RTP mostra a teia política e económica d'Os Donos de Portugal - Rita Guerra -
O documentário Os Donos de Portugal, que será emitido pela RTP2 esta madrugada, começa com um pedido ao espectador. E com uma inquietação que o atravessa e nos obriga a chegar ao fim. Imagine que um leitor de crónicas de negócios do século XIX regressa a Lisboa e retoma as suas leituras: "Que espanto sentiria ele ao encontrar os mesmos nomes daquelas grandes famílias que povoavam a Baixa e a Lapa? Será que ainda vão lá estar em 2150?"
Ao PÚBLICO, o realizador e dirigente do BE Jorge Costa defende que "é o Estado
que faz a burguesia em Portugal", quer no Estado Novo quer na democracia.
Primeiro, o documentário aponta uma elite económica que se afirma a partir de
"uma relação de grande promiscuidade com o poder do Estado e sempre sob sua
protecção, uma característica que atravessa os vários regimes". Depois, assinala
"como a elite económica se constitui ao longo de um século como uma grande
família". Por último, desmonta uma forma concreta de promiscuidade entre o poder
político e económico, ao expor o "tráfego entre cargos políticos e lugares de
topo nos grandes grupos económicos", sobretudo em ministérios estratégicos:
Economia, Emprego e Obras Públicas.
O filme começa em finais do século
XIX, revela uma burguesia que tem no Estado o seu mercado privilegiado e que
sobrevive de relações estreitas com os universos da política e dos negócios,
numa lógica de permanente favorecimento. Exibe-se o fracasso de uma burguesia
incapaz de modernizar o país, absolutamente centrada no enriquecimento e na
autopromoção social. Uma rede que é abalada com o 25 de Abril, mas que o Estado,
através do processo de privatizações, coloca novamente no centro do poder
económico e financeiro.
"No centro desse centro esteve sempre a família
Mello", que há-de unir-se às famílias Champalimaud e Espírito Santo. A árvore
genealógica da burguesia portuguesa mostra como o casamento é passaporte para
assegurar a continuidade da direcção dos negócios e como o país económico é
refém de "uma grande família", afirmam. Já no Estado Novo, o documentário revela
"uma amizade única" entre Salazar e Ricardo Espírito Santo, que se "reúnem ao
domingo" e se "correspondem regularmente". As famílias Champalimaud e Mello são
à época, por exemplo, protegidas por regras alfandegárias que garantem mercados
exclusivos.
Atravessa toda a película a ideia de que as grandes fortunas
foram construídas sempre de mão dada com o Estado, com recurso a medidas de
protecção concreta ou através de indemnizações ou empréstimos. Fernando Rosas,
historiador e dirigente do BE, defende no decorrer d'Os Donos de Portugal
que "a cultura da burguesia industrial portuguesa é uma cultura de chapéu na mão
em relação ao Estado". Rosas explica ainda que "a elite política do país era
muito pequena", o que fez com que a circulação entre os negócios e a política
fosse mais intensa. "O Estado foi o construtor da burguesia, até que um dia,
como no célebre conto do aprendiz do feiticeiro, o aprendiz tomou conta do
feiticeiro", defende.
Sectores de "acumulação mais rápida" emergem no
século XX a par dos impérios familiares. Américo Amorim, Belmiro de Azevedo e
Jerónimo Martins passam a fazer parte desse núcleo duro, segundo o relato. Mas
também a "elite angolana" é apontada como uma dona de Portugal. Pelo menos da
banca. "Mais de 10% do BPI e do BCP, 25% do BPN" e empresas com Mota-Engil, PT,
Zon, grupo Espírito Santo e Unicer.
Analisados 115 currículos de
governantes do último século, o documentário conclui, com especial relevância
para o PSD, que "entre política e negócios o trânsito é permanente e muito
intenso". E que "esta promiscuidade cria um sistema de enriquecimento rápido e
uma ascensão social vertiginosamente rápida", nas palavras de Jorge Costa.
Duas afirmações no documentário explicam quase tudo. A primeira é que "o
lugar num ministério é hoje trampolim para uma vertiginosa ascensão social
através de remunerações com que muitos quadros partidários nunca sonharam, nem
no partido nem nas suas profissões". E a segunda vai ao âmago da corrupção:
"Quem dirigiu a privatização passa a dirigir o que privatizou, quem adjudicou a
obra pública passa a liderar a construtora escolhida, quem negociou pelo Estado
a parceria público-privada passa a gerir a renda que antes atribuiu ou
vice-versa."
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