A razão é simples, na actual Sociedade em Rede, estruturada em redes que interligam mercados financeiros, agências de rating e gestores de fortunas à escala global, quanto maior a riqueza individualmente acumulada maior a probabilidade que esse dinheiro transite para ser investido em fundos financeiros globais e não localmente na criação de negócios.
Na passada semana a revista The Economist realizou em Cascais a conferência The Lisbon Summit. O objectivo dessa conferência foi discutir e analisar as perspectivas de crescimento económico e reformas em Portugal. Na sua plateia estiveram essencialmente homens de negócios portugueses (e também algumas, poucas, gestoras) na sua maioria trabalhando em empresas estrangeiras sedeadas em Portugal, bem como algumas grandes empresas de capitais portugueses e ainda uma ou outra PME nacional.
Se mudássemos, por um momento, o nosso olhar da plateia para o palco da Lisbon Summit, veríamos surgir outro tipo de pessoas: os políticos. A função desses, ao longo desses dois dias, foi explicar e tentar convencer a plateia sobre o que tem sido feito e o que se pretende fazer em termos de políticas públicas para induzir o crescimento económico.
Introduzamos, agora, uma hipótese: a boa governação económica não depende apenas de ter gestores que saibam gerir bem empresas e políticos preocupados com o crescimento económico. A boa governação económica depende de se saber como diminuir as desigualdades num país. Essa é uma sugestão de Robert Reich, professor em Berkeley, secretário de Estado do Trabalho de Bill Clinton, autor de várias obras sobre a economia americana e, actualmente, produtor do sucesso cinematográfico Inequality for all.
Pensemos, agora, em Portugal e na sua distribuição de riqueza. Se analisarmos alguns dos dados disponíveis, verificamos que entre 1985 e 2009 se acentuaram as desigualdades salariais em Portugal. Ou seja, um salário a meio da tabela de remunerações em Portugal valeria sensivelmente 25% dos salários mais elevados praticados em 1985, mas em 2009 apenas valeria, mais ou menos, 15% dos salários mais elevados.
Se tal comparação não chegar para compreender a desigualdade portuguesa, podemos também lembrar-nos que em 2010, de entre os países da União Europeia, Portugal apresentava o nível de concentração do rendimento familiar mais elevado entre os 20% e os 5% mais ricos da população. Ou seja, os 20% mais ricos detinham cerca de 42% do total do rendimento familiar do país e os 5% mais ricos cerca de 17% – vale a pena aprofundar esta análise lendo o trabalho de Frederico Cantante online no CIES-IUL.
Precisamente pelo papel que a redução das desigualdades pode ter no desempenho da economia, Robert Reich sugere a necessidade de desenvolver uma estratégia para a classe média em países de elevadas desigualdades, como por exemplo Portugal. O seu argumento não é baseado na moralidade ou na justiça da maior repartição do rendimento, mas sim no facto de, fruto das crescentes desigualdades, existirem dois tipos de ameaças às nossas sociedades.
A primeira ameaça é económica, pois a menos que a classe média receba uma parcela justa da riqueza produzida, não será capaz de consumir o que podemos produzir sem recorrer ao endividamento – algo que não permite sustentar crescimentos elevados sem crises recorrentes, do tipo daquela que actualmente vivemos.
A segunda é uma ameaça política, pois uma crescente desigualdade acompanhada pela percepção generalizada de que as grandes empresas e o sector financeiro estão alinhadas com o Estado, com o intuito de tornar os ricos mais ricos, dá azo a todo o tipo de demagogias e extremismos de ambos os lados do espectro político.
A menos que estas tendências sejam revertidas, a classe média não voltará a ter o poder de compra necessário para manter a economia a crescer e isso acabará por atingir também aqueles que hoje melhor estão em termos económicos. Daí, que seja preciso criar uma estratégia de governação orientada para a classe média. Há obviamente custos financeiros a pagar mas, como sugere Reich, há também formas de os suportar sem aumentar a dívida pública de um país.
Uma estratégia para a classe média destinada a minorar as desigualdades, como a proposta por Reich, passa, por exemplo, por introduzir uma taxa de rendimentos inversa. Ou seja, a introdução de suplementos salariais devolvendo parte do dinheiro pago em impostos. Em vez de um rendimento mínimo garantido teríamos uma devolução para aquelas famílias com maior propensão para aumentar o consumo.
Tal custaria dinheiro, mas as receitas perdidas para o Estado seriam substituídas por duas outras medidas: uma taxa de carbono (inserida nos bens e serviços transaccionados) e o aumento das taxas para os 5% mais ricos. Isto, para além de dar aos rendimentos de capital o mesmo tratamento aplicado aos rendimentos do trabalho.
Consumir mais e desenvolver mais a economia nacional em sectores chave, faria chegar a nossa economia ao seu máximo produtivo e permitiria um crescimento sustentável.
Uma outra medida estratégica proposta por Reich passaria pela introdução de um Subsídio de Reemprego em vez do actual Subsídio de Desemprego. O antigo sistema foi desenhado para dar protecção às pessoas até que conseguissem obter empregos no final de uma crise. No entanto, hoje a maioria das pessoas que perde o seu emprego não o obtém de volta, juntando-se à lista de desempregados de longa duração.
Um sistema de reemprego que permita durante dois anos às pessoas receber a diferença entre 90% do seu salário original e o salário que obtiver no seu novo emprego seria, segundo Reich, uma forma mais eficaz de mudar o mercado de trabalho do que aquelas actualmente em fase de experimentação. Medidas como esta seriam financiadas, em parte, por novas taxas sobre as empresas saudáveis que decidam despedir apenas para aumentar a sua remuneração accionista, desincentivando assim os despedimentos para sobrecarregar o Estado.
Porque essas medidas gerariam um crescimento mais forte e mais estável do que o conseguido pelas políticas actuais, permitiriam aumentar os rendimentos das empresas e diminuir a dívida da nossa economia ao longo dos anos vindouros.
O custo de continuar como hoje estamos é muito maior. Ou seja, continuar com uma economia que funciona abaixo da sua capacidade, quer em pessoas quer em produção, é uma terrível perda de recursos. E uma sociedade alimentada pelo ressentimento provocado pela desigualdade é também uma sociedade instável.
Mas, para que tudo isto seja possível, é necessário que a prática política deixe de ser menos parecida com a gestão de empresas. Precisamos que cada qual assuma a sua função. Precisamos que os gestores se foquem na criação de lucro, e não na política, e que os políticos deixem de copiar os gestores procurando que os países dêem lucro.
O autor é docente do ISCTE-IUL em Lisboa e investigador do Centre d'Analyse et Intervention Sociologiques (CADIS) em Paris.
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Obs: São sempre interessantes, porque reflexivas e alimentadas por boas fontes, estes artigos de Gustavo Cardoso. Além de um eficiente domínio dos conceitos também introduz hipóteses de trabalho que nos obrigam a pensar e, desse modo, a gerar novas ideias, a rasgar novos caminhos para a economia e a sociedade portuguesas, hoje tornadas reféns duma elite impreparada, sem experiência de governação, sem mundo nem visão de futuro, além da terrível incapacidade de comunicar medidas que infundam esperança às pessoas e às empresas.
Neste contexto, governar tornou-se - para o XIX Governo Constitucional - debitar imposto sobre imposto, corte salarial sobre corte salarial. Ora, isto não é governar, é, antes, um exercício cego de talhante em que o profissional da carne corta à medida do poder de compra do cliente que tem pela frente.
Seja como for, alguém estar a ver a Miss Swaps a por em prática as receitas do economista citado no texto?!
Alguém estar a ver Passos Coelho dar o aval a que as medidas de Robert Reich, designadamente a taxa do rendimento inversa, a taxa de carbono às empresas mais ricas, ou ainda as medidas de reemprego.. possam vingar?!
Não creio que com esta composição ideológica e pragmática algumas daquelas medidas conheça luz do dia, pois estamos perante um governo neoliberal atípico: um governo que não se importa em privatizar os CTT - um serviço de grande proximidade às populações; ou em privatizar as Águas, sob a argumentação de que os privados gerem melhor e mais eficientemente esses activos; mas é o mesmo governo, curiosamente, que injecta dinheiro num banco como o Banif e, perante a estranheza de todos e a inoperacionalidade da justiça, continua a injectar capitais arrecadados pelos impostos dos portugueses para tapar o buraco ao BPN, o maior crime económico-financeira do séc. XX - que tem todos os seus cabecilhas identificados e a justiça nada faz para os julgar e meter na cadeia.
Provavelmente, estas realidades integram um grupo de idiosincrasias tipicamente lusas que são do total desconhecimento de Reich, pelo que me arrisco a antever que se ele conhecesse as práticas em Portugal a este nível, que envolvem o inner circle de Belém, jamais pensaria que algumas das suas receitas económicas para dinamizar a economia funcionariam entre nós.
E não funcionariam em Portugal pelo simples facto de que - ao contrário da América, é o Estado que dita o que é o mercado, como ele deve funcionar e qual a sua dimensão, logo todo o universo de empresas e de pessoas estão profundamente dependentes do Estado - que é pai, é empregador, é inquilino, é senhorio, concessiona, enfim, é um pouco como um albergue espanhol - abre as pernas e mete tudo lá para dentro. É óbvio que Robert Reich desconhece estas subtis realidades que, em bom rigor, roçam a corrupção e na América inúmeros desses conluios terminariam na cadeia.
De resto, algumas daquelas medidas - saudáveis e bem intencionadas - evocam-me a Taxa Tobin nos anos 70 (do séc. XX) - em que se prescreveu taxar as transações financeiras e, com essas receitas, investir na redução das desigualdades sociais no interior das nações a fim de diminuir as desigualdades e as injustiças entre os homens. Não teve sucesso. Quarenta anos depois, em Portugal, ainda ouvimos os deputados do BE reclamar pela sua aplicação. Isto revela uma coisa simples: a política, que devia ter o primado da condução dos processos sociais e económicos, ficou submergida pela financeirização do mundo - remetendo a política a uma função secundária, parlamentar, retórica mas já não verdadeiramente decisional.
Veria mais as coisas nos termos em que Amartya Sen as coloca, sem, contudo, querer marginalizar as ideias de R. Reich promovidas por Gustavo Cardoso, um grande economista e um maitre à penser do nosso tempo.
E ver as coisas pelas lentes de Sen recentraria mais os problemas e constrangimentos do nosso tempo e da nossa circunstância. Ou seja, não conseguimos sair do beco em que colocaram 10 milhões de portugueses porque não temos liberdade política suficiente para fazer certas reformas no sistema político; PSD e PS são demasiado parecidos, por isso trocá-los no poder representa uma baixa taxa de inovação e mudança sociopolíticas; e não havendo grandes liberdades políticas também não conseguimos gerar oportunidades sociais, talvez por isso todo o escol dirigente, mais numa atitude desesperada do que numa postura construtiva e esperançada, desafia os seus próprios concidadãos a emigrar, coisa que nem Salazar fez em quase 40 anos de ditadura conservadora.
Não havendo liberdades políticas nem a geração de oportunidade sociais também não dispomos de garantias de transparência na relação dos cidadãos e das empresas com o Estado e, mais concretamente, na administração da justiça, talvez o maior cancro da economia nacional, porquanto o seu bloqueio impossibilita o apuramento de responsabilidades (civis e penais) que permitiriam a milhares de empresas e pessoas regressarem ao mercado e, ao mesmo tempo, viabilizariam a normalização dos créditos mal parados e, consequentemente, a criação de emprego, riqueza e bem-estar decorrentes dessa normalização de relações.
Numa palavra: Portugal está bloqueado porque o seu processo de desenvolvimento ficou refém daquelas interligações, daí a necessidade apoiar uma diversidade de instituições que integrem os procedimentos democráticos, os mecanismos legais, as estruturas de mercado, os serviços de educação e de saúde, os meios de informação, etc...
Mas terá sempre que ser o vector político a comandar o processo, e não a dimensão financeira e económica, sob pena de os fins e os meios do Estado não perceberem que o desenvolvimento só faz sentido se for para reforçar a liberdade de todos e de cada um de nós.
Naturalmente, já compreendemos todos, pelo menos os bem intencionados e os mais atentos, que as medidas propostas por Reich não terão cabimento na sociedade portuguesa com o XIX Governo Constitucional, e as preocupações de Amartya Sen encontram o mesmo destino.
E aqui voltamos à vaca fria: o problema desta nomenklatura é ideológico e político, não é processual. Além de que é sempre muito difícil negociar com quem se acha dono da verdade e, por extensão, dono do poder. Circunstância que introduz uma dimensão de arrogância no sistema que agrava a natureza das relações e dificulta a realização de consensos.