terça-feira

Cavaco-narciso

Quando vimos ontem na tomada de posse "um Cavaco" pedindo um Governo para a legislatura completa, ou seja, 4 anos, e Sócrates advertindo para a responsabilidade da oposição, perguntamo-nos por que razão os dois principais actores do vértice do aparelho de Estado têm de prometer um ao outro aquilo que se torna óbvio aos olhos do eleitorado e do país?! Parece até que ambos pretendem produzir frases e mensagens que configurem um discurso que faça sentido e que perante a ameaça do caos - ambos reclamem estabilidade, exigência, crescimento económico, combate ao desemprego, combate ao endividamento externo, melhoria da qualificação dos portugueses. É tudo isso que interessa ao XVIII Governo constitucional e aos portugueses em geral.
Mas o que foi curioso notar foi a colaboração discursiva de Cavaco por ocasião da tomada de posse do referido Governo:
a ausência de um apoio maioritário no Parlamento não é, por si só, um elemento perturbador de governabilidade. A ausência de maioria não implica o adiamento das medidas que a situação do País reclama", afirmou o Presidente da República, sublinhando que "para qualquer Governo o horizonte temporal de acção deve ser sempre a legislatura".
Cavaco recorreu à sua própria experiência enquanto PM para garantir a Sócrates que terá em Belém não o velho obstáculo das escutas manhosas e dos vetos duvidosos, mas um actor no vértice do Estado que colaborará com S. Bento, talvez até no corte de cabelo, tal deverá ser a cooperação estratégica. De tal modo que além de Silva Pereira, Cavaco deverá fazer um corte de cabelo semelhante, passe a ironia de barbeiro.
Como Cavaco conhece as dificuldades da década de 80 do séc. XX, arroga-se o direito de dissertar sobre as dificuldades do nosso tempo, pena é que não tenha partilhado com o PM ou com os ministros ou secretários de Estado alguns desses conhecimentos - que seriam tão importantes para sair da crise e fazer crescer a economia, potenciar as condições de empregabilidade nacional, melhorar as qualificações nacionais, atrair mais e melhor investimento directo estrangeiro, etc. Cavaco, sabendo-se conhecedor de tais escolhos, nada fez nos últimos anos junto do Governo para ajudar os portugueses a sair da crise. A iniciativa mais estrondosa que se lhe conhece foi um dado imaginário que o ia autodestruindo: as escutas que levou à demissão do seu principal assessor de imagem, Fernando Lima.
Depois Cavaco refere mais um conjunto de "eus":
"Não me movo por cálculos políticos", assegurou o Presidente da República. Que antes tinha deixado uma outra frase que soou ainda a eco da controvérsia em torno do Estatuto dos Açores: "Nunca faltei à palavra dada e aos compromissos que assumi, em público ou em privado" (a acusação que expressou aquando da aprovação daquele diploma).
Cavaco, de facto, mistura os papéis e os tempos em política. Por um lado, ainda não se habituou à ideia de que é PR no séc. XXI e não PM, por outro lado julga que por colocar as situações e os problemas na 1ª pessoa passa a dispôr automáticamente duma varinha mágica para resolver os problemas sociais e económicos nacionais. Tudo isto vindo de Cavaco só pode cheirar a esturro, pois conhecem-se os projectos políticos de Cavaco, também se conhece a sua área política e as suas intenções em fazer um 2º mandato presidencial, por isso é natural que já tenha começado a fazer o TPC-político a fim de seduzir o PS nas próximas eleições presidenciais, em que a novidade, apesar de tudo, foi o milhão de votos de Manuel Alegre contra o próprio Mário Soares, que enfrequeceu a esquerda e dividiu algumas personalidades e interferiu com o próprio sentido da história.
Ou seja, Cavaco desistiu definitivamente da sua pupila Manuela Ferreira leite, desistiu também de alavancar um candidato - tipo Marcelo - à liderança do PSD que depois o encaminhe para a luta por S. Bento contra Sócrates e o PS. Cavaco já pagou essa factura política das escutas demasiado cara: não conseguiu ajudar Ferreira leite a subir a escadaria de S. Bento, descredibilizou o PSD, enterrou-se a si próprio às luz dos portugueses e, hoje, perante tudo isso, promete solidariedade, estabilidade, cooperação junto do Governo.
Por este andar, não seria de estranhar que Cavaco ainda se oferecesse como voluntário do Governo Sócrates para, no Verão, apagar os fogos juntamente com os bombeiros, no Inverno resolver o problema das cheias, sobretudo em Lisboa onde, porventura, António Costa precisará duma ajudinha de Belém para desentopir as sargetas de Sete Rios que entupiram o ano passado, e, vendo bem as coisas, ainda dar uma mãosinha junto da nova ministra Helena André, titular da pasta do Trabalho e da Solidariedade Social - a encontrar soluções alternativas para combater o desemprego em Portugal.
A ser assim o PS ainda apoia Cavaco para mais um mandato em Belém. Veremos se Manuel Alegre, como se espera, começa a fazer "poesia política" que interfira com aquele novelo cínico de Belém.