Os factóides do dia remetem a turba para a resistência simbólica de o poeta Alegre e Mário Soares boicotarem as cerimónias do 25 de Abril através da sua ausência. Faz lembrar as técnicas da resistência passiva de M. Gandhi, na Índia, antes da independência. Aqui, o simbolismo também conta e, por vezes, é eficaz.
Se bem que entenda que desse boicote nada de prático resulte para o país real, mas talvez os dois antigos amigos, depois contendores eleitorais, se voltem a reencontrar na esquina da história, até porque a taxa média de vida em Portugal não aumentou tanto assim, por isso o melhor mesmo é procurar fazer as pazes em vida antes que a vida, ela própria, se encarregue de fazer das suas surpresas.
Com isto explicito que a maior vantagem do boicote de ambos às cerimónias do 25 de Abril de 2012 é, de facto, a feitura das pazes entre Alegre Soares, desavindos desde a penúltima eleição presidencial em que Soares foi eleitoralmente humilhado ante o milhão de votos de M.Alegre. Votos esses que depois se evaporaram, o que prova que em política nada permanece estático, é tudo dinâmico.
Mas o facto essencial no Estado português que temos, é doutra natureza. Tal implica reconhecer que o nosso Estado ainda não é liberal, como o actual poder quer fazer crer, é antes um Estado interventor e prestador de serviços ou fornecedor de produtos, muitos deles de duvidosa qualidade. Mesmo perante as autarquias e outras organizações pública e privadas (ou mistas), o Estado é o último "mercado interno" protegido que o imuniza das regras da competição internacional que ele clama deverem existir para os demais actores sociais. Por essa razão, não nos podemos admirar que, ao longo das décadas, o Estado fosse o pólo de atracção de todas as actividades socioprofissionais e económicas que não encontravam viabilidade fora da sua esfera de protecção, e até o único centro de remunerações e preços garantidos às pessoas e organizações com quem tratava. Pode pagar atrasado, como lamentavelmente faz, mas há sempre a garantia de que paga. O Estado como prestador de serviços, desde a saúde à educação, passando pelo policiamento nas estradas, o Estado determina padrões de qualidade, combinando com as oportunidades de lucro nas suas actividades privadas.
Como fornecedor de produtos, desde a energia às comunicações, o Estado (mesmo não sendo o fornecedor directo) permite e promove que, para financiar investimentos de elevado risco, essas empresas cobrem tarifas excessivas (vide, EDP...), ou, se não fizerem esses adequados investimentos de inovação e manutenção, penalizam a competitividade externa da economia nacional e bloqueiam a penetração de sectores económicos fundamentais. É nesse impasse que caímos: por um lado, o Estado permite o que permite às grandes empresas para fazer inovação e desenvolvimento, mas isso comporta um custo social brutal às populações; por outro lado, o mesmo Estado sabe que se não der essas facilidades às grandes empresas o desenvolvimento, a inovação e a modernidade podem ficar comprometidos.
Neste carrefour de opções de políticas públicas, o Estado português, - e a coberto do discurso racionalizador, e cada vez mais neoliberal, cego e injusto, porque tomando medidas draconianas que não acautelam a coesão nem a equidade sociais, e o resultado é a recessão e o empobrecimento galopante dos portugueses, - é o único que está investido da prerrogativa de identificar, definir e promover o chamado interesse público que, por definição, e aqui reside um mal terrível, só o Estado pode tipificar e concretizar. O que abre caminho às maiores arbitrariedades, como temos testemunhado na história política nacional neste último ano de governação ultra-liberal, com base numa filosofia de contabilidade pura.
Significa isto que quando pretendemos definir o Estado português, nas sua dimensão política (e/ou politológica, se quisermos) o que encontramos é um Estado regulador, mas num sentido perverso, dado que ele impõe padrões comparativos que nivelam por baixo, e não por alto, como seria suposto. Creio, contudo, que se o Estado procede assim não é por maldade pura, mas porque não soube, nestes últimos anos, situação agravada neste último, organizar centros de excelência verdadeiramente competitivos, com base nos quais depois pudesse estabelecer verdadeiros padrões competitivos e em que a sociedade, no seu conjunto, já liberta do Estado interventor, beneficiasse no seu conjunto.
Mas para que tal ocorresse era necessário que o nosso Estado não fosse, como lamentavelmente é, o último "mercado interno" protegido, que se apropria das vantagens, dos recursos, das normas e dos processos de funcionamento para seu benefício exclusivo (como se fosse um verdadeiro monopólio), ainda que racionalize todo o seu discurso em nome da metáfora do interesse público que, hoje, até já passou a penalizar os seus próprios funcionários públicos, não só em remunerações como no esbulho aos subsídios de férias e de natal, como garantia de segurança de que o Estado é, de facto, "esbulhador-mor" institucionalizado, que age em nome dum interesse maior cujos pressupostos se desconhecem e ninguém sabe para que servem.
É, creio, este o Estado a que chegámos, em véspera do 25 de Abril, e logo pela mão dum Estado cujo poder em funções é (des)orientado pelo mais ultraliberal que já ocupou as cadeiras do poder democrático em Portugal desde 1974.
E isto, obviamente, representa um retrocesso não apenas social e económico, mas também civilizacional. Perante o reconhecimento desta desgraça política, a resistência simbólica da "brigada do reumático" às cerimónias do 25 de Abril, em 2012, não passa já duma metáfora sem potencial explicativo.
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