A cheia milenar - por Francisco Sarsfield Cabral -
A cheia milenar, in Público
Não é só a localização da nova ponte sobre o Tejo, em Lisboa, que suscita debate. Há outros casos polémicos, mas pouco conhecidos. É o que acontece com o atravessamento do rio Douro junto ao Pocinho e a novos troços do IP2.
Vale a pena trazer este assunto a público porque não se trata de um mero problema local. Estão em jogo valores – e dinheiro dos contribuintes – de importância nacional.
Primeiro, porque a obra afecta uma parte emblemática da Região Demarcada do Douro, um dos poucos tesouros históricos, culturais e económicos do País. Se no turismo não queremos ficar dependentes apenas do sol e das praias, a região duriense merece todos os cuidados. Em 2002 a UNESCO considerou Património Mundial o Alto Douro Vinhateiro, estabelecendo como zona de protecção a Região Demarcada. Acresce que a desertificação do interior de Portugal prossegue – há, por isso, que aproveitar tudo o que a possa contrariar.
O primeiro-ministro foi lúcido ao apontar, em Agosto de 2006, onde deve assentar o desenvolvimento da Região Demarcada do Douro: no vinho, na paisagem, no turismo e na cultura. Ora alertam-me familiares e amigos para que uma parte do futuro traçado do IP2 porá em causa estes pilares do desenvolvimento duriense.
Claro que boas vias de acesso são essenciais. Mas não pode a construção de estradas levar à prioridade absoluta da “política do betão”, tão criticada pelo PS quando estava na oposição. Há que ponderar outros factores, sobretudo quando se pode fazer praticamente o mesmo em matéria rodoviária gastando e estragando muito menos.
A Estrutura de Missão do Douro (EMD), chefiada pelo antigo secretário de Estado Ricardo Magalhães, deu parecer negativo ao novo traçado do IP2 entre a Ponte do Sabor e o Pocinho. E manifestou dúvidas quanto ao troço que vai atravessar os concelhos da Meda e de Foz Côa (Jornal de Notícias de 30 de Janeiro passado). As Câmaras de Foz Côa e de Torre de Moncorvo estão contra. A Comissão de Desenvolvimento Regional do Norte também. Dezenas de agricultores subscreveram um abaixo-assinado insurgindo-se contra o projectado troço. E o Estudo de Impacte Ambiental sobre um dos projectados troços do IP2 (Pocinho-Longroiva) data de 1994, tendo perdido validade jurídica, além de que muita coisa aconteceu entretanto (plantaram-se mais vinhas na zona em causa, a Região do Douro tornou-se património mundial, etc.).
Porque se insiste, então, numa obra caríssima, que irá desfigurar a paisagem e destruirá algumas das melhores vinhas e dos melhores olivais da região, quando bastaria melhorar o actual traçado da EN 102, em larga medida paralelo a vários troços do IP2 que se pretendem construir? Como diz o parecer da EMD, não se percebe porque não se estudou essa alternativa, que “evitaria o atravessamento do Alto Douro Vinhateiro”.
O argumento invocado como resposta é surpreendente: por causa da “cheia milenar”, isto é, de uma enorme cheia do Douro que poderá acontecer nos próximos mil anos... Daí que o traçado previsto fique acima da cota que tal cheia atingiria, com todas as consequências negativas daí decorrentes: é muito mais caro, porque exige “obras de arte” (incluindo uma ponte) e implica a destruição de vinhas e do ambiente.
De facto, a actual estrada já foi afectada por cheias do rio Douro. Mas isso resultou de erros de construção, que descurou os aterros. Uma vez reconstruídos correctamente os troços em causa, nunca mais as cheias do Douro prejudicaram a estrada, incluindo a grande cheia de 2001.
Ou seja, feitas as obras necessárias na estrada já existente, a “cheia milenar”, a acontecer, não causaria estragos. Como as cheias no Ribatejo não destroem as estradas que ficam temporariamente submersas. Ou será que essas estradas deveriam ser construídas sobre pilares, para nunca ficarem debaixo de água?
Parece que escasseiam o bom senso e o respeito pelo dinheiro dos contribuintes, bem como pelos trunfos que, se forem aproveitados, poderão melhorar a vida dos durienses. Em tempo de contenção da despesa pública e de uma acrescida competição à escala mundial na produção agrícola e no turismo, a invocação da “cheia milenar” para levar por diante esta asneira é ridícula. Se não for travada a tempo, a asneira vai ser paga muito cara pelo país em geral e pelo Alto Douro em particular. A isto chama-se irresponsabilidade.
Francisco Sarsfield Cabral
Jornalista
Sugestão de destaques:
A “política do betão”, tão criticada pelo PS quando na oposição, faz novos estragos.
Uma hipotética “cheia milenar” é invocada como argumento para gastar o nosso dinheiro, destruir vinhas e estragar a paisagem única do Alto Douro. Obs: Envie-se um xerox deste artigo para S. Bento.
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