A Carta: intentio auctoris, intentio operis ou intentio operis
- Imagine que é o Zaramago, escritor espanhol que faz umas incursões a Portugal para aí receber os direitos de autor e ficar com mais umas massas. Um dia, sem o saber, sem o merecer e para estupefacção de 99% da humanidade, recebe um prémio Nobel e, assim, nobiliza-se aos olhos do mundo.
- Imagine agora que há uma imensão multidão de pessoas que não gosta dele, outros que o detestam e outros ainda que prometeram a Cristo que se o vissem o apedrejariam.
- Depois imagine que a caixa de correio de Zaramago é inundada com cartas indesejáveis. E no meio de tanta confusão, uma se destaca e diz o seguinte:
- Agora faça outro exercício, articulado com aquele, para situar umas declarações do ex-Presidente dos EUA, Ronald Reagan. Que aos microfones de uma conferência de imprensa, disse - mais ou menos o seguinte: "Daqui a poucos minutos darei ordens de bombardear a Rússia".
- Se os textos dizem alguma coisa, aquele texto dizia exactamente que o seu enunciador (R. Reagan), num curto espaço de tempo subsequente àquela conferência, ordenaria que mísseis atómicos fossem disparados contra os territórios da então URSS.
- Depois, pressionado pelos jornalistas, Reagan lá admitiu que estava a brincar: dissera aquela frase mas não tinha pretendido dizer o que ela significava. Tal como na carta de cima, que alguns leitores enviam a Zaramago. Em que um daqueles leitores - que o "adoram" - dizia: se o visse na rua apedrejá-lo-ía. Ora também neste caso - a letra do texto não correspondia à realidade para que a expressão remetia. Mesmo que lhe batesse na cabeça com um pau preto. Ora nem isto nem uma pedrada se fazem... Hoje também já não se matam andorinhas de flober, só para testar a pontaria.
- Desse modo, qualquer destinatário que tivesse acreditado que a intentio auctoris (intenção do autor) coincidisse com a intentio operis - seria enganado.
- Resultado: Reagan foi criticado, não só porque dissera o que não pretendia dizer, pois um Presidente dos EUA não pode dar-se ao luxo de fazer jogos de enunciação (que amadores repetem noutros contextos), mas, sobretudo, porque, como se insinuou, que delineara a possibilidade de enviar os tais mísseis para a ex-URSS. Recordemo-nos que na altura o mundo vivia o clima de Guerra Fria, e isso queria dizer, em boa medida, que era como que tentar apagar fogos com gasolina de avião, com muitas octanas...
- Todos nós, um dia, também já recebemos cartas estúpidas, na letra e no espírito. Estúpidas porque deslocadas, descontextualizadas, desproporcionadas e, não raro, copiadas ou substancialmente trânscritas de uma qualquer revista de cordel, leia-se de coscuvelhice de bairro que fica mal a homens, e intencionalmente adaptada a um outro contexto ou pessoa que não é tida nem achada. Mesmo que de forma estapafúrdia, deslocada, inaplicável. Em que a "bota não bate com a perdigota". Seria como se pedíssemos uns pastelinhos de nata alí em Belém, e o empregado nos trouxesse um cozido à portuguesa com um copo de três. Daí a estupidez de certas cartas, missivas ou outras que tais que, por vezes, certas pessoas enviam a outras. Na esperança - que sejam as tais "outras" (os destinatários) que lhes dêem o devido significado que o emissor, previamente, pretendeu atribuir-lhe, embora sem o confessar ao destinatário.
- Perante estas estultícias manifestações da inteligência mediana, alguém menos "bronco" só poderá fazer uma de duas coisas:
- Nós, aqui, nesta blogaria, optámos pela 2ª via, pois achamos que é a postura mais construtiva, além de nos dar a possibilidade de recordar alguns conhecimentos de semântica, semiologia entre outras ciências ocultas que nos ajudam fácilmente a descodificar as intenções mais recônditas de certos cromos que, por vezes, assaltam a nossa caixa de correio. No fundo, também isto é serviço público. Uma espécie de sessão no divâ do psicanalista, mas em que o paciente se trata e não paga.
- Agora já pouco importa se alguém quer apredrejar Zaramago, criticar Reagan ou chamar transloucado a cada sujeito que, não tendo mais nada que fazer, resolve, para satisfazer a sua ira existencial, enviar cartas estapafúrdias a outras pessoas que, se desarmadas dos segredos críticos da interpretação semântica, da interpretação crítica e da interpretação semiótica, julgariam que certos artistas deste nosso universo - estariam mesmo muito "apanhadinhos das carochas", como diria a minha santa avozinha, que Deus tem. Esta não escrevia cartas. A minha avózinha, quando queria dizer algo a alguém, mormente se o conhecia, procurava falar-lhe, nem que fosse por gestos.
- Mas pior ainda quando se cometer um erro é procurar corrigi-lo com um erro ainda maior. Pensando, assim, que a reaccção do interlocutor/público (vide as declarações de Reagan) - perante aquela opção interpretativa - acalma os espíritos e serena as almas.
- Atentemos, pois, num conjunto de três variáveis que se tem (ou deve) ter em conta quando se escreve uma carta a alguém, por mais estúpida e desadequada que seja. A intenção do autor (intentio auctoris), a intenção da mensagem (intentio operis) e a intenção do leitor (intentio lectoris).
- Quer dizer, assim se consegue identificar duas coisas essenciais:
- Porque pensou que provavelmente eles sê-lo-íam introduzidos pelo destinatário, mas sem que diga ainda se em consequência ou apesar da intentio operis, ou seja, da intenção da mensagem presente no texto/carta.
- Por exemplo, no caso de R. Reagan, que ganhou brutalmente a Guerra Fria e obrigou a ex-URRS a ajoelhar-se perante o mundo. Fazendo-a perder o estatuto de hiper-potência mundial que manteve durante meio século (desde que Stalin se impôs ao mundo, em particular a toda a Europa Central e de Leste). Convém, agora, apresentar as múltiplas possibilidades interpretativas resultante das suas declarações.
- Mas quem fala nas declarações toscas de Reagan - também poderia evocar milhentas outras cartas pessoais que recebemos por via electrónica e não têm "ponta por onde se lhes pegue". Nem a elas, nem aos seus autores, muito provavelmente. Infelizmente é assim. E em muitos casos o "orgulho besta" (como dizem os brasileiros), contribui para estupidificar ainda mais as pessoas, que se julgam normais, de Q.I médio, educadas e mais uns etc., e vai-se a ver passam 2/3 do seu tempo com preocupações de "alta costura" que se podem ler nas revistas de calhandrice do bairro mais perto de si.. Agostinho da Silva, chamava a isto "Alta cultura" - que se confundia com alta costura..
- Infelizmente, quase nos 40 anos - já tenho visto bastante debaixo da terra e do sol, e já sei o mínimo para não me perder nesse jogo interpretativo que aqui expômos, especialmente para também ajudar aqueles que mais precisam de nortear-se pela ciência dos significados que, em absoluto, desconhecem ou revelam estúpida e bacocamente desconhecer. Doutro modo, não teriam feito o que fizeram, um pouco como Reagan no contexto de Guerra Fria. Quer dizer, não se vai à igreja com a pretensão de ensinar a missa ao padre; nem se vai à farmácia ensinar o farmacêutico a ler a receitas prescritas pelas caligrafias obtusas dos médicos que as receitaram; nem se vai à loja d'arte dizer ao pinto como coloca o pincel na prancha e desenha o ovo partido com a gema suspensa, já em flagrante queda; muito menos se procura mostar ao investigador qual é, face a um determinado texto, o seu verdadeiro significado, mesmo que escondendo a letra e/ou ocultando o seu espírito. Tentando, em última análise, fazer dele parvo. Ora parvo é/são os autores desses tipos de textos/cartas/declarações que inundam o nosso tempo.
- Desconhecer estas normas simples, é um pouco como caçar perdizer com fisgas; caçar coelhos com gatos ou ainda espantar gatos com ratos. O exercício não deixa de ser imaginoso e até cómico, mas os resultados são obviamente previsíveis: um fiasco.
No caso de Reagan, ilustra a história de:
- Um homem que brinca quando não devia fazê-lo
- Um homem que brinca mas, de facto, está a veicular uma ameaça
- Agravando uma delicada situação política mundial - que até as brincadeiras poderiam ter conduzido a situações trágicas.
- Eis como se tratou de um enunciado que brincou com a realidade, que pode assumir múltiplos significados, conforme quem os enunciar e a forma como o destinatário o (quiser) entender. Dramatizando ou não a situação.
- Em suma: para cada carta há sempre dois leitores-tipo. O leitor ingénuo e o leitor crítico. Aquele absorve a mensagem sem contestação nem capacidade de reconstrução de sentido; este reinterpreta e (re)situa o texto e aquilo que ele oculta.
- Mesmo que, por vezes, o leitor destinatário de algumas Cartas não consiga ter a habilidade de ler nas entrelinhas. O que não é o caso. Buscamos, aqui, seja no macroscopio seja no culturanalise - um modelo interpretativo para todos os factos que se nos deparam à produção de análise: quer se trate de materiais políticos, sociais, culturais ou de ordem mais psicológica que exige leituras mais individualizantes e, portanto, onde a Política ou a Sociologia não chegam.
- Talvez por isso é que é tão importante aprendermos com as cartas estúpidas ou simplesmente bacôcas e deslocadas que circulam por aí nos circuitos integrados dos PC. E não nos referimos apenas às declarações do ex-Pesidente dos EUA, R. Reagan.
- O que um analista de significados deve procurar sempre é a tal imagem no tapete, esse tal segredo individual ainda desconhecido, certamente à procura de uma leitura semântica mais oculta que desnude uma dada realidade. Que está lá, mas não se vê. Mas o crítico que busca esse código (que outros julgam estar cifrado), provavelmente sabe também definir uma estratégia de interpretação que, por sua vez, produz infinitos significados de captar o verdadeiro sentido e alcance de um texto, mesmo que se trate de um texto atávico, descentrado, inominado e, por isso, um tremendo erro de enunciação. Por vezes, denunciando mesmo uma situação de pré-conflitualidade verbal..
- Conheço alguns "cromos" - quer do espaço blogosférico e até fora dele que o querem integrar (mas não sabem como) - que são uns verdadeiros misreaders, pois usam um texto para nele encontrar algo que está fora do texto, e que é mais real do que ele.
Experimentem, um dia, dizer a uma gibóia esfomeada que páre imediatamente antes de tentar engolir o resto do rabo do rato... Além de não entender a mensagem, ela ainda pode comer quem veiculou a dita