Os donos da voz - por Viriato Sormenho Marques -
Até há bem pouco tempo parecia existir um consenso. Um governo era uma equipa unida por um programa a cumprir, e onde existia uma clara cadeia de comando, no topo da qual se encontrava um primeiro-ministro (PM). Cada governo refletia, necessariamente, a personalidade do seu PM. Uns mais colegiais, reflexo de figuras dispostas a repartir funções. Outros mais centralistas, imagem de PM habituados a tratar os membros da sua equipa como meros "ajudantes". No entanto, o princípio sagrado era o de que em qualquer disputa a voz do PM fechava o conflito das interpretações. A palavra do PM era, em definitivo, a palavra do poder legítimo. Com este Governo tudo é diferente. Não é só o facto de Lisboa se ter transformado numa capital sem poder efetivo, na metrópole do exílio interior de uma nação inteira, com o centro do poder real deslocalizado nas cidades que albergam as instituições da troika (Frankfurt/BCE; Washington/FMI; Bruxelas/Comissão Europeia, sem esquecer Berlim, onde se realiza o milagre da unificação desta trindade). O PM resolveu ir mais longe, subvertendo as regras do jogo na gestão do uso da palavra. Resolveu multiplicar os seus discursos e declarações (bateu todos os recordes de entrevistas de um PM desde 1974, o que significa desde sempre!), mas visando e conseguindo provocar um ruidoso efeito de irrelevância. As palavras decisivas ficaram entregues, durante algum tempo, a Miguel Relvas, mas, como se confirma no caso da RTP, até um consultor como António Borges pode servir para anunciar o que é importante. Um governo que se destina a dissolver o Estado pode dar-se ao luxo da coerência máxima que é a de prescindir de uma voz. Ou melhor, de a submeter ao princípio ultraliberal da "contratação externa" (outsourcing).dn
Obs: Além da explicação eficiente dada pelo filósofo VSM, com clareza e eficiência, como é seu timbre, rematando com uma graça final (bem ao estilo do Consenso de Washington e dos "Chicago boys"), creio, contudo que haverá uma outra razão - de natureza técnica e metodológica - para que as coisas aconteçam como têm acontecido até aqui. Ou seja, a degradação da cadeia de comando no processo de tomada de decisão do vértice do Estado, ocupado no topo pelo PM, dever-se-á também ao próprio método, deliberadamente escolhido, para governar Portugal, desgovernando-o (e deslegitimando-se o Gov), na prática.
Com efeito, tem sido prática corrente deste Governo anunciar, a título experimental, medidas que diz ir tomar a curto e médio prazos. Para tal, escolhe as pessoas que comunicam à sociedade tais intenções, que nem sempre são os ministros da tutela dessas pastas, nem os respectivos secretários de Estado, por regra o escudo protector do respectivo ministro.
Com este modus operandi, é legítimo perguntar o que o Governo pretende com este mecanismo, designado de proof-lies?
Na prática, mentiras experimentais que representam uma espécie de sondas cuja finalidade é colocar a "1ª carga de explosivos" na sociedade e depois esperar para ver...
Aqui o propósito do Gov é duplo: 1) detonar, em termos sociais, essas intenções governamentais - de que o próprio Governo não está seguro de serem as melhores políticas públicas, por vezes ao arrepio do respectivo Programa de Governo com que foram eleitos; 2) e aferir como se comportam as oposições - e a sociedade civil em geral (incluindo aqui, um pouco forçadamente - os sindicatos e as corporações de interesses) - às medidas e políticas públicas comunicadas à sociedade.
É isto que tem acontecido reiteradamente no caso da pseudo-privatização da RTP (e também nas pastas da Educação, Saúde, Agricultura, Defesa, etc) e do seu modelo de privatização e de negócio que ainda ninguém percebeu, nem o próprio PM, cujo pensamento sobre esta matéria vale ZERO.
Talvez isto explique por que razão a resposta de Passos Coelho acerca do futuro da RTP seja, invariavelmente, a mesma: está a "estudar" o dossier. Afinal, não é só o relvas que precisar de "estudar", o qual foi fazer terapia clínica para Timor. Mas nem as distâncias eliminam os problemas revisitados nas bandeiras, pinturas, slogans, etc..
Se assim for, na prática, quem tem sido o PM informal deste Gov, é o sr. Borges, ainda que tal não ocorra por acaso, mas porque o Gov, na expectativa de enviar os seus "peões de brega" para se proteger das medidas impopulares que anuncia, as comunicações à sociedade têm tido tantos efeitos perversos que quem, verdadeiramente, se queima é o PM e o Gov no seu conjunto, e não aqueles que estão formalmente fora dele.
A política, hoje, em Portugal, é feita essencialmente de absurdos.
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