sexta-feira

Estar Só - por António Vitorino -

O sublinhado é nosso. A foto, sendo nossa, pode integrar graciosamente, os arquivos pobresinhos do dn.
António Vitorino
jurista
A crise no Cáucaso pode ser vista segundo diferentes ângulos, mas uma coisa é certa: as relações entre a União Europeia e a NATO com a Rússia não ficarão iguais ao que eram antes da crise na Ossétia do Sul.
Desde a queda do Muro de Berlim que a retórica das recriminações mútuas não atingia uma vocalidade tão hostil como na semana que passou.
Como disse um comentador político russo: "Bem-vindos ao tempo em que a Rússia vai pagar de volta ao Ocidente." Todos os observadores coincidem que a manifestação de força constitui tanto um "lavar de alma" dos russos pelos reveses sofridos na cena internacional durante os anos 90 como uma "lição" cujos destinatários mais directos são vários países limítrofes, a Ucrânia, a Moldávia e o Azerbaijão em especial.
Mas a "lição" que os russos pretendem sublinhar visa naturalmente as capitais ocidentais, muito especialmente Bruxelas, a sede da NATO e Washington. A questão central que a acção militar russa coloca é a das suas pretensões no seu espaço próximo, outrora integrante da União Soviética e, consequentemente, a dos limites do alargamento da NATO no Cáucaso.
E se a resposta urgente dos europeus e dos americanos se centra sobre o fim das hostilidades e sobre a negociação das garantias da integridade territorial da Geórgia, a prazo é a definição das condições de segurança em toda a Eurásia e o sentido do alargamento da Aliança Atlântica que estarão em cima da mesa. Para que ninguém se distraia sobre o problema central, mesmos próprios russos decidiram congelar a cooperação militar com a NATO, além de vetarem qualquer resolução do Conselho de Segurança que não consagre as vantagens no terreno que decorrem da acção militar. O mesmo é dizer, o domínio de facto da Abcásia e da Ossétia do Sul e a imposição de restrições adicionais à soberania da Geórgia, deixando implícitos os constrangimentos ao trânsito para o Ocidente do petróleo e do gás do Cáspio, claro!
É verdade que foi a Geórgia que deu o pretexto à intervenção russa. A qual, pela forma como decorreu, estaria provavelmente bem preparada, apenas à espera da ocasião propícia. A perda de controlo do Governo de Tbilissi sobre as duas regiões secessionistas vinha-se aprofundando e o recurso a uma acção militar pode explicar-se tanto como um acto de desespero como por um erro de cálculo sobre a dimensão da reacção russa. Seja como for, para a Geórgia o resultado torna tudo mais difícil daqui para a frente, incluindo a perspectiva da sua integração a prazo na NATO.
A intervenção russa foi eficaz no plano militar, mas igualmente muito estudada e até profissional no plano da guerra da informação. Invocando o precedente da intervenção da NATO no Kosovo, em 1999, a liderança política e militar russa parecia ler o guião dos países ocidentais naquela ocasião, limitando-se a substituir no texto a referência ao local das operações.
Com efeito, foi invocada uma limpeza étnica na Ossétia do Sul que teria sido perpetrada pelas forças georgianas, bem como a violação de direitos humanos das suas populações. Logo, a justificação da intervenção russa seria, pois, a defesa das vidas dos cidadãos russos assim ameaçados, tratando-se, por isso, de uma intervenção humanitária e de preservação da paz naquela região.
Independentemente das alegações de um lado e do outro do conflito quanto às causas próximas dos acontecimentos, o que é evidente é que a reacção russa, ao atingir uma multiplicidade de alvos na própria Geórgia, incluindo uma incursão até às portas da capital do país, visa sobretudo uma alteração do regime político na Geórgia.
Só assim a "lição" ficará completa aos olhos do Kremlin!
Provavelmente a perda da Ossétia do Sul e da Abcásia será apenas uma questão de tempo. A visibilidade de tal facto vulnerabilizará ainda mais a liderança georgiana e dará força aos opositores do Presidente e do Governo pró-ocidentais actuais.
Só a pressão e firmeza da comunidade internacional perante a Rússia poderão, nos tempos mais próximos, abrir as portas a uma negociação. Porque a Rússia também sabe ler o facto de nenhum país ter declarado apoiar a sua intervenção na Geórgia, e no mundo interdependente em que vivemos há limites para se estar só!
Obs: Digamos que António Vitorino vai direito ao essencial nesta "crónica do crime político internacional" em que Ocidente e Rússia já há muito se especializaram, reflexo da própria natureza das Relações Internacionais - arena da força, do sangue e, por vezes, da lei.
Por isso, não me surpreende que AV não crucifique a Rússia neste esmagamento militar à Geórgia, pois até teve um magnífico pretexto para o efeito ao invadir os territórios secessionistas da Ossétia do Sul e da Abkásia, curioso é notarmos que, desta vez, a Rússia tenha actuado com uma fundamentação política personalista e ocidentalista - referindo que interveio na Geórgia para livrar aqueles dois territórios pró-russos duma limpeza étnica e da violação dos direitos humanos na área - seguindo o guião humanitário que, não raro, o Ocidente e os EUA em particular - usam e abusam para legitimarem interesses materiais que nada têm a ver com a evocação do fundamento.
É a vida e toca a todos, como diria Guterres que agora tenta - na qualidade de Alto Comissário da ONU - rasgar corredores humanitários para alimentar e prestar cuidados de saúde aos mais de 100 mil refugiados resultantes da ocupação da Geórgia. Nesta intervenção, se bem interpreto aqui a lição de geopolítica que António Vitorino partilha, é que, lá bem no fundo, nós - o Ocidente dito democrático e civilizado - não somos assim tão diferentes da Rússia bárbara que aqui vimos actuar na Geórgia.
Mais um pouco, ainda veríamos Putin aparecer nas declarações à imprensa empunhando a bandeira da AMI e dos Médicos Sem Fronteiras mais uma catrafada de ONGs à ilharga a fazer coro - anunciando ao mundo que a sua intervenção humanitária foi necessária dada a barbárie que a Geórgia queria impôr na Ossétia do Sul e na Abkásia. A história, afinal, nutre-se destas ironias, e a Rússia aprendeu bem a lição e, hoje, como sublinha AV, aplica bem o guião, como um bom aluno do Ocidente - que hoje replica os seus métodos - para vergonha do mundo inteiro.
Um guião que vem alterar o modelo de relacionamento que a Rússia tem com os EUA, UE, ONU, NATO e demais organizações económicas internacionais.
Em rigor, a acção politico-militar da Rússia na Geórgia vem demonstrar seis conclusões. A saber:
1. A Rússia opera em função do realismo político, limitando-se a reconhecer que a realidade é dura e que se deve sempre actuar em função de leis objectivas. Leis essas que emanam da própria natureza humana. Assim acertando os factos com a teoria política que se desenhou para eles.
2. Ou seja, que os homens de Estado apenas têm de actuar em função dessas circunstâncias, i.é, fazendo com que o interesse nacional se defina em termos de Poder. Conferindo à Política uma dimensão autónoma e especial relativamente a todas as outras esferas de intervenção humana.
3. São precisamente esses interesses, materiais ou espirituais - desde que ligados ao prestígio, à glória e ao Poder, que devem preocupar as acções do homem de Estado, e é através dessas preocupações que ele deverá criar imagens e narrativas que lhes dinamizem a acção política futura. Pois são essas teias e redes de conexões que servem, simultaneamente, ora para esmagar militarmente um adversário no sistema internacional, ora para o subjugar psicológicamente - através de meios mais súbtis, civilizados e indolores.
4. O realismo politico da Rússia está, conforme provou o analista, bem sustentado no guião humanitário dando-lhe legitimidade política para a acção sobre a Geórgia - ante a imprudência política e militar da Geórgia sobre as suas duas províncias secessionistas. Será caso para dizer que a Rússia sabe que - There can be no political morality without prudence. E prudência, desta vez, foi aquilo que Geórgia não a teve. Resultado: está a sofrer as consequências de se ter metido com o Urso que patrulha a região, ainda que com o apoio explícito da República Imperial e um G.W. Bush já há anos moribundo e em eleições.
5. Por outro lado, a Rússia, tradicionalmente, sempre se recusou indentificar as suas aspirações morais com a moral universal que pretende governar o mundo, em particular a moral Ocidental - de que o Euromundo, até 1945 sinalizada pela Conferência de Yalta, constituía o marco fundamental em termos de poder. Nesta lógica, a Rússia, como superpotência global que é, mormente agora em que os preços das fontes de energia vitais à sociedade industrial se tornaram mais elevados e a sua necessidade mais premente, não se dispensa de apresentar a sua própria cosmovisão. E é natural que o faça. Por isso, não será novidade para ninguém considerar que a Geórgia integra a sua própria zona de influência do seu quintal, assim como os EUA terão asseguradas as suas regiões-fronteira - transportas as quais se entra num limite de pré-conflito, declarado ou não.
Também aqui, a definição do interesse nacional em termos de poder, como sistematizara o teórico clássico Hans Morgenthau - apenas nos poupa a todos de falsos moralismos e outros subterfúgios na avaliação do sistema internacional.
6. Por último, e seguindo a lição de Hans Morgenthau a pretexto da interessante reflexão geopolítica de António Vitorino, convém referir que não obstante existirem fortes e pesados interesses de ordem económica em jogo, são sempre e sobretudo as altas equações do Poder que ganham consistência e predominância na avaliação dos objectivos estratégicos.
Ou seja, porventura, o esmagamento da Geórgia pela Rússia de Putin sofreria as mesmíssimas consequências militares e de humilhação a que estão sendo sujeitas as suas populações e classe dirigente - através do atraso deliberado e cirúrgico do processo de retirada das forças militares russas da Geórgia, se não houvesse ouro negro e gás no mar Cáspio. Sendo importantes e de grande valia, estes bens económicos acabam por não ser determinantes na avaliação dos grandes objectivos quando se pensa na definição da alta política internacional, sempre pensada em termos de Poder, como ensinara Morgenthau.
No fundo, esta manifestação de força, imposição de poder da Rússia sobre uma sua ex-república do Caúcaso, só vem recordar aquela conversa mantida entre um politico, um advogado, um economista e um moralista. Narrada mais ou menos assim:
O Economista - pergunta como é que determinada política afecta o bem-estar da sociedade(?); o Advogado - pergunta como é que certa política segundo as normas é afectada?; o Moralista - questiona como é que certa política é afectada pelos princípios morais?
Por fim o Político realista responde: como é que certa política afecta o poder da nação?
De certo modo, o político terá que se preocupar com tudo aquilo que preocupa - parcelarmente - as interrogações dos seus colegas.
De certo modo, António Vitorino, filtrado pelas lentes dos seis Príncipios de Realismo Político de Hans Morgenthau aqui aplicados -, já respondeu a esta questão colocada pela hegemonia russa no Cáucaso: hoje é impossível viver só muito tempo.
Já o era ao tempo de Salazar...
PS: Esta breve reflexão é dedicada à memória de Hans Morgenthau por ser um mestre das relações internacionais e ter escrito, de par com Aron, o melhor livro na área, bem como a António Vitorino por, em breves reflexões de jornal, conseguir escrever verdadeiros ensaios de política contemporânea com elevado conteúdo reflexivo.
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