as opiniões, todos os interesses estão representados; em que desde o trono até ao último peão, todos os membros da grande família, ou per si ou por seus procuradores, concorrem ao exame das necessidades públicas e dos meios de as remediar.

Almeida Garret. «Estado actual de Portugal na abertura das cortes geraes de 1826», in O Portuguez, n.º 1, 30-X-1826.






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sábado

Revolución en el vacío El plan de Annan para Siria ha acabado degenerando en una guerra por poderes entre EE UU y Rusia


En ningún caso se refleja más claramente que en el de Siria. Lo que debía ser un plan coordinado para proteger a los civiles de una represión despiadada y un avance hacia una transición pacífica —el formulado por el ex secretario general de Naciones Unidas Kofi Annan— ha acabado degenerando en una guerra por poderes entre Estados Unidos y Rusia.
Los dirigentes de Rusia (y China) intentan defender un sistema internacional basado en la soberanía incondicional de los Estados y rechazan el derecho de injerencia humanitaria, de inspiración occidental. Preocupados por que las rebeliones árabes radicalicen a sus propias minorías reprimidas, se niegan a permitir que se utilice el Consejo de Seguridad de la ONU para fomentar cambios revolucionarios en el mundo árabe, y Siria, el último baluarte ruso de la guerra fría, es un activo que el Kremlin hará todo lo posible por conservar.
Pero Rusia y China no son el único problema. Las más importantes democracias emergentes como Brasil, India y Sudáfrica han sido particularmente decepcionantes en su reacción ante la primavera árabe.Todas ellas son adalides declarados de los derechos humanos a la hora de condenar cualquier ataque defensivo de Israel en Gaza como “genocida”, pero se muestran igualmente unidas al oponerse a la adopción de medidas sobre Siria por el Consejo de Seguridad, justo cuando la represión en este país resulta más atroz que nunca. Los levantamientos árabes o bien chocaron con su compromiso con la inviolabilidad de la soberanía nacional o bien aumentaron su temor a que una “intervención humanitaria” fuera simplemente otro instrumento de dominio del Norte.

En el programa de Estados Unidos ya no hay grandes proyectos para Oriente Próximo
La reacción de Occidente ha sido mucho más favorable a las aspiraciones de los árabes, pero también ha sido contradictoria y desigual. Tanto Estados Unidos como Europa pasaron años dedicados a un monumental ejercicio de hipocresía política, al predicar el evangelio del cambio democrático y al tiempo apoyar a tiranos árabes. No es de extrañar que se encontraran sin instrumentos para abordar las revoluciones árabes.
De hecho, en ningún momento desde el comienzo de la primavera árabese ha podido discernir una estrategia occidental coherente para abordar sus muchas dificultades e incertidumbres.
En cada caso se ha reaccionado de forma diferente, ya fuera por las limitaciones impuestas por la política de poder internacional, como ocurre ahora con Siria, o por consideraciones económicas y estratégicas, como en Arabia Saudí o Bahréin.
Por su parte, Estados Unidos no abandonó inmediatamente a aliados autoritarios, como, por ejemplo, el Egipto de Hosni Mubarak y el Túnez de Zine el Abidine Ben Ali. Si estos hubieran mostrado más rapidez y eficacia para reprimir las protestas de las masas, podrían seguir en el poder actualmente… con la bendición americana. Estados Unidos no se volvió contra ellos porque fueran autócratas, sino porque no lo fueron con suficiente eficiencia.
Entretanto, Europa se encuentra paralizada por una crisis financiera que amenaza la propia existencia de la Unión Europea. Los instrumentos tradicionales de política exterior de la UE —el “fomento de la sociedad civil” y “el fomento del comercio”— no son sustitutos válidos de una estrategia para afrontar el nuevo juego de poder en el Mediterráneo. Y sin embargo, Europa se ha mostrado totalmente incapaz de reaccionar de forma apropiada ante unas condiciones en las que los regímenes islamistas están estableciendo independientemente sus prioridades y agentes externos —Catar, Arabia Saudí, Turquía, Rusia, China y tal vez Irán incluso— están rivalizando para obtener influencia con una extraordinaria combinación de potencia de fuego financiero y fuerza política.

Rusia y China defienden un sistema internacional basado en la soberanía incondicional de los Estados y rechazan el derecho de injerencia humanitaria, de inspiración occidental
Europa no puede permitirse el lujo de permanecer al margen. La Operación Protector Unificado de la OTAN en Libia fue un gran éxito para la Alianza, pero la decisión de Estados Unidos de permitir que Europa asumiera la dirección indicó también su intención de “reequilibrar” sus prioridades mundiales. En vista de que Estados Unidos está centrando su atención en Asia y el Pacífico en lugar de en los intereses vitales de Europa, el Mediterráneo y Oriente Próximo, ya no se puede esperar que tome la iniciativa para resolver las crisis en el patio trasero de Europa.
De hecho, en el programa de Estados Unidos ya no hay grandes proyectos para Oriente Próximo. Desde su victoria en la guerra fría, la hegemonía de Estados Unidos en Oriente Próximo ha sido una historia de frustración e inversión en sangre, sudor y fondos no recompensada. Ahora se espera un cambio en pro del realismo en materia de política exterior, y la reciente reunión de la secretaria de Estado, Hillary Clinton, con el presidente islamista de Egipto, Mohamed Morsi, es una clara indicación de la nueva orientación de Estados Unidos.
Las consecuencias de semejante cambio son de gran alcance. A raíz de los ataques terroristas del 11 de septiembre de 2001, Estados Unidos vio el mundo islámico casi exclusivamente a través del prisma de la “guerra mundial contra el terror”. Sin embargo, ahora las autoridades reconocen que fue precisamente la persistencia secular de autocracias árabes lo que fomentó el terrorismo islamista.
A consecuencia de ello, la premisa más importante de la política actual de Estados Unidos es la de que una pérdida de confianza de los islamistas en el proceso democrático tendría consecuencias adversas y de que la restauración de los antiguos regímenes podría amenazar los intereses occidentales más que un gobierno de los Hermanos Musulmanes. Ahora Estados Unidos está entablando prudentemente relaciones con los nuevos dirigentes islamistas con la esperanza de que no pongan en peligro los acuerdos de paz propiciados por Estados Unidos (Israel-Jordania e Israel-Egipto) ni obstaculicen las medidas adoptadas para poner freno a las ambiciones nucleares de Irán.
La de hacer realidad dicha esperanza no es una tarea fácil. La agitación en las sociedades árabes va a persistir sin lugar a dudas en los años futuros y es de esperar que las potencias mundiales y regionales en ascenso aprovechen la fragmentación del orden internacional para hacer avanzar sus intereses en esa región.
Dada la confusión en que está sumida Europa y la resistencia de la crisis nuclear de Irán a una resolución diplomática, el nuevo realismo de la política exterior de Estados Unidos podría muy bien significar que, por mucho que les desagrade, se vean obligados en última instancia a revisar su “estrategia reequilibradora”.
Shlomo Ben Ami, exministro de Asuntos Exteriores de Israel, es actualmente vicepresidente del Centro Internacional por la Paz de Toledo. Es autor de Scars of war, wounds of peace: The Israel-Arab tragedy.
© Project Syndicate, 2012.
Traducido del inglés por Carlos Manzano.

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sexta-feira

Mapa do desemprego na Europa


O mapa dá-nos a percepção dos problemas relativos ao desemprego dos países que têm maiores dificuldades com as suas dívidas soberanas e, por consequência, dos que têm dificuldades em liquidar os seus empréstimos junto das instituições credoras. O problema com a economia espanhola afigura-se o mais grave, seguido da Grécia. A situação em Portugal, mormente a sul, também já é preocupante e a tendência será para agravar os níveis de desemprego, pois as crescentes medidas de austeridade, as falências das empresas e a incapacidade de atrair IDE fazem de Portugal um país desinteressante para qualquer investidor externo. Enfim, um quadro negro com o centro da Europa, com a Alemanha à cabeça, a beneficiar duma situação de quase pleno emprego, a contrastar com o resto da Europa do sul. Mais informação pode ser recolhida no site de: 




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quinta-feira

Viriato Soromenho Marques fala-nos da crise, de Portugal, da Europa, do federalismo, da fuga de capitais, do mercado e da democracia representativa


  • Uma entrevista para ler com calma, com alma, com tempo. 
  • Uma viagem guiada por Viriato Soromenho Marques - que é um pequeno tratado de diversidade tocando em todas as questões políticas essenciais da Europa do nosso tempo. A saber: a ideia de que a Troika não vai conseguir revigorar a economia nacional porque a dinâmica europeia fará implodir esse esforço e ninguém assegurará os compromissos fixados; a ignorância das elites dirigentes; a perda dos poderes clássicos da soberania cambial do Estado nacional; a bonomia de Passos coelho que não passa, afinal, de miopia assente numa crença perigosa no neoliberalismo dos mercados; o oportunismo do Gov que cavalga a onda da crise para impor reformas que seriam inaceitáveis noutra conjuntura; a política europeia não é mais do que ir a despacho com Merkel; a grande desilusão de Paulinho Portas - afinal uma espécie de guia turístico desta Europa (igual papel tem Durão na Europa); a implosão do Estado social; a fraca produtividade e competitividade nacionais; a necessidade de mais União Política; o federalismo fiscal; os mercados e o reconhecimento da democracia representativa como a forma superior de democracia. 
  • Enfim, um menu recheado de temas quentes para ler e meditar. 



VIRIATO SOROMENHO-MARQUES
crise:
PODE ACONTECER
UM MILAGRE,
MAS TEM DE SER
MESMO MILAGRE

António Baldaia
entrevista
Ana Alvim
fotografia



P: Tendo como diagnóstico a crise, Portugal continua doente
ou está em convalescença, como dizem alguns? Ou, pelo
contrário, está em pré-coma?

R: A situação é muito delicada. Penso que há consenso em
relação a isso; a divergência é se estamos numa situação difícil,
mas ainda sem bater no fundo, ou numa trajetória de
recuperação. Respondo que depende dos fatores externos,
que são essenciais para a nossa existência como país, como
Estado-Nação e como membro de uma união que também
está fragilizada.
Não partilho a visão do Governo, que considera o programa
de ajustamento não apenas necessário, mas virtuoso; eu
considero que só foi necessário do ponto de vista de quem
o colocou, ou seja, é um programa de credores e, basicamente,
pretende que Portugal honre os seus compromissos
em termos de dívida ao exterior. O Governo entende que o
programa da troika tem um conjunto de características que
vão revigorar a nossa economia; eu tenho fortes dúvidas, e
diria mesmo que não.
Ou seja...
O programa está condenado a ser reformado numa perspetiva
de crescimento e desenvolvimento; ou a ser interrompido,
porque entretanto a Zona Euro [ZE] rebenta e ninguém
cumpre compromissos.
Portanto, o Governo está a apostar no cenário, impossível,
de que tudo segue tranquilamente até setembro de 2013.
Mesmo que isso acontecesse, seria impossível Portugal voltar
aos mercados, porque nessa altura já nem sequer teremos a
única coisa que ainda atrai alguns investidores internacionais,
que é o tecido empresarial. Que estamos a vender.
Este programa de ajustamento revelou a profunda ignorância
dos nossos dirigentes, das nossas elites. Uma ignorância que
tem uma raiz moral, porque é voluntária. Repare que há uma
condição matricial para que este programa nunca pudesse
resultar. Porque estes programas são do Fundo Monetário
Internacional, para países em vias de desenvolvimento, que
não fazem parte de uniões económicas e que têm moeda
própria. E uma das condições fundamentais para que o programa
pudesse ter sucesso – ainda que com um custo social
muito grande – seria Portugal ter moeda própria. Porquê?



Viriato Soromenho-Marques

é professor catedrático de Filosofia
na Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa, membro
correspondente da Academia das
Ciências de Lisboa e membro do
Conselho Nacional do Ambiente e
Desenvolvimento Sustentável.
Grande Oficial da Ordem de Mérito
Civil e da Ordem do Infante
D. Henrique, é autor de diversas
obras sobre temas filosóficos,
ambientais e estratégicos e comentador
regular da atualidade política na
imprensa diária e na televisão.
Especialista em assuntos europeus,
a conversa com a PÁGINA centra-se
na análise da situação atual. ...




Para poder jogar com a inflação e com a desvalorização?

Porque podia jogar com a inflação. No fundo, os 17 países
da ZE perderam dois poderes soberanos. O poder de emitir
moeda, que permitiria que, em determinadas circunstâncias,
o Estado se aliviasse das suas dívidas através da emissão
de moeda. Que provoca inflação. E a inflação é o imposto
mais universal e menos doloroso – porque se perde poder de
compra de uma forma totalmente repartida (ninguém escapa
à inflação) e porque não é diretamente visível.
Não é a mesma coisa que cortar no vencimento?
Nós tivemos períodos de inflação, nos anos ’80, em que as
pessoas perderam 30 por cento do poder de compra! Não
é a mesma coisa, não é?
Segunda perda: competitividade externa. É completamente
diferente estar a exportar para uma Alemanha que tem o
euro, como nós, do que a partir do nosso escudo. Porque
poderíamos desvalorizar ou valorizar, consoante nos fosse
conveniente. Portanto, a política cambial é um fator de competitividade
que não temos. Resultado: essa coisa monstruosa
chamada desvalorização interna, que é apertar o cinto até
rebentar. Só uma pessoa com a bonomia de Passos Coelho
para acreditar que isto vai levar a outra coisa que não seja
uma sociedade mais injusta, mais pobre, com feridas muito
profundas, e que – no caso de a ZE e o projeto da União
Europeia [EU] não avançarem – vai obrigar a uma reinvenção
do país de uma dimensão que não podemos antecipar.
Não há previsão?
Não há histórico. Ou seja, vamos ter de reinventar um conceito
estratégico debaixo de escombros.
Quando ouço algumas previsões, nomeadamente dos governantes,
assalta-me a ideia de que isto não pode ser só
ingenuidade, desconhecimento...
Não, não... Qual é o racional do governo português?
... Parece que se aproveita a boleia da crise para promover
reformas, ou mudanças, que de outra forma não passariam,
ou seriam consideradas inconstitucionais, e que dificilmente
terão recuo. Uma espécie de golpe constitucional, de Estado...
A sua leitura faz sentido. Nós vivemos uma situação excecional,
num estado de exceção. Isto é, não temos recolher
obrigatório, não temos as leis completamente suspensas,
mas a verdade é que o Tratado de Lisboa é letra morta. As
instituições europeias não funcionam! Temos um diretório –
formado por um só membro, que é a Alemanha e a maioria
da senhora Merkel – que comanda as posições europeias.
No fundo, a política europeia resume-se a despachar com
a senhora Merkel.
A partir do momento em que fazemos parte da UE, a Constituição
não tem o valor absoluto que tinha. Evidentemente
que corresponde a uma ordem jurídica fundamental, todavia,
uma parte importante do tecido coletivo está dependente
do Tratado de Lisboa e de tudo o que construímos com os
nossos parceiros. O que significa que, neste momento, a senhora
Merkel manda mais do que a nossa Constituição. E
há um conjunto de medidas excecionais, que rigorosamente
são anticonstitucionais, como os cortes nos salários da
função pública, que só se admitem porque estamos a viver
momentos excecionais.
Ia referir-se ao racional do Governo...
Para explicar o racional do Governo, há três razões principais.
Em primeiro lugar, esta crise revelou o que suspeitávamos – a
elite política do bloco central não tem uma mínima ideia do
que seja a construção europeia. Portugal entrou na Europa
como um freguês, como um cliente à espera da melhor oferta,
alguém à espera de um saldo...
E à procura de subsídios...
Exatamente. E depois, dos saldos. Para mim, uma das coisas
mais perturbadoras, uma das maiores desilusões (não é Passos
Coelho, nem Vítor Gaspar), é o ministro dos Negócios
Estrangeiros – uma figura inegavelmente inteligente, mas
que perante esta crise revelou um profundo vazio de ideias
em relação à Europa.
Que parece ter desaparecido…
Desapareceu. Em África, no Brasil... Está a vender o país
aos PALOP como se fosse um promotor turístico, quando
era suposto que tivesse uma visão crítica sobre o processo
de construção europeia. A verdade é que Portugal não tem
uma única ideia sobre a Europa.
Segunda razão: quando não se tem ideias, pelo menos sabe-
-se quem manda. E o Governo sabe que quem manda é
Merkel. Portanto, a política de Portugal é fazer tudo o que
possa agradar à chanceler. Porque foi ela que patrocinou o
plano de resgate, foi ela que montou o Fundo Europeu de
Estabilidade Financeira, é da Alemanha que vem o financiamento
principal e, no caso de as coisas correrem mal, será
à Alemanha que iremos pedir auxílio.
A terceira razão vai ao encontro do que tinha sugerido. Para
mal dos nossos pecados, temos à frente do Governo pessoas
que têm um programa ideológico. Isto é, a pós-modernidade
só aconteceu para a esquerda [risos], só a esquerda perdeu
as grandes narrativas, e por isso está mais sensata e procura
ter aquilo que a política sempre é – uma análise da realidade
a partir das condições concretas e da relação de forças.
Ausência de ideias, reconhecer quem manda, programa
ideológico…
Temos um primeiro-ministro que acredita no liberalismo e no
ultraliberalismo contra toda a evidência – a ideologia é isso
mesmo, acreditar nalguma coisa contra toda a evidência; que
acredita que a destruição do Estado Social é inevitável; que
acredita que o nosso caminho é tornarmo-nos chineses. E é
por aí que vamos, quando a China já não quer ser chinesa...
Portanto, seria terrível para Portugal se, por ventura, o Governo
mandasse no país, mas não manda. Ou seja, uma das
coisas que limita a desgraça em que estamos envolvidos é que
os fatores de esperança são externos. De facto, o Governo
não está a executar um programa que tenha elaborado, está
a executar o que lhe deram para as mãos – que, aliás, foi
negociado pelo governo anterior. E o PS devia honrar mais
vezes o silêncio, porque nós ainda não esquecemos o que
foi a governação socialista!
Que alternativa, então, para a ação governativa?
Uma verdadeira política patriótica seria uma política totalmente
concentrada na construção europeia. O modelo
que sempre defendi para este Governo seria o seguinte:
uma parte teria de aplicar o programa da troika, porque
não tivemos alternativa; mas a outra parte – o cérebro do
Governo: primeiro-ministro e ministros das Finanças e dos
Negócios Estrangeiros – deveria estar na linha da frente
da negociação europeia, para levar o Conselho Europeu a
mudar de posição com argumentos racionais. Essa seria a
nossa diferença em relação à Grécia: mostrar coesão social,
que é um capital político muito importante do nosso país, e
ter a inteligência de dizer aos nossos parceiros que este é um
caminho do abismo e não, como faz o primeiro-ministro,
que é o caminho da salvação.
E que até queremos ir mais longe...
A ferida narcísica de estar a aplicar um programa completamente
alheio ao interesse nacional deve ter desencadeado
um processo de identificação com o agressor [risos], que
leva a essa coisa absurda de querer ir mais longe do que a
troika e revela uma ausência total de alternativa. Absolutamente
inenarrável!
O importante era ter sido capaz de dizer “nós precisamos
de uma agência europeia da dívida pública que retire aos
países essa competência”, porque os países não podem andar
ao mesmo tempo a pedir dinheiro lá fora e a aplicar austeridade
cá dentro. Tem de ser uma autoridade comum e a
solidariedade política da união a tratar da questão da dívida
pública, e também da questão da banca. São dois problemas
centrais. Mas o Governo não tem avançado com nenhuma
ideia e – se as coisas degenerarem, como provavelmente
vai acontecer – Portugal corre o risco de ser conduzido, de
relatório positivo da troika em relatório positivo da troika,
até ao desastre.
Quem é que realmente provocou esta crise? A crise é dos
meios de produção ou somos nós que trabalhamos pouco?
Ou, admitindo que há mesmo uma crise, ela não será de
valores, de opções ideológicas, mais do que financeira?
Talvez começar por dizer que esta crise não é da dívida
soberana, como tem sido reconhecido. Quando diagnosticamos
uma doença de forma errada, não encontramos
terapias adequadas. E o resultado está à vista: 12 países em
recessão, dez deles da ZE, porque têm aplicado receitas para
uma doença que não é a deles. Portanto, a visão moral da
crise – Estado gastador, cidadãos pouco trabalhadores – é
absolutamente errada.
Dizem que trabalhamos pouco, que não produzimos...
Uma coisa é o tempo de trabalho, outra é a produtividade.
Mas isso também tem a ver com a organização, com as elites!
E com o outro lado do trabalho, com o capital... Basta ter
uns dinheiros e qualquer um é empresário.
É isso. Para começar, é preciso ter capital, mas para o ganhar
é preciso saber, e isso tem a ver com a produtividade, não
tem a ver com os trabalhadores. Os trabalhadores portugueses
são muito bons em qualquer parte do mundo, tão
produtivos ou mais do que os outros. Tem a ver com uma
elite empresarial laxista. Há exceções notáveis, mas temos
um tecido económico muito perdulário, muito pouco produtivo
e competitivo.
Sintetizando, quais são, então, os fatores da crise?
Diria que temos três fatores fundamentais. Desde o início que
se percebia que a união económica e monetária não ia dar
certo, por não ser possível federalizar a emissão e a desvalorização
da moeda – que foram federalizadas para o Banco
Central Europeu [BCE] – sem ter uma união política. Nós
estamos numa aventura inédita, a fazer o contrário do que os
americanos fizeram, que construíram a união política antes
de terem o dólar, muito antes de terem um banco central.
Fundamentalmente, o que nos falta é caminhar claramente
para a união política, o que significa...
Um governo central?
Termos um governo europeu responsável perante os cidadãos.
A ideia de fazer tratados atrás de tratados, em que os
povos não participam, está condenada ao fracasso. Portanto,
precisamos de união política. E isso significa ter uma política
orçamental e uma política fiscal comuns. O que acontece é
que o orçamento da união e da comissão é de um por cento
do PIB europeu. Desde ‘88 que há uma lei, não escrita, que
limita a 1,27 por cento esse orçamento, enquanto o conjunto
dos Estados-membros, o Conselho Europeu, tem um
orçamento de 44 por cento do PIB.
E como se constrói um orçamento europeu?
Na minha perspetiva, o orçamento europeu terá de ter, pelo
menos, 5 por cento do PIB, e isso só é possível através de
uma reforma fiscal, de uma mudança das receitas fiscais do
orçamento da Comissão Europeia/Governo europeu. Temos
de passar de um mecanismo em que há governos que dão
mais e governos que recebem para um mecanismo de receitas
comuns da UE, baseadas no capital e no trabalho e com
percentagens universais.
E como é que podemos criar um verdadeiro federalismo fiscal?
É muito simples: criar uma regra comum, de acordo com
a qual, por exemplo, 4 por cento de todo o IRC recolhido
na ZE vai para o Tesouro Comum, bem como 5 por cento
ou 4 por cento do IRS. Isto permitiria termos um Governo
europeu com um orçamento de três, quatro ou cinco por
cento do PIB e com isso criar programas de investimento em
projetos comuns. E poderia alavancar as euro-obrigações.
Uma das conclusões a que cheguei é que os nossos economistas
podem perceber de muita coisa, mas de economia
percebem pouco. Tenho lido as coisas mais formidáveis sobre
os mercados, de economistas de direita e de esquerda, e as
receitas são absolutamente de fugir!
E a verdade é que todas têm falhado.
Falham e posso explicar porquê. Uma das coisas que está mal
é termos um BCE incompleto, que não é um banco central
a sério, porque um banco central a sério tem a função de
garantir a estabilidade dos preços. O BCE tem essa preocupação,
mas tem também uma coisa muito importante, que é
manter o horizonte do pleno emprego. Isto significa que, por
exemplo, quando o Estado emite dívida pública no chamado
mercado primário, o banco central está lá e compra dívida do
seu Estado. Ora, o artigo 123º do Tratado de Funcionamento
da União Europeia (TFUE) proíbe expressamente o BCE de
comprar divida pública dos Estados no mercado primário...
FEDERALISMO FISCAL:
UNIVERSALIDADE
E COMPETITIVIDADE
FEDERALISMO FISCAL:
UNIVERSALIDADE
E COMPETITIVIDADE
...

Isso significa o quê? O mercado primário é mais barato…
Exatamente! Ou seja, o banco central faz uma coisa absolutamente
estúpida: compra a dívida pública portuguesa no
mercado secundário, a 12 por cento, em vez de comprar a
um ou dois por cento no mercado primário!
Porque está interditado de ir ao mercado primário?
Exato. E esta crise só não colapsou mais cedo porque o
BCE criou um instrumento que não existia. Geralmente, as
operações do BCE são a prazos curtos: 24 horas, 15 dias e
90 dias, que era o máximo até dezembro. Nessa altura, a
ZE esteve quase a colapsar e foi o BCE que salvou a banca
através de um financiamento a longo prazo que não existia
(três anos). Foi uma espécie de happy hour – a primeira no
21 de dezembro e a segunda no dia 29 de fevereiro – em
que toda a banca comercial se foi abastecer no BCE. E qual
foi a taxa de juro? Um por cento!...
Se não fossem essas duas operações, já não tínhamos ZE.
Para se ter uma ideia, o BCE colocou no mercado bancário,
na banca comercial europeia, mais de um bilião de euros
[1.000.000.000.000], 2,5 vezes mais do que está para ser
emprestado nos pacotes português, irlandês e grego.
Portanto, temos de criar um sistema fiscal comum. Porque,
por exemplo, a situação das grandes empresas portuguesas
que estão a pagar impostos na Holanda é um atentado à
inteligência e à moral...
Mas legalmente possível...
Claro, porque é uma competência de cada Estado. Mas
como é que nós temos a mesma moeda de um país que nos
rouba os nossos impostos? É um absurdo! Isto é responsabilidade
de Guterres, não é só do Sócrates. E do Mitterrand,
do Helmut Kohl...
E não há, também, responsabilidade das empresas?
Acho que os empresários que fazem isso, apesar de tudo,
têm uma responsabilidade menor. No fundo, o problema é
da tentação, dos designers. Quem tem mais responsabilidades,
é quem sucumbe à tentação ou quem coloca a tentação?
Quando funciona bem, a política retira as tentações; quando
funciona mal, multiplica as tentações.
Mas, para que fique bem claro, o federalismo fiscal não
significa que passamos todos a pagar os mesmos impostos;
significa que cada país contribui de forma percentualmente
idêntica e consagra duas ideias fundamentais: universalidade
do esforço para o tesouro comum e competitividade das parcelas
autónomas da federação. Isto permitirá que países com
menos competitividade possam atrair as empresas através
de uma fiscalidade mais agradável – não podem é brincar
com a fiscalidade comum, que é sagrada.
Sendo tão simples, porque não se aplica cá?
Nós precisamos dessa reforma extraordinária e de outra
coisa muito importante, que é a coordenação económica.
Não basta criar mecanismos de contenção orçamental e vigilância
mútua; temos de ter um orçamento comum – que
não substitui o orçamento de cada Estado – para podermos
avançar para o desenvolvimento sustentável, para iniciativas
de crescimento do emprego. Isso implica coordenação
económica, porque só pode haver orçamento europeu se
tivermos um desígnio comum.
Se conseguirmos enfrentar estas dificuldades, prevejo que
no futuro teremos uma esfera de governo europeu com
competências muito grandes no estímulo ao crescimento da
economia, porque os Estados vão ter de ficar muito tempo
a pôr as suas finanças em dia. Será esse governo europeu
que vai ao mercado internacional buscar os empréstimos e
injetá-los na economia. E também terá competências na gestão
bancária, porque nós temos um problema enorme com
a banca – comparada com o problema da banca, a Grécia
é uma brincadeira de crianças, porque a banca na Europa
tornou-se uma realidade monstruosa.
É um outro estado?
Não, são três! A banca comercial europeia corresponde a
três vezes o produto interno bruto da economia europeia;
nos Estados Unidos corresponde apenas a 100 por cento do
PIB. Portanto, o futuro da banca na Europa é muito simples:
ou temos uma federalização do sistema bancário – com uma
autoridade bancária e fundos de garantia para depósitos e
para recapitalização – ou a nacionalização da banca em todo
o lado. Se a ZE cair, a minha previsão é que voltamos ao
nacionalismo bancário e acaba a banca privada – a banca
passa a ser um assunto demasiado sério para ser deixado
aos banqueiros...
A GRANDE FUGA
DE CAPITAIS
FAZ-SE PARA
OS BANCOS ALEMÃES
...

OS MERCADOS!

O que acontecerá se a Zona Euro implodir?
O que pode acontecer é tão desagradável que eu espero que
nunca aconteça, embora tudo o que está a ser feito, e a não
ser, torne mais provável que venha a acontecer. Começando
pelos mais distantes, os sintomas são óbvios… O que é que
a China já está a fazer? O banco central tem 20 por cento
das suas divisas em euros e estão a tentar trocá-los por outras
moedas; estão a tentar defender-se do tsunami que o
fim da ZE vai ser...
Mas não são só os chineses. Todos os bancos centrais não
europeus estão a tentar vender tudo que seja europeu: dívida
pública europeia, moeda europeia... Países que até usavam
o euro para contrariarem o dólar nas transações internacionais.
O dólar está a ficar fortíssimo outra vez, e não é
porque os americanos estejam interessados em enfraquecer
o euro – eles estão interessados em que o euro aguente. O
que está a acontecer é que os europeus estão tão engalfinhados
nas suas querelas que não percebem que do outro
lado do mundo as pessoas estão já a tentar minimizar as
suas perdas. E mesmo dentro da Europa, países amigos da
EU estão a vender tudo... Isto são sinais de alerta! Quem
leia a imprensa económica internacional, todos os dias vê
estas coisas acontecerem!
O único país que neste momento tem poder de decisão
sobre o futuro da Europa é a Alemanha. Evidentemente,
eu acredito que não vamos ficar parados, mas uma coisa é
o poder de resistência e outra é o poder de ação; todos os
países têm poder de resistência, mas o único que tem poder
de ação é a Alemanha. E o que me tem surpreendido é que
a Alemanha não tem a noção do perigo.
E qual é o perigo?
O que acontece é que é muito difícil manter a lucidez quando
se está sob o efeito de um narcótico, e a Alemanha está
narcotizada. Porque está a receber toneladas de euros, de
pessoas assustadas da ZE. Por que é que o euro não está
tão desvalorizado como deveria estar?
Era a questão que queria colocar-lhe a propósito da relação
com o dólar.
Bom… Os sinais de que isto vai rebentar brevemente são
tão grandes que em maio o euro perdeu 4 por cento em
relação ao dólar. Mas ainda estamos a 1,23... Se houvesse
uma inteligência racional a conduzir os negócios do mundo,
já tínhamos que estar em paridade, e não estamos por
uma razão muito simples: porque a grande fuga de capitais
não se faz para fora da ZE; faz-se de países como a Grécia,
Portugal, Espanha, Itália e França para os bancos alemães,
para a dívida pública alemã. No fundo, eles estão a ser alimentados
pelo terror dos aforristas europeus. É uma situação
absolutamente estranha, porque as pessoas estão a pagar
aos alemães para lhes emprestarem dinheiro.
Mas isto é uma aparência! A partir do momento em que a ZE
rebente, os alemães perdem imediatamente o seu comércio:
60 por cento das exportações alemãs são para a ZE e a UE;
e nove milhões de empregos estão ligados à ZE. E a partir do
momento em que haja uma rutura, o mercado interno entra
em coma, porque ninguém compra nem vende a ninguém...
Qual é o cenário para o fim da Zona Euro?
A ZE acabará a partir do momento em que se quebre o último
rincão de confiança entre os países e em que as instituições
comuns, nomeadamente o BCE, deixem de funcionar.
Basta sair um país, por exemplo?
Vamos ver: podemos ter uma destruição total ou uma destruição
parcial. Eu cada vez mais me inclino para o segundo
cenário, em que, começando embora por um sítio, por uma
área, por um país, acaba depois por ser inviável a sua continuação.
Por isso, convinha não brincar com o fogo. Joschka
Fischer, o dirigente dos Verdes alemães, disse que o governo
da senhora Merkel está a tratar o incêndio com gasolina.
Ou seja, está a aumentar o problema. Por exemplo, colocar
a hipótese de a Grécia sair do euro é um perigo enorme! E
admitir a possibilidade do colapso do sistema bancário de
um país, sem perceber as implicações sistémicas, é outro…
Portanto, o que eu vejo é que o fim mais provável da ZE será
a saída de um país, acompanhada pelo colapso do sistema
bancário. E em poucos meses ou semanas haver uma situação
de entropia generalizada que obrigará os países a saírem.
E esse procedimento é legítimo?
Os países saírem é uma coisa muito simples. Repare: o
artigo 63º do Tratado de Funcionamento da Zona Euro
impede qualquer intervenção do Estado na fuga de capitais.
E os gregos estão a assistir à fuga de capitais todos os dias:
milhões de euros saem da Grécia todos os dias e o Estado
não pode fazer nada, porque eles querem continuar dentro
e há liberdade de circulação de capitais – eu não posso pôr
o dinheiro na Suíça (posso, mas é mais complicado), mas
posso pô-lo num banco alemão sem sair de Portugal. É o
que está a ser feito! Portanto, se um país fizer o chamado
corralito, que é limitar o acesso às contas bancárias, esse
país sai do euro. Porque vai ser obrigado a introduzir uma
nova unidade monetária, e isso não se pode fazer.
E como é que um país pode ser empurrado para o “corralito”?
Vejamos a Grécia. No dia 17 de junho têm eleições. No dia
20, se não lhes derem dinheiro, entram imediatamente em
incumprimento. Ou seja, a ZE vai ter de libertar parte do
fundo de resgate para que eles se aguentem, para que formem
governo. Uma coisa que Merkel sempre disse que não
fazia, que é dar dinheiro sem condições.
Portanto, a primeira coisa a fazer é dar dinheiro à Grécia,
mesmo que ainda não tenha sido formado um governo que
garanta as condições da troika. Esse é o primeiro teste. Vamos
admitir que eles conseguem formar governo, que vai tentar
renegociar o pacote, como fará qualquer governo patriótico.
Pode chegar-se a uma situação de impasse em que eles
sejam obrigados a violar o artigo 63º para controlarem os
seus recursos. E então vão ser expulsos pela força das coisas,
porque vão ser obrigados a isso, sob pena de perderem
completamente o controle sobre a sua vida económica...
Mas os países podem ser expulsos? Não há uma norma que
impede a expulsão?
Não, não está previsto nada. A ZE foi construída como se
fosse uma coisa eterna! O que está prevista, no artigo 50º
do TFUE, é a saída da União, não a expulsão. O que vai
acontecer é uma saída fáctica – a partir do momento em
que sejam obrigados a introduzir uma moeda nova, isso
significa que ficam de fora. E o que vai acontecer é terrível.
Vão entrar em falência.
Uma solução do tipo “um país, duas moedas” não é possível?
Não há tempo para isso. Neste momento, a única hipótese
é apostar tudo na ZE, mas não estou a ver que essa gente,
que andou 30 meses a não fazer as coisas mínimas, faça
agora as coisas máximas...
O meu ceticismo alimenta-se no realismo. Já viu o que é
preciso fazer? Uma autoridade bancária europeia. Mario
Draghi diz que “temos de ter”. Sabe quem a recusou? A senhora
Merkel! Quando o Lehman Brothers caiu, havia uma
maioria de votos no Conselho Europeu a favor da criação
de uma autoridade comum e de um financiamento comum
para a banca europeia, mas a senhora Merkel disse “não,
não, cada país safa-se”...
A crise começou aí, não foi com os gregos; começou com a
recusa alemã de um suporte europeu para a banca europeia.
O que é que cauciona a autoridade de Angela Merkel para
o exterior? Internamente, a CDU tem vindo a perder eleições
regionais, não é?
Merkel tem prestígio. Se perguntarem aos alemães, neste
momento, não há nenhum político alemão que tenha mais
prestígio do que ela.
Quer dizer que se houvesse eleições federais ela ganharia...
O federalismo é um bocadinho como as nossas autarquias:
podemos ter um governo de uma cor determinada e a oposição
a governar Lisboa e Porto. Qualquer pessoa sabe que
há diferença entre governar Lisboa e Porto e governar em
S. Bento. Portanto, é natural que a senhora Merkel consiga
uma nova vitória federal – terá é de arranjar um aliado, que
pode ser outra vez o SPD, ou os Verdes... Mas o problema
é que não há tempo para isso.
Entretanto, o parceiro europeu (Sarkozy) perdeu as presidenciais
francesas. A Europa pode contar com um “efeito
Hollande”?
O Robert Schuman, que chegou a ser primeiro-ministro e
foi autor da Declaração Schuman, dizia uma coisa muito
engraçada acerca dos franceses: “são capazes de ideias revolucionárias,
mas sobretudo gostam que não os chateiem
muito”, ou seja, revolucionários sim, mas as pantufas na
hora certa…
E, de facto, o currículo da França para a Europa não é
muito famoso: inviabilizou o momento em que se esteve
mais próximo do federalismo (1954), com um projeto extraordinário
que passou em todos os parlamentos, exceto
no francês, derrotado por uma coligação de comunistas e
gaullistas. Depois, em ’66, com o gaullismo, a construção
europeia entrou praticamente em 20 anos de coma: até ao
Ato Único Europeu (1986), pela ação meritória de outro
francês, Jacques Delors, não aconteceu nada de significativo.
Mais recentemente (2005), derrotaram o Tratado Constitucional
em referendo.
E qual é o currículo do senhor Hollande em matéria europeia?
Nada. Não se lhe conhece um livro, um artigo! Fala
dos eurobonds, mas saberá o que são?
Já agora, o que são eurobonds?
[risos] Têm a ver com o sistema da União Económica. No
fundo, temos um banco central e uma via nacional para
acesso aos mercados – como o BCE não compra dívida pública
no mercado primário, estamos condenados a ir buscar
dinheiro aos outros mercados.
E quando se fala em mercados, outra coisa de que me apercebi
é que, geralmente, se fala em bancos alemães. Disparate!
Os bancos também andam de mão estendida. Bancos,
empresas, Estado, andam todos a ver se conseguem apanhar
dinheiro dos outros. Os mercados estão para lá, e aí temos
muito dinheiro – pelo menos 70 biliões de euros, de pessoas
desesperadas em encontrar um bom projeto para financiar.
Mas na Europa não há cabeça! Imagine o que faríamos se
fôssemos o mercado...
Outra coisa, por que é que a situação bancária está tão má?
Porque a Alemanha resolveu criar um conjunto de exigências
ao setor bancário que estão a fazer com que ele se feche
sobre si próprio e seque a economia real. Ou seja, a banca
estava muito alavancada, estava a emprestar, digamos, para
lá de uma certa margem de segurança. Então, Merkel obrigou
a criar um ultimato à banca, para que fique na zona
de segurança o mais depressa possível. E como é que isso
se consegue? Não emprestando às empresas e saindo dos
mercados internacionais. Os bancos, neste momento, estão
a pensar basicamente em si próprios e nos Estados, porque
na verdade há um complexo Estado-bancos; há quem lhes
chame “os dois bêbedos”, porque estão ambos mal...
E amparam-se um ao outro...
[risos] Mas é um sistema completamente corrupto, porque
os Estados obrigam os bancos nacionais a emprestar. E ao
mesmo tempo o rating nacional – mau – projeta-se sobre
os bancos. Nós temos bancos que estavam com saúde, mas
como a República tem um rating baixíssimo, e como no fundo
temos uma banca nacional, as agências – e bem – classificam
os bancos em função do rating dos Estados. Portanto, isto
não é mercado. Os mercados são outra coisa.
Uma coisa sem rosto? Uma nuvem?
Os mercados são uma das realidades mais importantes do
século XXI e resultam do processo de globalização, de uma
ideia de economia global que voltou a ganhar forma depois
do final da Guerra Fria – porque já tinha havido uma fase
muito importante de mundialização financeira e económica,
sensivelmente entre o final da guerra franco-prussiana e a
1ª Guerra Mundial!
Entretanto, assistimos ao despertar da China, que durante
milhares de anos foi a grande economia mundial, muito
mais importante do que a Europa. E com o crescimento
económico chinês, assistimos a uma deslocação dos centros
de decisão económica e a uma quase duplicação do volume
de circulação do capital financeiro. No início do século, tínhamos
à volta de 30/36 biliões de dólares de investimentos
que podiam ser deslocalizados; agora temos à volta de 70,
o que é uma brutalidade. É cinco vezes o produto interno
bruto da EU e mais do que o PIB mundial…
O MERCADO
SOMOS NÓS!
...

O que é que constitui essa massa bruta de dólares?
São poupanças. É o dinheiro das pessoas, organizado em entidades
financeiras, que emprestam a bancos, que até podem
deter bancos entre si, mas que sobretudo deslocam o capital
de um país para outro. Ou seja, criámos uma globalização
financeira que não tem teias, não tem obstáculos, mas, em
contrapartida, temos protecionismos de natureza política,
os regionalismos, os nacionalismos...
Na minha opinião, o grande problema não é dos mercados,
é da política, que não está à altura. E a diabolização dos
mercados é sinal de pouca reflexão, porque os mercados são
uma criação humana: quando as pessoas colocam dinheiro
nos bancos alemães, são os mercados a funcionar; quando
retiramos dinheiro da economia portuguesa, estamos a
encorajar a especulação. Porque o mercado é um ecossistema
e também tem predadores, gente que vive do pânico
e a semear o pânico. Mas o pânico só existe quando existe
fragilidade política.
Por que é que pedimos o resgate e temos a dívida pública?
São os portugueses os primeiros a não acreditar no país...
As nossas elites estão a colocar o dinheiro todo lá fora...
Depois queixam-se dos mercados. O mercado somos nós!
Nós em relação com os outros?
Exatamente. Agora, o que nos interessa a nós são os grandes
fundos de investimento, que têm biliões. Mas para isso tem
de haver confiança política e força política, coisa que esta
gente não tem. A política europeia assusta os mercados, e
vou dar um exemplo que penso que as pessoas não conhecerão.
Quando o euro entrou em funcionamento, as agências
de rating partiram do princípio da confiança política, de
que os países que entravam na ZE, em caso de dificuldade,
iriam ter uma atitude solidária uns com os outros. Porque
os mercados são muito emocionais, funcionam muito no
curto prazo, na base de esperanças…
Quer dizer, o mercado também é um estado de espírito...
Exatamente! Os animal spirits do Keynes, os espíritos animais
do mercado.
Mas, atenção, o mercado tem uma componente racional muito
fria. Tem analistas de informação e agências de investimento
com grandes departamentos de planeamento estratégico.
Portanto, quando a ZE começou a funcionar deram-lhe uma
nota alta e confiaram que, havendo um problema, haveria
uma cobertura mútua.
Só que o TFUE diz que temos uma moeda comum, mas
que nenhum país pode salvar outro em caso de insolvência;
que a União não pode salvar nenhum dos seus membros
e que os Estados são inteiramente responsáveis pelas suas
dívidas públicas (artigo 125º). Ora bem, os mercados não
acreditavam neste artigo, que é a chamada “cláusula de não
resgate”, de tal maneira que as agências de rating americanas
chegavam a diferenciar mais os estados dentro da união
americana do que, por exemplo, a Grécia e a Alemanha.
Cometeram um erro...
Mas nós perdoamos menos os erros que nascem da confiança
do que os da desconfiança, porque, geralmente, o erro do
excesso não é de quem dá confiança, mas de quem não a
merece. Portanto, quem se portou mal foi a ZE, e por isso
é que chegamos a esta situação.
Voltando um bocadinho atrás, esta crise é mais política
do que...
É uma crise de liderança política. Uma crise da nossa democracia,
que não sabe selecionar os dirigentes políticos; que
não tem uma ideia da Europa. Porque nós temos uma crise
sistémica da Europa, mas não temos ninguém que a defenda.
A senhora Merkel defende a Alemanha, Passos Coelho
defende uma vaga ideia de Portugal…
E Mário Soares? E os chamados “senadores”?
Há uma série de políticos que fizeram coisas importantes
no seu tempo (Helmut Kohl, Helmut Schmidt...), mas a
questão é que agora não mandam nada. E se o que temos
são líderes nacionais com uma visão míope, a curto prazo
e estritamente nacional, evidentemente que estamos mais
próximos de colapsar do que de uma solução. Todavia, a
realidade é sempre mais rica do que a nossa capacidade de
a conhecer, e pode acontecer um milagre. Mas tem de ser
mesmo milagre, porque menos não chega.
A crise de liderança política, de vazio de ideias, reflete, de
alguma forma, a falência da Universidade europeia, que
me referiu noutro contexto?
Também é reflexo da falência da Universidade. Porque acabamos
por criar universidades com um grau de especialização
brutal e, com a marginalização da História, da Filosofia
(das Humanidades, no fundo), criámos estas criaturas que
agora nos governam – que têm tudo, menos uma capacidade
absolutamente extraordinária, e necessária para a política,
que é a visão lateral. Os nossos políticos apenas conseguem
ver uma faixa muito curta do que está imediatamente à sua
frente. Não pensam e também não sentem.
No próximo ciclo – porque alguma coisa há de surgir, embora
não seja nada agradável – temos de, pelo menos, ser capazes
de reaprender com os erros e tentar reconstruir o sistema de
ensino. Porque as coisas começam por aí.
Mas quando se vê quem governa, mais do que pela via
académica, chegou lá pelo percurso político. Mais do que
pela competência, pela obediência partidária...
Pois… Eu continuo a considerar que é importante dizer
isto: a nossa democracia foi um bocadinho capturada pela
partidocracia. No fundo, o que está a dizer é isso mesmo,
os partidos acabaram por se tornar, entre outras coisas,
sociedades de colocação no setor público. É verdade. Mas
não há nenhuma instituição humana perfeita, e eu continuo
a acreditar que, apesar de tudo, a democracia representativa
é a forma superior da democracia. Agora, realmente, o que
está a dizer faz todo o sentido, e temos de tentar encontrar
mecanismos de correção dessas deformações.
O exercício da cidadania como uma exigência ética, se
assim posso dizer, tem estado subjacente ao longo desta
conversa. Quando as pessoas, de um modo geral e de forma
crescente, parecem abdicar da participação socioprofissional,
eleitoral, no associativismo local, no espaço público,
etc., estarão à espera de milagres?
Os únicos “milagres” são políticos, mas não acontecem por
acaso. Eu acredito que a política transforma em visível a força
de vontade que emana do coração das pessoas. Ou seja, a
política deve ser a visibilização da ética, da boa vontade, da
vontade moral. Porque só ética retórica não chega a parte
nenhuma. Aquilo que faz a transição de uma ética, de uma
vontade forte, para as instituições políticas, para as boas
leis, é cada um de nós perceber que chegámos a um ponto
em que temos de entrar diretamente na ação; não podemos
pagar a alguém para fazer isso por nós, temos de meter as
mãos no barro, porque há gente que as vai sujar na lama. E
eu penso que vamos entrar numa zona de grande fragmentação.
Se a ZE rebentar, como infelizmente penso que irá
acontecer, vamos assistir a coisas extraordinárias – não ao
regresso ao Estado-Nação, mas ao tribalismo.
A guerra é uma possibilidade?
Guerra localizada, talvez... Por exemplo, qual é a hipótese da
Bélgica? Vai desaparecer. Eu acredito que entre os flamengos
e os valões vai haver guerra. O ódio mútuo que eles têm…
A possibilidade de a Europa se transformar numa hiper-
-Jugoslávia, passando a ser o local onde as tribos habitam...
Nós não temos o problema do tribalismo, mas a Espanha
tem, fortíssimo, com as autonomias, sobretudo da Catalunha
e do País Basco...
Enfim, provavelmente teremos situações em que vão emergir
os “salvadores da pátria”. Está a acontecer, a aparecer muita
gente com um discurso que faz lembrar o final da 1ª Guerra,
quando havia milhares de partidos e de salvadores. E a
gente sabe como isso termina... Se não temos cuidado, acaba
sempre com os condottieri arvorados em chefes de Estado.
Para terminar: o fim da Zona Euro implica o fim da União
Europeia, ou será possível reconstruir alguma coisa a partir
do que fica?
Eu acredito que vamos ter rutura, pode é ser maior ou
menor. O grande problema da rutura é que tem uma força
própria – é o problema do abismo, desenvolve forças de
gravidade inerciais muito poderosas. Eu já não tenho esperança
para acreditar que não vamos ter um solavanco dos
grandes. Vamos. Resta saber se permite voltar atrás, se a UE
tem capacidade para repensar a situação: Grécia, bancos,
dívida pública...
É muita coisa ao mesmo tempo, e tudo para amanhã! Esta
gente andou 30 meses sem fazer nada, e agora são os mesmos
que vão tomar decisões sábias? Só se houvesse uma
iluminação do Espírito Santo...
Era o tal milagre...
Exatamente, era o tal milagre. ¶
A DEMOCRACIA
REPRESENTATIVA
É A FORMA SUPERIOR
DA DEMOCRACIA





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