Edward Snowden e a recuperação da cultura da Guerra Fria: valores democráticos e contradições da realpolitik
Poderá referir-se que a "caça" aos terroristas, especialmente após o fatídico 11 de Setembro de 2001, fez com que o poder em Washington DC, integrasse como objectivo da sua política externa, em todos os azimutes, o reforço daquele propósito. Mas há sempre efeitos perversos na adopção de uma política, tanto mais se ela for dinamizada pela única superpotência restante da Guerra Fria (os EUA), que culminam em perigosas derrapagens e atentados às liberdades de comunicação dos cidadãos, intra e extra-muros.
Como nos recordamos, o pós Guerra Fria levou para o sistema internacional, modelado pela globalização (neo)liberal emergente, um conjunto novo de direitos assente na exaltação do regime democrático, no reforço do rule of law e, por todos, a glorificação dos direitos humanos. Seja na política doméstica como na política externa, esta moderna trindade foi reconhecida como uma espécie de imperativo categórico (kantiano) que passou a ser constantemente evocado.
Foi também a fórmula encontrada para conformar a mundialização liberal com a democracia cosmopolita que se pretendia estender às autocracias, como a Rússia e a China, sem sucesso, como se tem visto.
Seja como for, o pós-Guerra Fria conheceu um novo ciclo que consistiu em conciliar os interesses e expectativas dos cidadãos (com aquela trindade de valores) como um pólo de valores contra a barbárie, vista sob uma das suas faces: violação da privacidade dos cidadãos, ainda que seja grave, na ponderação dos interesses e dos valores no cálculo do realismo de Estado, a traição ao Estado e às agências de informação que o integram.
A compatibilização deste dois interesses, contraditórios por natura, revela-se difícil em momentos delicados da história, senão mesmo críticos nas relações bi e multilaterais entre as principais superpotências do mundo, que aqui partilham alguma cultura de desconfiança típica da Guerra Fria.
Mas o que será, porventura, mais curioso neste caso suscitado pela fuga de E. Snowden, é que os segredos de Estado das democracias, considerados valores fundamentais, afundam-se hoje de forma galopante, do ponto de vista do direito, da ética e da moral universais. Enquanto que as velhas autocracias, como a Rússia e a China, ambas com tradições de poder imperial, se comportam, neste caso, como actores que observam o Direito Internacional Público, ainda que passem a vida a violar os mais elementares direitos, liberdades e garantias no interior das respectivas sociedades.
Triste ironia da história, é aquilo que o "fim da história", segundo alguns, nos reserva...
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