sexta-feira

António Vitorino revelou-se o analista político e o "intérprete do simbólico" mais eficiente do ano de 2009 findo. Once again

O ano de 2009 foi um ano de política intensa e dura, ainda que pouco proveitosa em termos de ganhos líquidos para o povo português. Três actos eleitorais, muita guerrilha política, alguma produção legislativa, muitos vetos presidenciais, pouca e magra economia, muita crise financeira e social. Eis o resultado mitigado de duas crises que se sobrepuseram em Portugal: a crise externa agravou ainda mais as crónicas deficiências estruturais do nosso tecido económico. O resultado traduziu-se em falência de empresas e um desemprego galopante que a débil modernização e reconversão da economia e a atracção de Investimento Directo Externo não conseguiu repor ou compensar.
Daí que o comentário político se traduza num exercício tão interessante quanto crucial para a marcha dos acontecimentos políticos nacionais, porque são eles, em inúmeros casos, que ajudam a detonar os raciocínios, as correlações e a revelar os desafios e as pistas em que Governo e oposição – cada qual à sua maneira e assumindo os seus níveis de responsabilidade – podem encontrar a escapatória possível para a crise.
Quantas vezes os governantes aproveitam ideias lançadas por comentadores no espaço público?!
E neste cenário, mais uma vez, é inevitável comparar a prestação analítica de Marcelo de Sousa, do centro direita, com a prestação de António Vitorino que, diria, é cada vez menos de esquerda e mais da lógica dos factos.
Ou seja, enquanto que Marcelo teatraliza, tem uma agenda política oculta, é comentador que toma parte dos interesses em presença, António Vitorino tem-se revelado um comentador mais isento, mais imparcial, por vezes mesmo crítico ao PS, buscando a autenticidade dos factos e das lógicas políticas que presidem à sua dinâmica na esfera pública.
Ora, o erro do analista, como sabemos, não é igual ao erro duma pessoa comum, de observador ocasional, que tende a deixar vir para primeiro plano as suas emoções e, portanto, os seus interesses particulares – que são mais ou menos organizados. A este propósito é com alguma dificuldade que vejo Marcelo na figura mitigada do analista-candidato à liderança do PSD que, por sua vez, é candidato a PM, logo opositor directo a Sócrates. Neste contexto, a sua análise é, tendencialmente, mais inquinada e/ou parcial do que a análise produzida por António Vitorino, que não é candidato a coisa nenhuma, e quando se colocou a possibilidade de ser PM – pura e simplesmente – virou costas ao poder para assumir a sua vida profissional de advogado.
Fazendo o paralelo, nunca vi António Vitorino neste papel contra a srª Ferreira Leite que, coitada, “não pode com uma gata pelo rabo”, passe a expressão, não tem liderança, não tem projecto, não tem identidade e só comete gralhas políticas e revela uma gritante falta de cultura democrática que faz dela o “bobo da corte” – qual saco de boxe do próprio PSD, apesar das ajudazinhas de Belém querendo fazer dela a locatária do cadeirão de S. Bento, em vão. Frustrando, assim, as ambições de Cavaco presidencializar o regime, teleguiando as funções de PM a partir do Palácio Rosa.
AV, nesta perspectiva, e apesar de não haver neutralidade absoluta, como ensinara Max Weber nos seus trabalhos de sociologia na relação do Político com o Cientista, não distorce os factos, não oculta uma realidade para tirar partido daquilo que ela esconde, não representa nem dramatiza os materiais políticos nacionais.
Além de que o formato do Notas Soltas tem a vantagem de ser mais curto e sucinto, incluir uma rubrica internacional interessante e de não apresentar livros, alguns dos quais além de não terem qualidade são apenas um expediente que Marcelo utiliza para promover autores amigos, coleccionar apoios nas editoras (que não deixam de ser empresas que visam o lucro) e de valorizar a sua biblioteca de Celorico de Basto. Muitos desses livros, diga-se, o apresentador Marcelo também não os leu, podendo simpatizar com a capa, alegrar-se com o índice ou nutrir simpatia pelo autor ou, tão só, apreciar a estética da lombada.
Ou seja, esta comparabilidade, além de feia é necessária, na medida em que serve para separar o útil do acessório, e nesta comparabilidade somos de opinião que o analista e intérprete do simbólico António Vitorino não se ilude, não ilude os espectadores com análises que não correspondem à realidade, não obedece a lobies económicos ou de índole partidária. Tudo boas razões que fazem dele o melhor analista político de 2009.
Sendo aquele que falta menos à verdade, é também aquele que credibiliza mais a análise política vista aqui como uma espécie de deontologia política – visando o respeito integral pela verdade dos factos e pela razão política dos actores e das instituições objecto de análise em Portugal.
Marcelo, ao invés, teatraliza muito, tem muitos “clientes” e “patrocinadores”, é, não raro, parte interessada no comentário que faz porque aspira à liderança do governo ou, mais concretamente, ao lugar de Cavaco em Belém. É, pois, um analista engagé, por vezes até ao pescoço…
A comparabilidade destas duas referências torna-se, portanto, inevitável, até porque não existem muitos analistas com alguma densidade intelectual em Portugal. Mas estas notas servem também para fomentar o aparecimento de um código deontológico do comentário político entre nós, na medida em que o respeito pela verdade dos factos e das análises sérias que sobre eles se pode construir não deixam de ser um eficiente contributo à democracia, à cidadania e à qualidade global das instituições em Portugal.
Cabe aos comentadores mais credenciados na sociedade não incorrer em erros quando avaliam os produtos políticos, e o facto de uma análise ou um comentário ter “patrocinadores” (partidos, empresas, corporações, etc) ou ter “clientes” (autores, editores por ex.,) – significa que aqueles que “pagam” o custo dessas operações mediáticas, podem interferir na liberdade e na responsabilidade dos analistas, que podem sentir-se inclinados a valorizar mais os sinais de continuidade e de expansão do que os sinais de crise e de recessão. É evidente que neste quadro, se os analistas forem pouco sérios, tendem a fazer esses alinhamentos em função das sua matriz político-partidária, amizades políticas e da cosmovisão que têm da vida e do mundo, bem como a interpretação concreta que fazem dos desafios que a sociedade portuguesa enfrenta na conjuntura actual.
Tais análises podem (ou não) valorizar as propostas de solução com vista à sua resolução, seja nas questões mais gerais, seja nas questões mais concretas que envolvem a estruturação de políticas públicas no curto, médio e longo prazos. Porém, tal como os médicos, inflectir a análise para observar essa inclinação e agradar aos tais “patrocinadores e clientes” que “pagam a factura” de alguma análise, equivale a violar a razão de ser da própria análise política convertendo-a em propaganda política com o fito de promoção pessoal, que é o que inúmeras vezes o doutor Marcelo Rebelo de Sousa faz a fim de se posicionar seja para o farol de S. Bento seja para a torre de Belém. António Vitorino já não desenvolve estas derivas, não alimenta estas motivações, logo não tem estas dependências ou limitações à sua liberdade de expressão, fazendo dele, inevitavelmente, um intérprete do simbólico mais credível quando comparado com Marcelo Rebelo de Sousa.
Também não interessa, seguindo o exemplo comparativo dos médicos (que têm uma deontologia rígida a observar), substituir o diagnóstico do tratamento e a cura ao paciente (sociedade portuguesa) pela mera aplicação de um placebo. Talvez o “doente” recupere, mas não será já pela acção do médico; talvez a crise seja invertida e a fase de crescimento e de expansão económica retome a sua linha de continuidade, mas será já sem o recurso ao contributo do analista.
Olhando para um e para outro, registando as respectivas prestações analíticas, não terei dúvidas em afirmar que Marcelo interfere com a liberdade dos actores políticos e a vida das instituições em Portugal, por vezes semeando intriga onde reina a paz e a concórdia; António Vitorino credibiliza e aclara os factos escondidos da agenda-setting nacional; Marcelo inclina os factos que escolhe para deles criar um efeito simbólico-político; António Vitorino, apesar de diplomático, diz o que pensa, nem que isso se traduza na denuncia dos alinhamentos escandalosos que Belém tem feito nas suas ligações à S. Caetano à Lapa – procurando ajudar a senhora que agora Passos Coelho, Marcelo de Sousa e outros terão de fazer para ajudar Ferreira leite a sair com alguma dignidade da direcção do PSD, o que é manifestamente uma tarefa tão difícil quanto complexa e delicada, dado o adiantado índice de sinistralidade política que reina na oposição em Portugal.
Sinistralidade a que o próprio governo também não é alheio.

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