domingo

1826 - O estado do País segundo Garrett

Uma pérola do nosso realismo político e sociológico que urge recuperar.

[...] Estamos num país pequeno, pobre, mal povoado, mal educado. Certo é, ainda mal que certo; pequenos somos, pobres nos fizeram, despovoados nos deixaram, pessimamente nos têm educado. Mas são esses os males tão graves, tão renitentes, tão incuráveis, como a ignorância ou a má fé, senão é que ambas juntas nos pregam partidas todos os dias? 

Mal dividido, incomunicável quase é esse território porque as naturais comunicações por água são poucas e derrancadas, artificiais nenhumas, e por terra passaram em provérbio as estradas de Portugal. Desses belos portos muitos ou estão inutilizados pela incúria da administração como o de Viana e outros, ou desaproveitados pelo mesmo desleixo como o de Aveiro: muitos de pouco prestam pelo abandono do governo, que não provê a nenhuma das comodidades e seguranças que se buscam ao demandar e ancorar em um porto. Outros não são metade do que podiam ser, e nessa conta vão os primeiros e mais frequentados do reino, como o do Porto, e ainda direi o de Lisboa (por não deitar aqui o que noutro lugar mais devagar trataremos, e só notar de passagem um objecto que todos conhecem), os poucos faróis que convidam e guiam a entrar num dos primeiros ancoradouros do mundo, parecem antes fanais mandados acender por alguma mão caritativa para avisar o navegante de que se afaste e fuja de um país onde se persegue o comércio, a indústria é crime e o amor do trabalho capitulado de inovação perigosa.

Amargas, duras, desanimadoras verdades são estas; mas verdades são. Porém, o mínimo senso comum, já não digo o amor da causa pública, o mínimo lampejo de razão nos administradores do estado, não pode remover estes males que nem nascem da natureza do terreno, nem de sua pequenez provém, nem irremediáveis são?

Somos pobres. Não há dúvida que o somos; muito mais se se olhar ao quanto ricos podíamos ser. E ainda assim não é tal a nossa pobreza que, a par com muitas nações, não possamos considerar-nos abastados. A principal origem da nossa pobreza é a desigualdade dos haveres: este achaque só tem remédios, um falível, imperfeito e demais horroroso e abominável, é o sistema nivelador que os descamisados franceses queriam dar ao seu país, de sanguinosa e execranda memória. Outro que é o que em Inglaterra  tem dado a indústria e o comércio, que todos os dias mete na balança das fortunas públicas muitos milhões, com que ela se equilibra apesar do demasiado peso com que para o outro lado a pende a massa enorme da indivisa propriedade natural, urbana e rústica, quase toda nas mãos de certas famílias. Em Portugal não é o vício nem um décimo do que é em Inglaterra; e os remédios são, portanto, mais fáceis. Talvez nenhuma nação de nosso tamanho tenha a quantidade de numerário que nós possuímos ainda hoje mesmo; estagnado, sim, por avaros cofres enterrados, e com razão, por seus possuidores, porque aonde não há segurança para o especulador ninguém quer arriscar seu dinheiro. Haja, porém, essa segurança e ver-se-á circular o sangue do Estado por suas veias e artérias logo que lhe desatem as compressas com que todos os membros do corpo lhe têm ligado. 

A nossa agricultura está em miserável estado; mas não toda, porque a dos vinhos não vai ainda tão decaída como a dos cereais. E essa mesmo tem, conquanto lentamente, melhorado muito do triste estado em que a achou a lei de 1821..

Os vinhos são o nosso primeiro género de cultura de exportação. Que tem feito a administração para o animar? Quantos tratados de comércio poderiam fazer com as potências cujos géneros nós importamos, ou podemos importar!

A cultura das árvores para madeira é uma coisa abandonada inteiramente entre nós, e todavia quase não haverá género algum de árvore que em nosso clima se não dê perfeitamente. Resta-nos o pinhal de Leiria, [...]

Não falaremos da exploração das minas, que muitas temos; não mencionaremos as fábricas, das quais muitas já floresceram tanto, muitas facilmente podem florescer; isso exige longo, pausado espaço para se tratar, nós so podemos por ora tocar os capítulos das coisas. Numa porém nos demoraremos um momento mais, que é a mais certa e poderosa causa da nossa pobreza; queremos falar da falta de comunicação em que as províncias do reino estão umas com outras, estão ainda entre si as terras de uma mesma província. Este estado de isolação produz dois males terríveis que um do outro se geram: 1.º, a nulidade do comércio interior que é a mais segura fonte da prosperidade pública, que é aquele que maior número de cidadãos enriquece, e que mais espalha e equilibra as fortunas públicas; 2.º, a estagnação, que daí provém, dos grandes capitais nas terras principais do reino, que por não terem canal por onde derivem para ir fertilizar o interior do país, ou apodrecem nas burras dos enormes capitalistas, ou refluem para mais industriosos países.

E sem falar nas estradas, cuja administração tem sido sempre a mais absurda; quantos ribeiros há em Portugal que podem formar excelentes canais para a chamada navegação de terra? Quantos rios que seriam navegáveis, se tão somente removessem os obstáculos que a sensualidade e a cobiça dos grandes proprietários eclesiásticos e seculares lhe têm posto com seus açudes, pesqueiros, etc., etc., quantos, que sem muita despesa, o seriam? [...]

Triste estado, mísero povo que a tal chegou! Muita fé é precisa para esperar a salvação pública em tal posição. Essa fé temos nós todavia, porque não há nada que as boas leis não emendem.

Essas leis esperamos nós de uma legislatura em que todas as opiniões, todos os interesses estão representados; em que desde o trono até ao último peão, todos os membros da grande família, ou per si ou por seus procuradores, concorrem ao exame das necessidades públicas e dos meios de as remediar.

Almeida Garret. «Estado actual de Portugal na abertura das cortes geraes de 1826», in O Portuguez, n.º 1, 30-X-1826.






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