Género:Conto.
Nunca o Silvestre tinha tido uma pega com ninguém. Se às
vezes guerreava, com palavras azedas para cá e para lá, era apenas com os
fundos da própria consciência. Viúvo, sem filhos, dono de umas leiras herdadas, o que mais parecia inquietá-lo era a maneira de alijar bem depressa o dinheiro das rendas. Semeava tão facilmente as economias, que
ninguém via naquilo um sintoma de pena ou de justiça – mesmo da velha –, mas
apenas um desejo urgente de comodidade. Dar aliviava. Pregavam-lhe que o
Paulino ia logo de casa dele derretê-lo em vinho, que o Carmelo não comprava
nada livros ou cadernos ao filho que andava na instrução primária. Silvestre
encolhia os ombros, não tinha nada com isso. As moedas rolavam-lhe para dentro
da algibeira e com o mesmo impulso fatal rolavam para fora, deixando-lhe, no
sítio, a paz.
Ora um domingo, o Silvestre ensarilhou-se, sem querer,
numa disputa colérica com o Ramos da Loja. Fora o caso que ao falar-se, no
correr da conversa, em trabalhadores e salários, Silvestre deixou cair que, no
seu entender, dada a carestia da vida, o trabalho de um homem de enxada não era de
forma alguma bem pago. Mas disse-o sem um desejo de discórdia, facilmente,
abertamente, com a mesma fatalidade clara de quem inspira e expira. Todavia o
Ramos, ferido de espora, atacou de cabeça baixa:
– Que autoridade tem você para
falar? Quem lhe encomendou o sermão?
– Homem! – clamava o Silvestre, de
mão pacífica no ar. – Calma aí, se faz favor. Falei por falar.
– E a dar-lhe. Burro sou eu em
ligar-lhe importância. Sabe lá você o que é a vida, sabe lá nada. Não tem
filhos em casa, não tem quebreiras de cabeça. Assim, também
eu.
– Faço o que posso – desabafou o
outro.
– E eu a ligar-lhe. Realmente você
é um pobre-diabo, Silvestre.
Quem é parvo é quem o ouve. Você é
um bom, afinal. Anda no mundo por ver andar os outros. Quem é você, Silvestre
amigo? Um inócuo, no fim de contas. Um inócuo é o que você é.
Silvestre já se dispusera a ouvir
tudo com resignação. Mas, à palavra «inócuo», estranha ao seu ouvido montanhês,
tremeu. E à cautela, não o codilhassem por parvo,
disse:
– Inoque será você.
Também o Ramos não via o fundo ao
significado de «inócuo». Topara por acaso a palavra, num diálogo aceso de
folhetim, e gostara logo dela, por aquele sabor redondo a moca grossa de ferro,
cravada de puas. Dois homens que assistiam ao barulho partiram logo dali,
com o vocábulo ainda quente da refrega, a comunicá-lo à freguesia:
– Chamou-lhe tudo, o patife. Só
porque o pobre entendia que a jorna de um homem é
fraca. Que era um paz-de-alma. E um inoque.
– Que é isso de inoque?
– Coisa boa não é.
Queria ele dizer na sua que
Silvestre não trabalhava, que era um lombeiro, um vadio.
Como nesse dia, que era domingo,
Paulino entrara em casa com a bebedeira do seu descanso, a mulher praguejou,
como estava previsto, e cobriu o homem de insultos como não estava inteiramente
previsto:
– Seu bêbedo ordinário. Seu inoque
reles.
Quando a palavra caiu da boca da
mulher, vinha já tinta de carrascão.
E desde aí, inoque significou, como é de ver, vadio e bêbedo.
Ora
tempos depois apareceu na aldeia um sujeito de gabardina, a vender drogas para
todas as moléstias dos pobres. Pedra de queimar carbúnculos,
unguentos de encoirar, solda para
costelas quebradas. Vendeu todo o sortido. Mas logo às primeiras experiências,
as drogas falharam. Houve pois necessidade de marcar a ferro aquela roubalheira
de gabardina e unhas polidas. E como o vocabulário dos pobres era curto, alguém
se lembrou da palavra milagrosa do Ramos. Pelo que, inoque significou
trampolineiro ou ladrão dos finos. Mas como havia ainda os ladrões dos
«grossos», não foi difícil meter dentro da palavra mais um veneno.
Como, porém, as desgraças e a
cólera do povo pediam cada dia termos novos para se exprimirem, «inócuo» foi
inchando de mais significações. Quando o Rainha deu um tiro de caçadeira, num
dia de arraial, ao homem da amante, chamaram-lhe, evidentemente, inoque, por
ser um devasso e um assassino de caçadeira. Daí que fosse fácil meter também no
inoque o assassino de faca e a croia de porta
aberta.
«Inócuo» dera volta à aldeia,
secara todo o fel das discórdias, escoara todo o ódio da população. A moca
grossa de ferro, seteada de puas, era agora uma arma
terrível, quase desleal, que só se usava quando se tinha despejado já toda a
cartucheira de insultos. Até que o Perdigão dos Cabritos entrou pela ponte
norte da aldeia, com o cavalo carregado de reses, num dia de
feira, e se azedou com o taberneiro, quando trocava um borrego por vinho. De
olhos chamejantes, perdido, já no quente da refrega, o taberneiro
atirou-lhe o verbo da maldição. Houve quem achasse desmedida a vingança do
homem. Perdigão arreou:
Inoque será você.
Também ele não sabia que veneno
tinham despejado na palavra; mas, pelo sim pelo não, aliviou. E pela tarde,
enfardelou o termo infame com as peles da matança, e abalou com ele
pela ponte sul. Longos meses a palavra maldita andou por lá a descarregar o
ódio das gentes. Até que um dia voltou a entrar na aldeia, agora pela ponte sul
que dava para a vila, e não pela ponte norte que levava a terras sem nome.
Vinha em farrapos, na boca de um caldeireiro, mais
estropiada, coberta da baba de todos os rancores e de todos os crimes. Quando
deitava um pingo num caneco de folha, o caldeireiro pegou-se de razões com o
freguês. O dono do caneco correu uma mão amiga pelas costas do vagabundo:
– Lá ver isso, velhinho. O combinado foram cinco tostões.
E «inócuo» significou um nome feio
para um homem. Então o ajudante, ou o que era, do caldeireiro, tentou deitar
água na fogueira.
– Cale-se também você, seu noque
ordinário. A mim não me mata você à fome como fez a seu pai.
Porque «inócuo» também queria
dizer parricida. Então o Ramos, que passava perto, tomou a palavra
excomungada nas mãos e pediu ao velho que a abrisse, para ver tudo o que já lá
tinha dentro. Um cheiro pútrido a fezes, a pus, a vinagre, alastrou pelo
espanto de todos em redor.
Com os dedos da memória, o caldeireiro foi tirando do
ventre do vocábulo restos de velhos significados, maldições, ódios, desesperos.
«Inócuo» era «bêbedo», «ladrão», «incendiário», «pederasta»,
e, uma que outra vez, um desabafo ligeiro como «poça» ou «bolas». Para o calão
da gente fina, que topara a palavra na cozinha, nos trabalhos do campo,
soube-se um dia que significava ainda «escroque», souteneur,
e mais.
A aldeia em peso tremeu. Era
possível a qualquer apanhar com o palavrão na cara e ficar coberto de peste.
Eis porém que uma vez o filho do Gomes, que andava no colégio da vila,
insultado de inoque por um colega, numa partida de bilhar, lembrou-se à
noite de ver no dicionário a fundura vernácula25 da ofensa.
Procurou inoque. Não vinha. Procurou noque. Também não vinha.
Furioso, buscou à toa, quinoque, moque, soque. Nada.
Quando a mãe o procurou, para ver se estudava, encontrou-o às marradas no
dicionário. Choroso, o rapaz declarou:
– O meu pagnon26
chamou-me inoque, mãe. Queria saber o que era. Mas não vem no dicionário.
– Não vejas! – clamou a mulher, de
braços no ar. – Deixa lá! Não te importes.
– Mas que quer dizer?
Coisas ruins, meu filho. Herege,
homem sem religião e mais coisas más.
Não vejas!
Começaram então a aparecer as
primeiras queixas no tribunal da vila, contra a injúria de noque, inoque
e, finalmente, de «inócuo», consoante a instrução de cada um. Como a
palavra estropiada era um termo bárbaro nos seus ouvidos cultos, o juiz pedia a
versão da injúria em linguagem correta, sendo essa versão que instruía os
autos.
– Chamou-me noque.
– Absolutamente. Mas que queria
ele dizer na sua?
–
Pois queria dizer que eu era ladrão.
E escrevia-se «ladrão». Pelo mesmo
motivo, gravava-se a ofensa, de outras vezes, nos termos de «assassino»,
«devasso» ou «bêbedo».
Ora
um dia foi o próprio Bernardino da Fábrica que moveu um processo ao
guarda-livros pela injúria de «inócuo». Metida a questão nos trilhos legais, o
Bernardino procurou o juiz, para ver se podia
ajustar, previamente, uma bordoada firme no agressor. Mas aí, o juiz atirou uma
palmada à coxa curta, clamou:
– Homem! Agora entendo eu. Noque
era «inócuo»!
E admitindo que o vocábulo
contivesse um veneno insuspeito, pegou num dicionário recente, o último modelo
de ortografia e significados. Então pasmou de assombro, perante o escuro
mistério que carregara de pólvora o termo mais benigno da língua: «inócuo»
significava apenas «que não faz dano, inofensivo».
E pôs o dicionário aberto diante da ofensa de Bernardino. O industrial carregou
a luneta, e longo tempo, colérico, exigiu do livro insultos que lá não estavam.
– Nada feito – repetia o juiz. – O
homem chamou-lhe, corretamente, «pessoa incapaz de fazer mal a alguém».
–
Mas há a intenção – opôs o advogado, mais tarde, quando se voltou ao assunto. –
Há o sentido que toda a gente liga à palavra.
Nada feito – insistia o juiz. –
«Inócuo» é «inofensivo», até nova ordem. Então o advogado desabafou. Também ele
sabia, como toda a gente culta, que «inócuo» era um pobre-diabo de um termo que
não fazia mal a ninguém. Sabia-o, com um saber analítico, desde as aulas de
Latim do seu padre-mestre. Mas não ignorava também que o ódio humano nem sempre
conseguia razões para se justificar. E nesse caso, qualquer palavra, mesmo
inofensiva, era um pendão desfraldado no pau alto do ódio.
Bernardino fora ofendido. Mas podia amanhã querer ofender e as razões serem
curtas para o seu rancor. Uma palavra informe, soprada de todos os furores,
seria então a melhor arma. Despir o mastro da bandeira seria desnudar-se na
dureza bárbara do pau. «Inócuo» era uma maravilha para a última defesa da
racionalidade humana, pelos ocos esconderijos onde podiam ocultar-se todos os
rancores e maldições. «Inócuo» era um benefício social. Não havia que
emendar-se a vida pelo dicionário. Havia que forçar-se o dicionário a meter a
vida na pele.
–
Cultive-se o «inócuo». Salvemo-lo, para nos salvarmos.
Desgraçadamente, porém, os receios do advogado eram vãos.
A vida, de facto, emendara o dicionário. Como bola de neve, «inócuo» rolara do
ódio alto dos homens e longo tempo levaria a derreter ao calor da compreensão e
da justiça. Foi assim que o filho do Gomes, depois de ter encontrado a
correspondência vernácula da injúria do pagnon, tentou reabilitar a
palavra excomungada. Esbaforido, foi com o dicionário aberto no sítio
maldito, da mãe para o pai, do pai para os amigos. Mas ninguém o entendeu. Noque
ou «inócuo» era um anátema verde de pus.
Que importa o que dizem? – clamou
o heroísmo do rapaz. – Podem chamar‑me inoque ou «inócuo», que não
ligo. Agora sei o que quer dizer.
Dias depois, porém, um colega precisou de o insultar,
e arremessou-lhe outra vez com o termo nefando. Toda a gente
conhecia já a opinião do dicionário. Mas o furor era sempre mais forte do que
um simples livro impresso.
Pelo que, nessa noite, o filho do Gomes não dormiu,
preocupado apenas em descobrir uma maneira eficaz de esborrachar o colega, para
ter mais tento na língua.
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Etiquetas: A Palavra Mágica - por Vergílio Ferreira