Este é um artigo que pretende desmontar ideias feitas sobre os movimentos de protesto e esperança que nos acompanham há três anos.
O pretexto é duplo. Por um lado, os acontecimentos na Turquia e no Brasil e, por outro, um artigo de Moises Naim no
El País intitulado “
Turquía, Brasil y sus protestas: seis sorpresas” a quem agradeço o desafio intelectual das perguntas feitas e a possibilidade de discordar das suas respostas.
A minha discordância com Naim resulta do facto de ele sugerir que há surpresas nestes acontecimentos e eu entender que não as há.
Há sim cegueiras analíticas no poder político e na cobertura jornalística face ao descontentamento - algo normal num mundo em radical mudança de paradigma como aquele em que estamos viver nesta década.
Optei por rebater ponto por ponto as seis surpresas apontadas por Naim, questionando-as e dando respostas que procuram mostrar um outro olhar sobre os acontecimentos na esperança de nos afastar do senso comum e das ideias feitas que parecem imperar em muitos meios de comunicação de massa e também em posts e tweets que circulam na rede.
1. Terão os protestos origem em pequenos incidentes que se tornam grandes?
Na realidade não se trata de pequenos incidentes que se tornam grandes. É o sentimento claro de injustiça que está na origem dos protestos. Pode parecer à primeira vista que não o é, pois tentamos dar sentido à diversidade contida nos protestos e é mais fácil, mas menos exacto, assumir que se parte do pequeno para o grande protesto.
Aquilo a que assistimos nas avenidas do Brasil (e que já antes vimos em praças de muitos países) resulta do somatório de múltiplas vozes que tomam o espaço público da cidade - mas já antes estavam presentes nas conversas de café ou em família.
O que ocorre é que o elemento mobilizador é normalmente percebido como pequeno, mas é pequeno apenas porque na realidade é a gota de água que faz transbordar o copo do descontentamento.
Quando muitas gotas de água se juntam altera-se a percepção individual, a injustiça passa a ser sentida e partilhada em conjunto e o resultado é que os indivíduos tomam consciência de que estão a fazer parte de um movimento de protesto.
O que junta então as pessoas? Primeiro, um pequeno grupo de pessoas altamente mobilizadas perante uma causa e depois o mimetismo da acção.
Um mimetismo associado à mera cobertura do evento pelos meios de comunicação de massa que possibilitam que surja na mente de muitos a pergunta "e se eu me juntasse a eles? Não será já hora de sermos ouvidos?".
Quando a TV e a Rádio não fazem o seu papel, ou são percebidas como controladas pelo poder, são as redes sociais, via Twitter e Facebook, que fazem o passa palavra necessário para quebrar o receio e induzir a confiança baseada no número – “nós já aqui estamos, vem ter connosco à praça!”.
Não há nada de surpreendente em as pessoas quererem mais justiça e dizerem publicamente na rua aquilo que vêm dizendo em maioria absoluta nos inquéritos de opinião.
Desde há uma década que, em países em desenvolvimento ou desenvolvidos, os inquéritos realizados por sociólogos, por institutos estatísticos ou por empresas de sondagens mostram que a desconfiança nos partidos e nos políticos é galopante – “não acreditamos nestas políticas e nestes políticos” é a afirmação comum aos diferentes estudos.
Algo que está anunciado globalmente há mais de uma década não constitui uma novidade, mas as instituições e os actores políticos têm preferido manter-se em negação acreditando que o descontentamento passa - um erro crasso, como podemos hoje percepcionar pelo que assistimos.
2. Será que os governos reagem mal perante os protestos?
Não podemos generalizar quanto à reacção dos governos. É verdade que todos se sentem mal com a crítica e o desafio ao seu poder. É verdade que podemos agrupar os governos em termos de democracias e não democracias. É também verdade que quase todos, através de um qualquer nível de governo, acabam por colocar a polícia na rua. Mas também é verdade que as polícias não reagem sempre do mesmo modo e se há confronto e provocação em muitas situações, também há respeito mútuo e distância pacífica em muitas outras – aliás, o confronto desencadeado por poucos é a excepção que confirma a regra pacífica dos movimentos.
Provavelmente, o principal problema dos governos é a incapacidade comunicativa. Marcelo Branco, activista e analista social brasileiro, captou bem esse fenómeno quando afirmou que o Governo brasileiro não sabia comunicar nas redes sociais. E eu adicionaria que os governos não sabem nem comunicar nas redes sociais nem comunicar em rede - a subjectividade (isto é, o olhar sobre a realidade) dos governos está moldado pela comunicação de massa.
É muito difícil para qualquer governo assumir que governa mas perdeu a capacidade de falar com muitos dos seus cidadãos, porque deixou de conseguir pensar como eles e, consequentemente, não sabe comunicar em rede. A maioria dos governos contemporâneos ainda não compreendeu que vive na era em que "A mensagem são as pessoas" e já não naquela em que “A mensagem são as políticas”.
3. Será que os protestos não têm nem líderes nem cadeias de comando?
Quem olha para os protestos a partir do olhar das lutas de classe ou da oposição de interesses entre sindicatos e associações patronais vê protestos sem líderes e sem cadeias de comando. Logo, ou os descarta como protestos sem interesse ou, quando se vê empurrado para ter de lidar com eles, busca caras e nomes na tentativa de recuperar o modelo que lhe dá segurança, por ser aquele com que sabe lidar.
Essa lógica não é apenas aquela em que está imbuído o poder político, é também a do jornalismo tradicional na sua busca de rostos e pertenças ideológicas ou associativas.
Quem está na rua não representa ninguém excepto a si próprio - que é o belo ideal de pensamento e acção na base da democracia.
O que se pede ao jornalismo e aos que gerem instituições de poder hierárquicas é que sejam capazes de interpretar as críticas e as perguntas feitas nas ruas e, aos governantes no poder, que as traduzam em propostas e políticas de acção.
A quem está nos gabinetes das prefeituras, dos governos estaduais, das câmaras municipais ou nos governos nacionais ou federais cabe olhar para os que se representam a si próprios nas praças e saber ouvir.
É claro que o problema reside no facto de nesses gabinetes raras vezes se compreender a sociedade em rede, o seu funcionamento e que a autonomia do sujeito é a matriz de intervenção e de vivência da maior parte daqueles que tomam as ruas para protestar - e não se tem de ter um telemóvel com ligação à Internet para o fazer e pensar diferente.
O que assistimos é a um conflito cultural em que quem governa não compreende quem protesta e em que quem protesta espera que quem o representa tenha a mesma percepção cultural da realidade - algo que nada tem a ver com esquerda nem direita, mas sim, por um lado, com a busca do uso da autonomia pelos actores individuais e, por outro, com a tentativa de manter o controlo da acção por parte do poder político.
4. Não há com quem negociar nem quem encarcerar nestes protestos?
Há de certeza quem encarcerar, como se nota pelas imagens e descrições com que somos brindados a partir do teatro da acção nas ruas e praças. Já quanto a não haver com quem negociar essa é a pergunta errada, pois o que se deveria perguntar é o que é negociar na sociedade em rede?
Se entendermos a negociação como pessoas que se sentam à mesa para expor reivindicações e tentar atingir um ponto de entendimento, temos de assumir que os movimentos de protesto são na sua estrutura o oposto desse modelo.
Há de facto plataformas organizadas que podem negociar questões claramente identificadas, sejam elas o travar a destruição de um parque ou o aumento do preço dos transportes. Mas essa é apenas uma das partes do movimento e sempre minoritária. Sendo essa uma das características deste movimento, negociar implica também os poderes interpretarem as queixas dos milhões que autonomamente se representam a si mesmos.
Ou seja, implica compreender que o poder tem de agir politicamente tal como quando usamos um motor de busca na Internet. Perante uma questão posta na rua, cabe ao poder encontrar a resposta certa para essa questão. Ou seja, o poder político tem de interpretar, dar sentido ao que ouve e vê e apresentar possíveis listagens de resposta - entre essas possíveis respostas estarão as que servem as diferentes questões colocadas e a vontade das pessoas que as fizeram.
Neste modelo de negociação não há lugar à reunião à volta da mesa, pois a negociação só termina quando a potencial resposta à crítica se transforma em política e acção governativa concreta - entretanto, os governos têm de ser menos opacos e mostrar que estão a fazer algo no sentido que lhes é solicitado, pois só assim se cria confiança.
Na sociedade em rede não são só as sondagens que são permanentes no escrutínio das opiniões dos cidadãos sobre o que pensam sobre dado assunto e dado actor politico. São também os protestos e reivindicações que são permanentes e que necessitam de ser pensadas e trabalhadas por parte do poder do mesmo modo que permanentemente estão a inquirir a opinião pública - a comunicação é em rede, já não flui num só sentido.
É claro que tal não se coaduna com a lentidão dos gabinetes, dos parlamentos ou senados, mas se há tantos a criticar essa lentidão e aparente ineficácia (quando não acção dolosa para impedir a resolução dos problemas) talvez valha pena os governos questionarem-se sobre se a negociação não passa também pela mudança estrutural do entendimento sobre o que é negociar e governar na sociedade em rede.
5. É impossível prognosticar as consequências dos protestos?
Não é impossível, pois todos nós, os que estudamos estes fenómenos, temos vindo a analisar que na sociedade em rede a máxima de que “onde há injustiça percebida há revolta” tem outras nuances e conotações quando à sua forma, o seu desencadeamento e a sua acção.
Sabemos que no contexto de abundância de informação e comunicação, a noção de injustiça está muito mais latente e é partilhada por muitos mais - mesmo que não seja experimentada na primeira pessoa, há a percepção de solidariedade face a algo que é percebido como errado.
Sabemos também que há sempre sinais fracos que antecedem os eventos e, em todas as situações até agora vividas, os mesmos foram perceptíveis para muitos dos que estudam movimentos sociais, só que políticos e governantes decidiram desvalorizar a probabilidade de os mesmos ocorrerem.
Quando hoje estudamos movimentos sociais sabemos que mal um sinal fraco de protesto é visível, deve ser percebido como potencialmente mobilizador. Sabemos que a probabilidade de se transformar em protesto efectivo é hoje muito maior. É uma forma diferente de lidar com a antecipação, mas também ela é produto da nossa sociedade em mudança.
No entanto, é verdade que os governos lidam mal com a leitura de sinais fracos, preferem quase sempre acreditar mais que estão certos do que assumir que podem estar errados e dar o benefício da dúvida aos cidadãos.
Quanto ao prognóstico sobre para onde nos levam os protestos, a prática diz-nos que há vários padrões.
Nos regimes democráticos, os partidos dos governos perdem sempre algo - esse algo vai da queda em sondagens à perda de eleições, dependendo da confluência do momento do protesto com o ciclo eleitoral.
As oposições tendem sempre a ganhar menos do que o que é perdido por quem está no poder e, por sua vez, muitos cidadãos retiram-se da participação eleitoral para a busca individual de soluções em rede com outros que partilham o mesmo problema ou visão - ou então colocam-se à espera de que a mudança se torne mais visível no seio da política tradicional e que nos aproximemos de uma democracia mais próxima do nosso tempo.
Nos regimes não democráticos ou demo-autoritários o resultado é o desgaste lento até à implosão violenta (ou não) e a chegada de novos actores governativos - mas sem certeza de mudança radical do que se buscava no protesto.
No cômputo geral, para os cidadãos há sempre um ganho, algo muda, algo é atendido. Mesmo que no processo algo que se dava por adquirido seja colocado em causa, percebe-se que o actor individual pode ter autonomia, que pode influenciar o rumo de algo e essa é uma dimensão iminentemente gratificante para o ser humano - uma vez experimentado o poder de contar para algo, o ser capaz de influenciar a prática passa também a moldar a nossa identidade.
6. Será verdade que a prosperidade não compra estabilidade?
A relação entre estabilidade e prosperidade não é causal. Ou seja, não se trata de quanto mais prosperidade mais reivindicação e, consequentemente, como os poderes não podem responder tão rápido quanto o desejado, daí resultar incompreensão entre eleitores e eleitos, o que, por sua vez, provoca protestos e quebras de estabilidade.
A relação é muito menos causal e muito mais assente na generalização de um menor grau de tolerância dos indivíduos face quer às assimetrias de poderes, que limitam a autonomia individual, quer quanto à desigualdade de rendimentos que alimenta as injustiças.
O que se passa, mas que escapa a muitos que não estejam directa ou indirectamente envolvidos na acção de rua ou empatia com os movimentos a partir de casa, é que aqueles que estão em protesto estão efectivamente em ruptura com as normas e instituições que temos. E estão-no, porque efectivamente estão a olhar o mundo de forma diferente e a dizer "estamos a afundar-nos, já todos vocês o viram, mas nós não iremos junto convosco, iremos lutar por algo diferente!".
Pela sua acção, pelo dizerem basta, estão também a mudar a nossa forma de pensar e a tornar-nos menos tolerantes e mais exigentes para com o (mau) funcionamento da democracia e para com os que não sabem governar em rede com os seus cidadãos.
É claro que o poder, seja ele de direita ou esquerda, não convive facilmente com a crítica mas tem de aprender rapidamente o que é a crítica em rede e é isso que lhe está a ser dito há três anos nas praças e avenidas por quem se junta pelas redes sociais, formando redes sociais nas ruas.
Não há surpresas nos protestos, há é cegueiras políticas e acima de tudo uma incapacidade comunicativa entre o poder e os cidadãos, porque estão a viver mundos diferentes.
Da Turquia ao Brasil (e outros) vivemos o nosso descontentamento com o que temos, mas estamos a demonstrar – a quem souber ouvir – que o mundo muda quando queremos que mude.
Para mudar não é preciso ter um programa de governo, basta saber o que é injusto. As medidas e os programas surgirão da experimentação. Pois, nem sempre é preciso saber que caminho seguir, basta saber para onde se quer ir.
Gustavo Cardoso é Directeur D’études Assossiés na Maison des Sciences de L’Homme e docente do ISCTE-IUL