quinta-feira

Viriato Soromenho Marques fala-nos da crise, de Portugal, da Europa, do federalismo, da fuga de capitais, do mercado e da democracia representativa


  • Uma entrevista para ler com calma, com alma, com tempo. 
  • Uma viagem guiada por Viriato Soromenho Marques - que é um pequeno tratado de diversidade tocando em todas as questões políticas essenciais da Europa do nosso tempo. A saber: a ideia de que a Troika não vai conseguir revigorar a economia nacional porque a dinâmica europeia fará implodir esse esforço e ninguém assegurará os compromissos fixados; a ignorância das elites dirigentes; a perda dos poderes clássicos da soberania cambial do Estado nacional; a bonomia de Passos coelho que não passa, afinal, de miopia assente numa crença perigosa no neoliberalismo dos mercados; o oportunismo do Gov que cavalga a onda da crise para impor reformas que seriam inaceitáveis noutra conjuntura; a política europeia não é mais do que ir a despacho com Merkel; a grande desilusão de Paulinho Portas - afinal uma espécie de guia turístico desta Europa (igual papel tem Durão na Europa); a implosão do Estado social; a fraca produtividade e competitividade nacionais; a necessidade de mais União Política; o federalismo fiscal; os mercados e o reconhecimento da democracia representativa como a forma superior de democracia. 
  • Enfim, um menu recheado de temas quentes para ler e meditar. 



VIRIATO SOROMENHO-MARQUES
crise:
PODE ACONTECER
UM MILAGRE,
MAS TEM DE SER
MESMO MILAGRE

António Baldaia
entrevista
Ana Alvim
fotografia



P: Tendo como diagnóstico a crise, Portugal continua doente
ou está em convalescença, como dizem alguns? Ou, pelo
contrário, está em pré-coma?

R: A situação é muito delicada. Penso que há consenso em
relação a isso; a divergência é se estamos numa situação difícil,
mas ainda sem bater no fundo, ou numa trajetória de
recuperação. Respondo que depende dos fatores externos,
que são essenciais para a nossa existência como país, como
Estado-Nação e como membro de uma união que também
está fragilizada.
Não partilho a visão do Governo, que considera o programa
de ajustamento não apenas necessário, mas virtuoso; eu
considero que só foi necessário do ponto de vista de quem
o colocou, ou seja, é um programa de credores e, basicamente,
pretende que Portugal honre os seus compromissos
em termos de dívida ao exterior. O Governo entende que o
programa da troika tem um conjunto de características que
vão revigorar a nossa economia; eu tenho fortes dúvidas, e
diria mesmo que não.
Ou seja...
O programa está condenado a ser reformado numa perspetiva
de crescimento e desenvolvimento; ou a ser interrompido,
porque entretanto a Zona Euro [ZE] rebenta e ninguém
cumpre compromissos.
Portanto, o Governo está a apostar no cenário, impossível,
de que tudo segue tranquilamente até setembro de 2013.
Mesmo que isso acontecesse, seria impossível Portugal voltar
aos mercados, porque nessa altura já nem sequer teremos a
única coisa que ainda atrai alguns investidores internacionais,
que é o tecido empresarial. Que estamos a vender.
Este programa de ajustamento revelou a profunda ignorância
dos nossos dirigentes, das nossas elites. Uma ignorância que
tem uma raiz moral, porque é voluntária. Repare que há uma
condição matricial para que este programa nunca pudesse
resultar. Porque estes programas são do Fundo Monetário
Internacional, para países em vias de desenvolvimento, que
não fazem parte de uniões económicas e que têm moeda
própria. E uma das condições fundamentais para que o programa
pudesse ter sucesso – ainda que com um custo social
muito grande – seria Portugal ter moeda própria. Porquê?



Viriato Soromenho-Marques

é professor catedrático de Filosofia
na Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa, membro
correspondente da Academia das
Ciências de Lisboa e membro do
Conselho Nacional do Ambiente e
Desenvolvimento Sustentável.
Grande Oficial da Ordem de Mérito
Civil e da Ordem do Infante
D. Henrique, é autor de diversas
obras sobre temas filosóficos,
ambientais e estratégicos e comentador
regular da atualidade política na
imprensa diária e na televisão.
Especialista em assuntos europeus,
a conversa com a PÁGINA centra-se
na análise da situação atual. ...




Para poder jogar com a inflação e com a desvalorização?

Porque podia jogar com a inflação. No fundo, os 17 países
da ZE perderam dois poderes soberanos. O poder de emitir
moeda, que permitiria que, em determinadas circunstâncias,
o Estado se aliviasse das suas dívidas através da emissão
de moeda. Que provoca inflação. E a inflação é o imposto
mais universal e menos doloroso – porque se perde poder de
compra de uma forma totalmente repartida (ninguém escapa
à inflação) e porque não é diretamente visível.
Não é a mesma coisa que cortar no vencimento?
Nós tivemos períodos de inflação, nos anos ’80, em que as
pessoas perderam 30 por cento do poder de compra! Não
é a mesma coisa, não é?
Segunda perda: competitividade externa. É completamente
diferente estar a exportar para uma Alemanha que tem o
euro, como nós, do que a partir do nosso escudo. Porque
poderíamos desvalorizar ou valorizar, consoante nos fosse
conveniente. Portanto, a política cambial é um fator de competitividade
que não temos. Resultado: essa coisa monstruosa
chamada desvalorização interna, que é apertar o cinto até
rebentar. Só uma pessoa com a bonomia de Passos Coelho
para acreditar que isto vai levar a outra coisa que não seja
uma sociedade mais injusta, mais pobre, com feridas muito
profundas, e que – no caso de a ZE e o projeto da União
Europeia [EU] não avançarem – vai obrigar a uma reinvenção
do país de uma dimensão que não podemos antecipar.
Não há previsão?
Não há histórico. Ou seja, vamos ter de reinventar um conceito
estratégico debaixo de escombros.
Quando ouço algumas previsões, nomeadamente dos governantes,
assalta-me a ideia de que isto não pode ser só
ingenuidade, desconhecimento...
Não, não... Qual é o racional do governo português?
... Parece que se aproveita a boleia da crise para promover
reformas, ou mudanças, que de outra forma não passariam,
ou seriam consideradas inconstitucionais, e que dificilmente
terão recuo. Uma espécie de golpe constitucional, de Estado...
A sua leitura faz sentido. Nós vivemos uma situação excecional,
num estado de exceção. Isto é, não temos recolher
obrigatório, não temos as leis completamente suspensas,
mas a verdade é que o Tratado de Lisboa é letra morta. As
instituições europeias não funcionam! Temos um diretório –
formado por um só membro, que é a Alemanha e a maioria
da senhora Merkel – que comanda as posições europeias.
No fundo, a política europeia resume-se a despachar com
a senhora Merkel.
A partir do momento em que fazemos parte da UE, a Constituição
não tem o valor absoluto que tinha. Evidentemente
que corresponde a uma ordem jurídica fundamental, todavia,
uma parte importante do tecido coletivo está dependente
do Tratado de Lisboa e de tudo o que construímos com os
nossos parceiros. O que significa que, neste momento, a senhora
Merkel manda mais do que a nossa Constituição. E
há um conjunto de medidas excecionais, que rigorosamente
são anticonstitucionais, como os cortes nos salários da
função pública, que só se admitem porque estamos a viver
momentos excecionais.
Ia referir-se ao racional do Governo...
Para explicar o racional do Governo, há três razões principais.
Em primeiro lugar, esta crise revelou o que suspeitávamos – a
elite política do bloco central não tem uma mínima ideia do
que seja a construção europeia. Portugal entrou na Europa
como um freguês, como um cliente à espera da melhor oferta,
alguém à espera de um saldo...
E à procura de subsídios...
Exatamente. E depois, dos saldos. Para mim, uma das coisas
mais perturbadoras, uma das maiores desilusões (não é Passos
Coelho, nem Vítor Gaspar), é o ministro dos Negócios
Estrangeiros – uma figura inegavelmente inteligente, mas
que perante esta crise revelou um profundo vazio de ideias
em relação à Europa.
Que parece ter desaparecido…
Desapareceu. Em África, no Brasil... Está a vender o país
aos PALOP como se fosse um promotor turístico, quando
era suposto que tivesse uma visão crítica sobre o processo
de construção europeia. A verdade é que Portugal não tem
uma única ideia sobre a Europa.
Segunda razão: quando não se tem ideias, pelo menos sabe-
-se quem manda. E o Governo sabe que quem manda é
Merkel. Portanto, a política de Portugal é fazer tudo o que
possa agradar à chanceler. Porque foi ela que patrocinou o
plano de resgate, foi ela que montou o Fundo Europeu de
Estabilidade Financeira, é da Alemanha que vem o financiamento
principal e, no caso de as coisas correrem mal, será
à Alemanha que iremos pedir auxílio.
A terceira razão vai ao encontro do que tinha sugerido. Para
mal dos nossos pecados, temos à frente do Governo pessoas
que têm um programa ideológico. Isto é, a pós-modernidade
só aconteceu para a esquerda [risos], só a esquerda perdeu
as grandes narrativas, e por isso está mais sensata e procura
ter aquilo que a política sempre é – uma análise da realidade
a partir das condições concretas e da relação de forças.
Ausência de ideias, reconhecer quem manda, programa
ideológico…
Temos um primeiro-ministro que acredita no liberalismo e no
ultraliberalismo contra toda a evidência – a ideologia é isso
mesmo, acreditar nalguma coisa contra toda a evidência; que
acredita que a destruição do Estado Social é inevitável; que
acredita que o nosso caminho é tornarmo-nos chineses. E é
por aí que vamos, quando a China já não quer ser chinesa...
Portanto, seria terrível para Portugal se, por ventura, o Governo
mandasse no país, mas não manda. Ou seja, uma das
coisas que limita a desgraça em que estamos envolvidos é que
os fatores de esperança são externos. De facto, o Governo
não está a executar um programa que tenha elaborado, está
a executar o que lhe deram para as mãos – que, aliás, foi
negociado pelo governo anterior. E o PS devia honrar mais
vezes o silêncio, porque nós ainda não esquecemos o que
foi a governação socialista!
Que alternativa, então, para a ação governativa?
Uma verdadeira política patriótica seria uma política totalmente
concentrada na construção europeia. O modelo
que sempre defendi para este Governo seria o seguinte:
uma parte teria de aplicar o programa da troika, porque
não tivemos alternativa; mas a outra parte – o cérebro do
Governo: primeiro-ministro e ministros das Finanças e dos
Negócios Estrangeiros – deveria estar na linha da frente
da negociação europeia, para levar o Conselho Europeu a
mudar de posição com argumentos racionais. Essa seria a
nossa diferença em relação à Grécia: mostrar coesão social,
que é um capital político muito importante do nosso país, e
ter a inteligência de dizer aos nossos parceiros que este é um
caminho do abismo e não, como faz o primeiro-ministro,
que é o caminho da salvação.
E que até queremos ir mais longe...
A ferida narcísica de estar a aplicar um programa completamente
alheio ao interesse nacional deve ter desencadeado
um processo de identificação com o agressor [risos], que
leva a essa coisa absurda de querer ir mais longe do que a
troika e revela uma ausência total de alternativa. Absolutamente
inenarrável!
O importante era ter sido capaz de dizer “nós precisamos
de uma agência europeia da dívida pública que retire aos
países essa competência”, porque os países não podem andar
ao mesmo tempo a pedir dinheiro lá fora e a aplicar austeridade
cá dentro. Tem de ser uma autoridade comum e a
solidariedade política da união a tratar da questão da dívida
pública, e também da questão da banca. São dois problemas
centrais. Mas o Governo não tem avançado com nenhuma
ideia e – se as coisas degenerarem, como provavelmente
vai acontecer – Portugal corre o risco de ser conduzido, de
relatório positivo da troika em relatório positivo da troika,
até ao desastre.
Quem é que realmente provocou esta crise? A crise é dos
meios de produção ou somos nós que trabalhamos pouco?
Ou, admitindo que há mesmo uma crise, ela não será de
valores, de opções ideológicas, mais do que financeira?
Talvez começar por dizer que esta crise não é da dívida
soberana, como tem sido reconhecido. Quando diagnosticamos
uma doença de forma errada, não encontramos
terapias adequadas. E o resultado está à vista: 12 países em
recessão, dez deles da ZE, porque têm aplicado receitas para
uma doença que não é a deles. Portanto, a visão moral da
crise – Estado gastador, cidadãos pouco trabalhadores – é
absolutamente errada.
Dizem que trabalhamos pouco, que não produzimos...
Uma coisa é o tempo de trabalho, outra é a produtividade.
Mas isso também tem a ver com a organização, com as elites!
E com o outro lado do trabalho, com o capital... Basta ter
uns dinheiros e qualquer um é empresário.
É isso. Para começar, é preciso ter capital, mas para o ganhar
é preciso saber, e isso tem a ver com a produtividade, não
tem a ver com os trabalhadores. Os trabalhadores portugueses
são muito bons em qualquer parte do mundo, tão
produtivos ou mais do que os outros. Tem a ver com uma
elite empresarial laxista. Há exceções notáveis, mas temos
um tecido económico muito perdulário, muito pouco produtivo
e competitivo.
Sintetizando, quais são, então, os fatores da crise?
Diria que temos três fatores fundamentais. Desde o início que
se percebia que a união económica e monetária não ia dar
certo, por não ser possível federalizar a emissão e a desvalorização
da moeda – que foram federalizadas para o Banco
Central Europeu [BCE] – sem ter uma união política. Nós
estamos numa aventura inédita, a fazer o contrário do que os
americanos fizeram, que construíram a união política antes
de terem o dólar, muito antes de terem um banco central.
Fundamentalmente, o que nos falta é caminhar claramente
para a união política, o que significa...
Um governo central?
Termos um governo europeu responsável perante os cidadãos.
A ideia de fazer tratados atrás de tratados, em que os
povos não participam, está condenada ao fracasso. Portanto,
precisamos de união política. E isso significa ter uma política
orçamental e uma política fiscal comuns. O que acontece é
que o orçamento da união e da comissão é de um por cento
do PIB europeu. Desde ‘88 que há uma lei, não escrita, que
limita a 1,27 por cento esse orçamento, enquanto o conjunto
dos Estados-membros, o Conselho Europeu, tem um
orçamento de 44 por cento do PIB.
E como se constrói um orçamento europeu?
Na minha perspetiva, o orçamento europeu terá de ter, pelo
menos, 5 por cento do PIB, e isso só é possível através de
uma reforma fiscal, de uma mudança das receitas fiscais do
orçamento da Comissão Europeia/Governo europeu. Temos
de passar de um mecanismo em que há governos que dão
mais e governos que recebem para um mecanismo de receitas
comuns da UE, baseadas no capital e no trabalho e com
percentagens universais.
E como é que podemos criar um verdadeiro federalismo fiscal?
É muito simples: criar uma regra comum, de acordo com
a qual, por exemplo, 4 por cento de todo o IRC recolhido
na ZE vai para o Tesouro Comum, bem como 5 por cento
ou 4 por cento do IRS. Isto permitiria termos um Governo
europeu com um orçamento de três, quatro ou cinco por
cento do PIB e com isso criar programas de investimento em
projetos comuns. E poderia alavancar as euro-obrigações.
Uma das conclusões a que cheguei é que os nossos economistas
podem perceber de muita coisa, mas de economia
percebem pouco. Tenho lido as coisas mais formidáveis sobre
os mercados, de economistas de direita e de esquerda, e as
receitas são absolutamente de fugir!
E a verdade é que todas têm falhado.
Falham e posso explicar porquê. Uma das coisas que está mal
é termos um BCE incompleto, que não é um banco central
a sério, porque um banco central a sério tem a função de
garantir a estabilidade dos preços. O BCE tem essa preocupação,
mas tem também uma coisa muito importante, que é
manter o horizonte do pleno emprego. Isto significa que, por
exemplo, quando o Estado emite dívida pública no chamado
mercado primário, o banco central está lá e compra dívida do
seu Estado. Ora, o artigo 123º do Tratado de Funcionamento
da União Europeia (TFUE) proíbe expressamente o BCE de
comprar divida pública dos Estados no mercado primário...
FEDERALISMO FISCAL:
UNIVERSALIDADE
E COMPETITIVIDADE
FEDERALISMO FISCAL:
UNIVERSALIDADE
E COMPETITIVIDADE
...

Isso significa o quê? O mercado primário é mais barato…
Exatamente! Ou seja, o banco central faz uma coisa absolutamente
estúpida: compra a dívida pública portuguesa no
mercado secundário, a 12 por cento, em vez de comprar a
um ou dois por cento no mercado primário!
Porque está interditado de ir ao mercado primário?
Exato. E esta crise só não colapsou mais cedo porque o
BCE criou um instrumento que não existia. Geralmente, as
operações do BCE são a prazos curtos: 24 horas, 15 dias e
90 dias, que era o máximo até dezembro. Nessa altura, a
ZE esteve quase a colapsar e foi o BCE que salvou a banca
através de um financiamento a longo prazo que não existia
(três anos). Foi uma espécie de happy hour – a primeira no
21 de dezembro e a segunda no dia 29 de fevereiro – em
que toda a banca comercial se foi abastecer no BCE. E qual
foi a taxa de juro? Um por cento!...
Se não fossem essas duas operações, já não tínhamos ZE.
Para se ter uma ideia, o BCE colocou no mercado bancário,
na banca comercial europeia, mais de um bilião de euros
[1.000.000.000.000], 2,5 vezes mais do que está para ser
emprestado nos pacotes português, irlandês e grego.
Portanto, temos de criar um sistema fiscal comum. Porque,
por exemplo, a situação das grandes empresas portuguesas
que estão a pagar impostos na Holanda é um atentado à
inteligência e à moral...
Mas legalmente possível...
Claro, porque é uma competência de cada Estado. Mas
como é que nós temos a mesma moeda de um país que nos
rouba os nossos impostos? É um absurdo! Isto é responsabilidade
de Guterres, não é só do Sócrates. E do Mitterrand,
do Helmut Kohl...
E não há, também, responsabilidade das empresas?
Acho que os empresários que fazem isso, apesar de tudo,
têm uma responsabilidade menor. No fundo, o problema é
da tentação, dos designers. Quem tem mais responsabilidades,
é quem sucumbe à tentação ou quem coloca a tentação?
Quando funciona bem, a política retira as tentações; quando
funciona mal, multiplica as tentações.
Mas, para que fique bem claro, o federalismo fiscal não
significa que passamos todos a pagar os mesmos impostos;
significa que cada país contribui de forma percentualmente
idêntica e consagra duas ideias fundamentais: universalidade
do esforço para o tesouro comum e competitividade das parcelas
autónomas da federação. Isto permitirá que países com
menos competitividade possam atrair as empresas através
de uma fiscalidade mais agradável – não podem é brincar
com a fiscalidade comum, que é sagrada.
Sendo tão simples, porque não se aplica cá?
Nós precisamos dessa reforma extraordinária e de outra
coisa muito importante, que é a coordenação económica.
Não basta criar mecanismos de contenção orçamental e vigilância
mútua; temos de ter um orçamento comum – que
não substitui o orçamento de cada Estado – para podermos
avançar para o desenvolvimento sustentável, para iniciativas
de crescimento do emprego. Isso implica coordenação
económica, porque só pode haver orçamento europeu se
tivermos um desígnio comum.
Se conseguirmos enfrentar estas dificuldades, prevejo que
no futuro teremos uma esfera de governo europeu com
competências muito grandes no estímulo ao crescimento da
economia, porque os Estados vão ter de ficar muito tempo
a pôr as suas finanças em dia. Será esse governo europeu
que vai ao mercado internacional buscar os empréstimos e
injetá-los na economia. E também terá competências na gestão
bancária, porque nós temos um problema enorme com
a banca – comparada com o problema da banca, a Grécia
é uma brincadeira de crianças, porque a banca na Europa
tornou-se uma realidade monstruosa.
É um outro estado?
Não, são três! A banca comercial europeia corresponde a
três vezes o produto interno bruto da economia europeia;
nos Estados Unidos corresponde apenas a 100 por cento do
PIB. Portanto, o futuro da banca na Europa é muito simples:
ou temos uma federalização do sistema bancário – com uma
autoridade bancária e fundos de garantia para depósitos e
para recapitalização – ou a nacionalização da banca em todo
o lado. Se a ZE cair, a minha previsão é que voltamos ao
nacionalismo bancário e acaba a banca privada – a banca
passa a ser um assunto demasiado sério para ser deixado
aos banqueiros...
A GRANDE FUGA
DE CAPITAIS
FAZ-SE PARA
OS BANCOS ALEMÃES
...

OS MERCADOS!

O que acontecerá se a Zona Euro implodir?
O que pode acontecer é tão desagradável que eu espero que
nunca aconteça, embora tudo o que está a ser feito, e a não
ser, torne mais provável que venha a acontecer. Começando
pelos mais distantes, os sintomas são óbvios… O que é que
a China já está a fazer? O banco central tem 20 por cento
das suas divisas em euros e estão a tentar trocá-los por outras
moedas; estão a tentar defender-se do tsunami que o
fim da ZE vai ser...
Mas não são só os chineses. Todos os bancos centrais não
europeus estão a tentar vender tudo que seja europeu: dívida
pública europeia, moeda europeia... Países que até usavam
o euro para contrariarem o dólar nas transações internacionais.
O dólar está a ficar fortíssimo outra vez, e não é
porque os americanos estejam interessados em enfraquecer
o euro – eles estão interessados em que o euro aguente. O
que está a acontecer é que os europeus estão tão engalfinhados
nas suas querelas que não percebem que do outro
lado do mundo as pessoas estão já a tentar minimizar as
suas perdas. E mesmo dentro da Europa, países amigos da
EU estão a vender tudo... Isto são sinais de alerta! Quem
leia a imprensa económica internacional, todos os dias vê
estas coisas acontecerem!
O único país que neste momento tem poder de decisão
sobre o futuro da Europa é a Alemanha. Evidentemente,
eu acredito que não vamos ficar parados, mas uma coisa é
o poder de resistência e outra é o poder de ação; todos os
países têm poder de resistência, mas o único que tem poder
de ação é a Alemanha. E o que me tem surpreendido é que
a Alemanha não tem a noção do perigo.
E qual é o perigo?
O que acontece é que é muito difícil manter a lucidez quando
se está sob o efeito de um narcótico, e a Alemanha está
narcotizada. Porque está a receber toneladas de euros, de
pessoas assustadas da ZE. Por que é que o euro não está
tão desvalorizado como deveria estar?
Era a questão que queria colocar-lhe a propósito da relação
com o dólar.
Bom… Os sinais de que isto vai rebentar brevemente são
tão grandes que em maio o euro perdeu 4 por cento em
relação ao dólar. Mas ainda estamos a 1,23... Se houvesse
uma inteligência racional a conduzir os negócios do mundo,
já tínhamos que estar em paridade, e não estamos por
uma razão muito simples: porque a grande fuga de capitais
não se faz para fora da ZE; faz-se de países como a Grécia,
Portugal, Espanha, Itália e França para os bancos alemães,
para a dívida pública alemã. No fundo, eles estão a ser alimentados
pelo terror dos aforristas europeus. É uma situação
absolutamente estranha, porque as pessoas estão a pagar
aos alemães para lhes emprestarem dinheiro.
Mas isto é uma aparência! A partir do momento em que a ZE
rebente, os alemães perdem imediatamente o seu comércio:
60 por cento das exportações alemãs são para a ZE e a UE;
e nove milhões de empregos estão ligados à ZE. E a partir do
momento em que haja uma rutura, o mercado interno entra
em coma, porque ninguém compra nem vende a ninguém...
Qual é o cenário para o fim da Zona Euro?
A ZE acabará a partir do momento em que se quebre o último
rincão de confiança entre os países e em que as instituições
comuns, nomeadamente o BCE, deixem de funcionar.
Basta sair um país, por exemplo?
Vamos ver: podemos ter uma destruição total ou uma destruição
parcial. Eu cada vez mais me inclino para o segundo
cenário, em que, começando embora por um sítio, por uma
área, por um país, acaba depois por ser inviável a sua continuação.
Por isso, convinha não brincar com o fogo. Joschka
Fischer, o dirigente dos Verdes alemães, disse que o governo
da senhora Merkel está a tratar o incêndio com gasolina.
Ou seja, está a aumentar o problema. Por exemplo, colocar
a hipótese de a Grécia sair do euro é um perigo enorme! E
admitir a possibilidade do colapso do sistema bancário de
um país, sem perceber as implicações sistémicas, é outro…
Portanto, o que eu vejo é que o fim mais provável da ZE será
a saída de um país, acompanhada pelo colapso do sistema
bancário. E em poucos meses ou semanas haver uma situação
de entropia generalizada que obrigará os países a saírem.
E esse procedimento é legítimo?
Os países saírem é uma coisa muito simples. Repare: o
artigo 63º do Tratado de Funcionamento da Zona Euro
impede qualquer intervenção do Estado na fuga de capitais.
E os gregos estão a assistir à fuga de capitais todos os dias:
milhões de euros saem da Grécia todos os dias e o Estado
não pode fazer nada, porque eles querem continuar dentro
e há liberdade de circulação de capitais – eu não posso pôr
o dinheiro na Suíça (posso, mas é mais complicado), mas
posso pô-lo num banco alemão sem sair de Portugal. É o
que está a ser feito! Portanto, se um país fizer o chamado
corralito, que é limitar o acesso às contas bancárias, esse
país sai do euro. Porque vai ser obrigado a introduzir uma
nova unidade monetária, e isso não se pode fazer.
E como é que um país pode ser empurrado para o “corralito”?
Vejamos a Grécia. No dia 17 de junho têm eleições. No dia
20, se não lhes derem dinheiro, entram imediatamente em
incumprimento. Ou seja, a ZE vai ter de libertar parte do
fundo de resgate para que eles se aguentem, para que formem
governo. Uma coisa que Merkel sempre disse que não
fazia, que é dar dinheiro sem condições.
Portanto, a primeira coisa a fazer é dar dinheiro à Grécia,
mesmo que ainda não tenha sido formado um governo que
garanta as condições da troika. Esse é o primeiro teste. Vamos
admitir que eles conseguem formar governo, que vai tentar
renegociar o pacote, como fará qualquer governo patriótico.
Pode chegar-se a uma situação de impasse em que eles
sejam obrigados a violar o artigo 63º para controlarem os
seus recursos. E então vão ser expulsos pela força das coisas,
porque vão ser obrigados a isso, sob pena de perderem
completamente o controle sobre a sua vida económica...
Mas os países podem ser expulsos? Não há uma norma que
impede a expulsão?
Não, não está previsto nada. A ZE foi construída como se
fosse uma coisa eterna! O que está prevista, no artigo 50º
do TFUE, é a saída da União, não a expulsão. O que vai
acontecer é uma saída fáctica – a partir do momento em
que sejam obrigados a introduzir uma moeda nova, isso
significa que ficam de fora. E o que vai acontecer é terrível.
Vão entrar em falência.
Uma solução do tipo “um país, duas moedas” não é possível?
Não há tempo para isso. Neste momento, a única hipótese
é apostar tudo na ZE, mas não estou a ver que essa gente,
que andou 30 meses a não fazer as coisas mínimas, faça
agora as coisas máximas...
O meu ceticismo alimenta-se no realismo. Já viu o que é
preciso fazer? Uma autoridade bancária europeia. Mario
Draghi diz que “temos de ter”. Sabe quem a recusou? A senhora
Merkel! Quando o Lehman Brothers caiu, havia uma
maioria de votos no Conselho Europeu a favor da criação
de uma autoridade comum e de um financiamento comum
para a banca europeia, mas a senhora Merkel disse “não,
não, cada país safa-se”...
A crise começou aí, não foi com os gregos; começou com a
recusa alemã de um suporte europeu para a banca europeia.
O que é que cauciona a autoridade de Angela Merkel para
o exterior? Internamente, a CDU tem vindo a perder eleições
regionais, não é?
Merkel tem prestígio. Se perguntarem aos alemães, neste
momento, não há nenhum político alemão que tenha mais
prestígio do que ela.
Quer dizer que se houvesse eleições federais ela ganharia...
O federalismo é um bocadinho como as nossas autarquias:
podemos ter um governo de uma cor determinada e a oposição
a governar Lisboa e Porto. Qualquer pessoa sabe que
há diferença entre governar Lisboa e Porto e governar em
S. Bento. Portanto, é natural que a senhora Merkel consiga
uma nova vitória federal – terá é de arranjar um aliado, que
pode ser outra vez o SPD, ou os Verdes... Mas o problema
é que não há tempo para isso.
Entretanto, o parceiro europeu (Sarkozy) perdeu as presidenciais
francesas. A Europa pode contar com um “efeito
Hollande”?
O Robert Schuman, que chegou a ser primeiro-ministro e
foi autor da Declaração Schuman, dizia uma coisa muito
engraçada acerca dos franceses: “são capazes de ideias revolucionárias,
mas sobretudo gostam que não os chateiem
muito”, ou seja, revolucionários sim, mas as pantufas na
hora certa…
E, de facto, o currículo da França para a Europa não é
muito famoso: inviabilizou o momento em que se esteve
mais próximo do federalismo (1954), com um projeto extraordinário
que passou em todos os parlamentos, exceto
no francês, derrotado por uma coligação de comunistas e
gaullistas. Depois, em ’66, com o gaullismo, a construção
europeia entrou praticamente em 20 anos de coma: até ao
Ato Único Europeu (1986), pela ação meritória de outro
francês, Jacques Delors, não aconteceu nada de significativo.
Mais recentemente (2005), derrotaram o Tratado Constitucional
em referendo.
E qual é o currículo do senhor Hollande em matéria europeia?
Nada. Não se lhe conhece um livro, um artigo! Fala
dos eurobonds, mas saberá o que são?
Já agora, o que são eurobonds?
[risos] Têm a ver com o sistema da União Económica. No
fundo, temos um banco central e uma via nacional para
acesso aos mercados – como o BCE não compra dívida pública
no mercado primário, estamos condenados a ir buscar
dinheiro aos outros mercados.
E quando se fala em mercados, outra coisa de que me apercebi
é que, geralmente, se fala em bancos alemães. Disparate!
Os bancos também andam de mão estendida. Bancos,
empresas, Estado, andam todos a ver se conseguem apanhar
dinheiro dos outros. Os mercados estão para lá, e aí temos
muito dinheiro – pelo menos 70 biliões de euros, de pessoas
desesperadas em encontrar um bom projeto para financiar.
Mas na Europa não há cabeça! Imagine o que faríamos se
fôssemos o mercado...
Outra coisa, por que é que a situação bancária está tão má?
Porque a Alemanha resolveu criar um conjunto de exigências
ao setor bancário que estão a fazer com que ele se feche
sobre si próprio e seque a economia real. Ou seja, a banca
estava muito alavancada, estava a emprestar, digamos, para
lá de uma certa margem de segurança. Então, Merkel obrigou
a criar um ultimato à banca, para que fique na zona
de segurança o mais depressa possível. E como é que isso
se consegue? Não emprestando às empresas e saindo dos
mercados internacionais. Os bancos, neste momento, estão
a pensar basicamente em si próprios e nos Estados, porque
na verdade há um complexo Estado-bancos; há quem lhes
chame “os dois bêbedos”, porque estão ambos mal...
E amparam-se um ao outro...
[risos] Mas é um sistema completamente corrupto, porque
os Estados obrigam os bancos nacionais a emprestar. E ao
mesmo tempo o rating nacional – mau – projeta-se sobre
os bancos. Nós temos bancos que estavam com saúde, mas
como a República tem um rating baixíssimo, e como no fundo
temos uma banca nacional, as agências – e bem – classificam
os bancos em função do rating dos Estados. Portanto, isto
não é mercado. Os mercados são outra coisa.
Uma coisa sem rosto? Uma nuvem?
Os mercados são uma das realidades mais importantes do
século XXI e resultam do processo de globalização, de uma
ideia de economia global que voltou a ganhar forma depois
do final da Guerra Fria – porque já tinha havido uma fase
muito importante de mundialização financeira e económica,
sensivelmente entre o final da guerra franco-prussiana e a
1ª Guerra Mundial!
Entretanto, assistimos ao despertar da China, que durante
milhares de anos foi a grande economia mundial, muito
mais importante do que a Europa. E com o crescimento
económico chinês, assistimos a uma deslocação dos centros
de decisão económica e a uma quase duplicação do volume
de circulação do capital financeiro. No início do século, tínhamos
à volta de 30/36 biliões de dólares de investimentos
que podiam ser deslocalizados; agora temos à volta de 70,
o que é uma brutalidade. É cinco vezes o produto interno
bruto da EU e mais do que o PIB mundial…
O MERCADO
SOMOS NÓS!
...

O que é que constitui essa massa bruta de dólares?
São poupanças. É o dinheiro das pessoas, organizado em entidades
financeiras, que emprestam a bancos, que até podem
deter bancos entre si, mas que sobretudo deslocam o capital
de um país para outro. Ou seja, criámos uma globalização
financeira que não tem teias, não tem obstáculos, mas, em
contrapartida, temos protecionismos de natureza política,
os regionalismos, os nacionalismos...
Na minha opinião, o grande problema não é dos mercados,
é da política, que não está à altura. E a diabolização dos
mercados é sinal de pouca reflexão, porque os mercados são
uma criação humana: quando as pessoas colocam dinheiro
nos bancos alemães, são os mercados a funcionar; quando
retiramos dinheiro da economia portuguesa, estamos a
encorajar a especulação. Porque o mercado é um ecossistema
e também tem predadores, gente que vive do pânico
e a semear o pânico. Mas o pânico só existe quando existe
fragilidade política.
Por que é que pedimos o resgate e temos a dívida pública?
São os portugueses os primeiros a não acreditar no país...
As nossas elites estão a colocar o dinheiro todo lá fora...
Depois queixam-se dos mercados. O mercado somos nós!
Nós em relação com os outros?
Exatamente. Agora, o que nos interessa a nós são os grandes
fundos de investimento, que têm biliões. Mas para isso tem
de haver confiança política e força política, coisa que esta
gente não tem. A política europeia assusta os mercados, e
vou dar um exemplo que penso que as pessoas não conhecerão.
Quando o euro entrou em funcionamento, as agências
de rating partiram do princípio da confiança política, de
que os países que entravam na ZE, em caso de dificuldade,
iriam ter uma atitude solidária uns com os outros. Porque
os mercados são muito emocionais, funcionam muito no
curto prazo, na base de esperanças…
Quer dizer, o mercado também é um estado de espírito...
Exatamente! Os animal spirits do Keynes, os espíritos animais
do mercado.
Mas, atenção, o mercado tem uma componente racional muito
fria. Tem analistas de informação e agências de investimento
com grandes departamentos de planeamento estratégico.
Portanto, quando a ZE começou a funcionar deram-lhe uma
nota alta e confiaram que, havendo um problema, haveria
uma cobertura mútua.
Só que o TFUE diz que temos uma moeda comum, mas
que nenhum país pode salvar outro em caso de insolvência;
que a União não pode salvar nenhum dos seus membros
e que os Estados são inteiramente responsáveis pelas suas
dívidas públicas (artigo 125º). Ora bem, os mercados não
acreditavam neste artigo, que é a chamada “cláusula de não
resgate”, de tal maneira que as agências de rating americanas
chegavam a diferenciar mais os estados dentro da união
americana do que, por exemplo, a Grécia e a Alemanha.
Cometeram um erro...
Mas nós perdoamos menos os erros que nascem da confiança
do que os da desconfiança, porque, geralmente, o erro do
excesso não é de quem dá confiança, mas de quem não a
merece. Portanto, quem se portou mal foi a ZE, e por isso
é que chegamos a esta situação.
Voltando um bocadinho atrás, esta crise é mais política
do que...
É uma crise de liderança política. Uma crise da nossa democracia,
que não sabe selecionar os dirigentes políticos; que
não tem uma ideia da Europa. Porque nós temos uma crise
sistémica da Europa, mas não temos ninguém que a defenda.
A senhora Merkel defende a Alemanha, Passos Coelho
defende uma vaga ideia de Portugal…
E Mário Soares? E os chamados “senadores”?
Há uma série de políticos que fizeram coisas importantes
no seu tempo (Helmut Kohl, Helmut Schmidt...), mas a
questão é que agora não mandam nada. E se o que temos
são líderes nacionais com uma visão míope, a curto prazo
e estritamente nacional, evidentemente que estamos mais
próximos de colapsar do que de uma solução. Todavia, a
realidade é sempre mais rica do que a nossa capacidade de
a conhecer, e pode acontecer um milagre. Mas tem de ser
mesmo milagre, porque menos não chega.
A crise de liderança política, de vazio de ideias, reflete, de
alguma forma, a falência da Universidade europeia, que
me referiu noutro contexto?
Também é reflexo da falência da Universidade. Porque acabamos
por criar universidades com um grau de especialização
brutal e, com a marginalização da História, da Filosofia
(das Humanidades, no fundo), criámos estas criaturas que
agora nos governam – que têm tudo, menos uma capacidade
absolutamente extraordinária, e necessária para a política,
que é a visão lateral. Os nossos políticos apenas conseguem
ver uma faixa muito curta do que está imediatamente à sua
frente. Não pensam e também não sentem.
No próximo ciclo – porque alguma coisa há de surgir, embora
não seja nada agradável – temos de, pelo menos, ser capazes
de reaprender com os erros e tentar reconstruir o sistema de
ensino. Porque as coisas começam por aí.
Mas quando se vê quem governa, mais do que pela via
académica, chegou lá pelo percurso político. Mais do que
pela competência, pela obediência partidária...
Pois… Eu continuo a considerar que é importante dizer
isto: a nossa democracia foi um bocadinho capturada pela
partidocracia. No fundo, o que está a dizer é isso mesmo,
os partidos acabaram por se tornar, entre outras coisas,
sociedades de colocação no setor público. É verdade. Mas
não há nenhuma instituição humana perfeita, e eu continuo
a acreditar que, apesar de tudo, a democracia representativa
é a forma superior da democracia. Agora, realmente, o que
está a dizer faz todo o sentido, e temos de tentar encontrar
mecanismos de correção dessas deformações.
O exercício da cidadania como uma exigência ética, se
assim posso dizer, tem estado subjacente ao longo desta
conversa. Quando as pessoas, de um modo geral e de forma
crescente, parecem abdicar da participação socioprofissional,
eleitoral, no associativismo local, no espaço público,
etc., estarão à espera de milagres?
Os únicos “milagres” são políticos, mas não acontecem por
acaso. Eu acredito que a política transforma em visível a força
de vontade que emana do coração das pessoas. Ou seja, a
política deve ser a visibilização da ética, da boa vontade, da
vontade moral. Porque só ética retórica não chega a parte
nenhuma. Aquilo que faz a transição de uma ética, de uma
vontade forte, para as instituições políticas, para as boas
leis, é cada um de nós perceber que chegámos a um ponto
em que temos de entrar diretamente na ação; não podemos
pagar a alguém para fazer isso por nós, temos de meter as
mãos no barro, porque há gente que as vai sujar na lama. E
eu penso que vamos entrar numa zona de grande fragmentação.
Se a ZE rebentar, como infelizmente penso que irá
acontecer, vamos assistir a coisas extraordinárias – não ao
regresso ao Estado-Nação, mas ao tribalismo.
A guerra é uma possibilidade?
Guerra localizada, talvez... Por exemplo, qual é a hipótese da
Bélgica? Vai desaparecer. Eu acredito que entre os flamengos
e os valões vai haver guerra. O ódio mútuo que eles têm…
A possibilidade de a Europa se transformar numa hiper-
-Jugoslávia, passando a ser o local onde as tribos habitam...
Nós não temos o problema do tribalismo, mas a Espanha
tem, fortíssimo, com as autonomias, sobretudo da Catalunha
e do País Basco...
Enfim, provavelmente teremos situações em que vão emergir
os “salvadores da pátria”. Está a acontecer, a aparecer muita
gente com um discurso que faz lembrar o final da 1ª Guerra,
quando havia milhares de partidos e de salvadores. E a
gente sabe como isso termina... Se não temos cuidado, acaba
sempre com os condottieri arvorados em chefes de Estado.
Para terminar: o fim da Zona Euro implica o fim da União
Europeia, ou será possível reconstruir alguma coisa a partir
do que fica?
Eu acredito que vamos ter rutura, pode é ser maior ou
menor. O grande problema da rutura é que tem uma força
própria – é o problema do abismo, desenvolve forças de
gravidade inerciais muito poderosas. Eu já não tenho esperança
para acreditar que não vamos ter um solavanco dos
grandes. Vamos. Resta saber se permite voltar atrás, se a UE
tem capacidade para repensar a situação: Grécia, bancos,
dívida pública...
É muita coisa ao mesmo tempo, e tudo para amanhã! Esta
gente andou 30 meses sem fazer nada, e agora são os mesmos
que vão tomar decisões sábias? Só se houvesse uma
iluminação do Espírito Santo...
Era o tal milagre...
Exatamente, era o tal milagre. ¶
A DEMOCRACIA
REPRESENTATIVA
É A FORMA SUPERIOR
DA DEMOCRACIA





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