terça-feira

A oratória de Cavaco Silva: repetições óbvias gastas pelo vento e pela usura do tempo

Cavaco no dia 5 de Outubro disse o que disse. As suas declarações caíram bem à nação, à oposição e até foram bem recebidas pelo Governo - que logo sublinhou a convergência de posições: estamos a passar por tempos difíceis.
Cavaco quer que os políticos falem verdade e não iludam o Zé Povinho que, ao que parece, quando Cavaco esteve uma década em S. Bento vivia menos alienado, pois não havia a globalização predatória nem a desregulação dos mercados, os Fundos Comunitários jorravam a rodos para redes viárias e o FSE serviu para a maior rede de corrupção levada a cabo pela UGT. Já agora, quem sabe do paradeiro de Torres Couto(??), que até quis ser presidente do Benfica!!!
Bom, Cavaco já não é PM, é agora PR - e as suas palavras têm um grande simbolismo já que não lhe cabe governar. Mas em geral as observações que fez, ao elencar os problemas que todos conhecemos, releva duma sistemática repetição resultante da velha distância que vai do anunciado ao realizado. Também era assim ao tempo em que Cavaco ocupava o cadeirão de S. Bento. O que ele hoje diz ao Poder, era o que a oposição de Guterres antes dizia de Cavaco, com a agravante dos tiques de autoritarismo e de raramente ir ao Parlamento prestar contas, coisa que Socas hoje faz regularmente.
Só que hoje as crises são ao mesmo tempo mais intensas e velozes, ganham um efeito mais alargado ameaçando tudo e todos, tornando-se em crises múltiplas e cumulativas (económica, social, fiscal de modelo de desenvolvimento), revelando que entre as previsões e aquilo que se irá realizar há um fosso crescente, o que gera frustração de expectativas nos eleitorados matando os velhos equilíbrios sociais.
Mas isto não revela apenas a deficiência do governo em governar, mas também a actividade da presidência em fiscalizar a acção do governo e, em tempo útil, apontar caminhos alternativos sem que com isso se veja uma ingerência de uma esfera sobre outra esfera de poder, atendendo à separação de poderes existente no constitucionalismo do sistema político português.
No fundo, o que procuro significar é que Cavaco é também co-autor da governação, já que ele apoia, veta, fiscaliza, enfim, executa aquilo que designou de cooperação estratégica com o Governo. Então, se as coisas correrem bem ambos saem beneficiados vendo o seu poder reforçado, se, ao invés, as coisas correm mal - foi porque a crise externa foi mais forte do que a acção do governo e de Belém juntas.
Portanto, aquelas belas palavras de Cavaco a 5 de Outubro, ao mesmo tempo sinalizadoras e moralizadoras - visam orientar e regular a evolução das sociedades. Mas se o sistema político, que é a instância de controlo que determina a trajectória das sociedades desenvolvidas não satisfaz ajustadamente as exigências dessa função, tal significa que a política deixou de conseguir regular os equilíbrios sociais e económicos, regulação essa que não pode ser exercida por nenhuma outra instância, pelo menos em condições de legitimidade que lhe garantam eficácia e continuidade.
Tudo visto e somado: pergunto-me se Cavaco não será capaz de fazer mais do que ler discursos, como quem faz um up-grade das medianas prestações de Américo Tomás no tempo da "outra senhora". Tanto mais que Cavaco tem uma experiência acumulada e contactos de uma década de Executivo que hoje, pelos vistos, apenas servem para ler uns discursos, e não para ajudar a captar Investimento Directo Estrangeiro (IDE).
Qualquer aluno do 1º ano de faculdade conseguia escrever aquelas linhas, creio que a política exige mais dos políticos de topo que temos em Portugal. Se isto é rigoroso, se hoje há uma efectiva falta de direcção política capaz de controlar os fluxos da economia e da finança, então estamos perdidos. E estar perdido significa continuar a ouvir Cavaco lendo discursos que, apesar de bem escritos e bem lidos - todos e cada um de nós - esperavam bem mais dele.
A política é a arte e a técnica do possível. Por isso entendo que haverá mais política para além dos discursos de circunstância de simbolismos conexos...
Como o Natal está à porta - pergunto-me se Cavaco vai pedir a Deus para pintar umas bolinhas amarelas no fundo azul do céu ou se, apenas, se fica por um discurso de apoio à sopa dos pobres articulada com umas tantas palavras de circunstância por parte do cardeal Cerejeira, perdão, do D. José Policarpo...