segunda-feira

Ética e mercado - por Francisco Sarsfield Cabral -

Ética e mercado, in Público Após um período de louca subida das acções, em 1929 a bolsa de Nova York afundou-se. Seguiu-se uma terrível depressão económica, a que só a II Guerra Mundial pôs fim. Parecia iminente o fim do capitalismo liberal, até porque nos anos 30 o comunismo e o nazismo estavam na moda.
Não aconteceu. Muito menos acontecerá com a actual crise financeira. Mas a crise consola muita gente frustrada pelo colapso do comunismo. Multiplicam-se as críticas ao mercado e até já regressaram, actualizadas, as figuras dos vilões gananciosos que se enchem de dinheiro à custa da miséria dos outros – há cem anos era o arrogante banqueiro gordo a fumar charuto, agora é o “yuppie” dos novos produtos financeiros.
Apesar desta chuva de críticas ao mercado, está em queda a maioria dos governos e partidos europeus ditos de esquerda. E, nos Estados Unidos, a surpresa é que Obama não esmague o seu adversário McCain, quando os republicanos têm baixíssimos índices de popularidade. O paradoxo é fácil de explicar: desde a falência do comunismo a esquerda não tem alternativas à economia de mercado. As próprias soluções tradicionais da social-democracia estão desacreditadas.
Claro que os fundamentalistas do mercado passam agora um mau bocado. Eles têm algo em comum com os marxistas: consideram a economia a instância decisiva da realidade. Por isso sacralizam o mercado, em vez de perceberem que não há mercado eficiente sem enquadramento político.
Por causa da crise vai haver mais Estado no mercado. Já está a haver, para evitar o colapso do sistema financeiro. E, depois das medidas de emergência, reversíveis (como nacionalizações de bancos), alguma coisa mudará no funcionamento dos mercados financeiros. Não é de excluir que a correcção das falhas de regulação e supervisão leve a excessos de sinal contrário, travando o progresso económico.
Houve incompetência e negligência dos reguladores e dos legisladores americanos, que deixaram sem vigilância instituições e novos produtos financeiros, sofisticados mas nada transparentes (agora chamados “tóxicos”). Até rebentar a crise, as autoridades pouco se preocuparam com a opacidade resultante da titularização de dívidas, com operações financeiras que ficavam fora dos balanços e com a imprudência na concessão de crédito (a Reserva Federal, com os seus baixos juros, não está isenta de culpas). E porquê só agora limitar práticas especulativas na bolsa, como o já célebre naked short-selling (venda de acções sem as ter na mão, para as comprar horas depois mais baratas)?
Mas não se devem esperar milagres da regulação. A grande maioria das fraudes empresariais conhecidas não foi descoberta pelas autoridades do mercado, mas por denúncias vindas do interior das empresas. E trata-se de crimes, não de meras infracções... Os reguladores não são deuses.
Daí o decisivo papel da ética de quem actua no mercado. Não é um mero voto piedoso ou música celestial. É uma questão de realismo. A natureza humana é atraída pelo lucro fácil e rápido. Aconteceu inúmeras vezes, desde a especulação com o preço das tulipas na Holanda no séc. XVII até à euforia com acções tecnológicas há dez anos.
A melhor prevenção dessas bolhas especulativas e da desgraça que elas trazem está numa ética de negócios com sentido das responsabilidades e que ponha um travão às tentações de absolutizar o lucro. Ora o fim do comunismo e o crescimento dos mercados financeiros abalaram essa ética, criando em muitos gestores a sensação de que poderiam fazer tudo para ganhar dinheiro. Daí escândalos como o da Enron (não foi o único, longe disso) ou as obscenas remunerações de alguns gestores, mesmo quando as suas empresas perdiam valor.
O ensino da ética generalizou-se nas escolas de gestão, começando nas americanas. Mas receio que boa parte desse ensino decorra apenas de considerações de vantagem económica - honesty is the best policy. Ou seja, um mero instrumento de marketing: uma empresa com uma boa imagem ética e vista como socialmente responsável acaba por ter mais lucros.
A ética não é isso, como se vê no excelente livro que João César das Neves acaba de publicar (Introdução à ética empresarial, Ed. Principia). Uma gestão ética pode não maximizar os lucros, mas a sociedade tem muito a ganhar com ela. Se a ética predominasse em certos meios, a presente crise seria bem menos grave.
Francisco Sarsfield Cabral Jornalista
Obs: Encontre-se a ética no mercado e, já agora, nos demais domínios da vida pública e privada.