Rescaldo - por António Vitorino -
Embora ainda não se saiba qual o resultado final para o Senado, as eleições americanas da passada terça-feira já produziram dois efeitos de monta. Por um lado, mesmo que os democratas acabem apenas com a maioria na Câmara dos Representantes, vai caber-lhes uma palavra decisiva no momento em que forem apresentados os cenários alternativos para o futuro do Iraque. Por outro lado, a leitura do voto popular levou à demissão do secretário da Defesa, Rumsfeld, deste modo removendo o principal obstáculo para encontrar um acordo bipartidário, entre republicanos e democratas, para o futuro da política americana em relação ao Iraque.
No primeiro aspecto pode dizer-se que, sendo os republicanos os perdedores das eleições, a relação de forças parlamentar acaba por colocar os democratas na necessidade de se definirem perante as soluções a encontrar para além da mera crítica ou da pura contabilização dos sucessivos insucessos da coligação aliada e do Governo iraquiano por ela sustentado. Ora a campanha eleitoral não permitiu que se clarificasse qual vai ser a linha de fundo do Partido Democrata nesta matéria: se uma estratégia de estabilização negociada, se uma saída precipitada de consequências imprevisíveis, se a divisão do Iraque em zonas de influência.
De todo o modo, uma vez que o próprio Presidente Bush colocou ao povo americano a questão da escolha eleitoral em termos de opção sobre o sentido da luta antiterrorista, o endosso das posições dos democratas põe termo ao grande argumento de pressão da Administração sobre os democratas acusando-os de não serem defensores de uma linha estratégica antiterrorista coerente.
Mas essa pressão só será efectivamente arredada se os democratas lograrem agora definir um perfil político próprio e consequente sobre o sentido dessa mesma luta antiterrorista. Ora, neste particular, a campanha eleitoral também não foi muito elucidativa.
As atenções vão assim virar-se, em primeiro lugar, para os potenciais candidatos presidenciais do Partido Democrata, na medida em que esta eleição marca também o início da contagem decrescente nos dois campos para a escolha dos respectivos representantes nas eleições presidenciais daqui a dois anos. E as questões da segurança e da integridade do território americano, bem como dos instrumentos e objectivos da luta antiterrorista continuarão a estar no centro da preocupação dos eleitores americanos.
No segundo plano, a demissão de Rumsfeld vem simbolicamente atestar o insucesso da estratégia americana no Iraque, além de assinalar a queda do principal rosto político de referência para os denominados neoconservadores. Aliás, curiosamente, cada vez menos comentadores e analistas se reclamam deste rótulo nos Estados Unidos, a ponto de qualquer dia nos podermos interrogar se já só subsistirão neoconservadores... em Portugal!
Rumsfeld ofereceu-se assim como "bode expiatório", antecipando o que decerto rapidamente se tornaria um suplício perante um Congresso que lhe seria profundamente hostil. Sendo um político muito experiente e com uma capacidade de raciocínio muito rápida para um homem daquela idade, sabe bem que havia um limite à sua própria sobrevivência política: o ponto onde a sua permanência colocaria em causa a própria posição do Presidente dos Estados Unidos. Ao sair de cena prestou ainda um último serviço a George W. Bush.
O balanço do seu mandato como secretário da Defesa será feito em primeiro lugar pelo seu próprio sucessor dentro da Administração Bush, na medida em que a escolha feita indicia não apenas a substituição de uma pessoa mas também uma alteração mais profunda dentro do establishment político-militar americano.
Para nós, portugueses, há que sublinhar que Rumsfeld foi instrumental na preservação do peso do Comando NATO sediado em Oeiras, para o que muito contribuiu a especial relação pessoal que mantinha com o então ministro da Defesa Paulo Portas. Mas foi também Rumsfeld que desferiu alguns dos golpes mais fundos na própria Aliança Atlântica a partir da tese de que "a missão faz a coligação", cujas consequências ainda hoje se fazem sentir e ao depreciar a invocação da cláusula de segurança colectiva após o 11 de Setembro de 2001.
Para os americanos, Rumsfeld foi provavelmente o mais poderoso e influente secretário da Defesa desde Robert MacNamara, mas ao mesmo tempo terá sido também o mais contestado não apenas no plano da luta político-partidária mas sobretudo no seio da própria estrutura militar americana.
Dele se poderá dizer que, se provavelmente perfilhava a tese de que "a guerra é um assunto demasiado sério para ser apenas deixada aos generais", a sua acção demonstra que o que é verdadeiramente perigoso é confiar a guerra a um político... que se toma por general!" (in DN)
O que havia a dizer está dito e melhor pensado. Deixamos, contudo, aqui as nossas postinhas de pescada - que é para isso que também alimentamos esta traquitana - cuja vantagem é não pagar despesa de impressão nem de alinhamento tipográfico. Também não faz ruído nem produz cheiros tóxicos, já que se falou alí de p.Portas. Vejamos, pois, algumas notas macroscópicas: não se governa inocentemente. E também não se governa impunenmente. O exercício do poder nunca foi neutro, nem quando foi conduzido por néscios ou por radicais... Sempre deixou marcas, e aquela equiparação ao velhinho Robert McNamara (ao tempo da perigosa doutrina da MAD/Destruição Mútua Assegurada que fez toda a Guerra do Nam - no quadro do arms race da então Guerra Fria) não deixa de ser interessante. Mas o problema é que o sr. Rumsfeld, amigo do Paulinho das feiras - não tem nem a coragem nem a dignidade - logo, também não dispõe do carácter nem sequer da fibra ou estatura intelectual e conceptual (de MacNamara) - para fazer o acto de contrição ou mea culpa que Robert MacNamara teve a ombridade e a lucidez de fazer no contexto de guerra do Nam (mais recentemente). Daí a grande vantagem e o potencial analítico de mais esta reflexão de António Vitorino (AV) sobre a forma como alguns gastam o dinheiro (segundo Talcot Parsons) - acabando ficando sem nenhum; por analogia à forma como certos políticos gastam o seu poder, terminando sem ele. (Robert MacNamara parece dali enviar os pesâmes políticos a Rumsfeld.. 30 anos após a guerra do Nam).
Contudo, a estória pode ter mais apeadeiros neste comboio imparável, e terá certamente - como alí foi enunciado por AV. Lembremo-nos do que a este propósito Joseph Schumpeter dizia acerca dos "falcões de guerra" de que o sr. Rumsfeld foi um dos arautos - e inimigo visceral das "pombas": trata-se dum bando de aves que têm o instinto de autoperpetuação, dado que se imaginava que qualquer interesse de orientação militar/belicista conceberia infindáveis racionalizações para directrizes belicistas, i.é, repetindo automaticamente a aplicação daqueles velhos padrões de comportamentos por eles previamente assimilados (leia-se, complexos industrial-militar + auto-imagem colectiva e individual = espiral da violência).
Como diria - talvez melhor - Hans Morgenthau - em Politics Among Nations - à semelhança das demais políticas, a política internacional é uma luta pelo poder. Quaisquer que sejam os seus objectivos finais, é o poder sempre o objectivo imediato. E antes dele Maquiavel viu o filme todo - através dos tempos. Até porque a natureza humana não mudara, desde então. Ora, o sr. Rumsfeld revelou-se um "político/general" cego e perigoso porque passou a não conviver com a crítica, tudo para ele era fatal como o destino - fazendo até lembrar ex-directores de certos semanários entretanto extintos - depois de ter ajudado a fazer cair o cavaquismo nos idos anos 80/90.
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