quarta-feira

O tempo pretérito (e o futuro) em Política

Do Passado... ou uma carta a LULU
"Era evidentemente mentira tudo aquilo que eu contara na minha carta de amor, ou melhor: era tão verdade que ainda não tinha acontecido."
António Pedro (da Costa), Apenas uma Narrativa,
Editorial Estampa, Lisboa, 1978, 2ª ed. p. 73.
O que é o passado em política senão um olhar diferenciado dos diversos grupos sociais, com as suas leituras diferentes... Os que estão em condições sociais inferiores consideram-se vítimas das relações existentes nas teias do passado e olham para os que estão nos estratos sociais superiores como tendo sido beneficiários da exploração de que foram vítimas; os senhores dos estratos sociais superiores, por seu turno, só existem desde que haja vítimas, estas são a verdadeira razão de ser dos senhores, o que legitima a proposta de destruir os senhores para que não haja vítimas.
Os senhores identificam como objectivo central para a preservação das suas vantagens que a economia cresça e a sociedade se modernize dentro da mesma estrutura de ordem social, lamentando que os que se vêem como vítimas não se mobilizem para esse mesmo objectivo de crescimento e prefiram continuar a rejeitar as condições da modernização ou mesmo a bloquear as oportunidades de crescimento económico. Logo, as vítimas existem por sua escolha voluntária, porque não querem fazer o que seria necessário para deixarem de ser vítimas.
Onde se pretende chegar com estas evidências testemunhadas pela história (???), e nem sequer é preciso ser um marxista básico... Basta ser um weberiano... A existência destas racionalizações sociais divergentes revela que não há compatibilidade entre estes dois modos de gerar a identidade de uma sociedade, alimentando uma dinâmica de conflito irresolúvel, em que a vitória de um desses pólos de racionalização tende a implicar o prejuízo para os outros. Na prática, quem quer que vença, e isto é já tão visível em Portugal, constata que já nada pode fazer para o evitar, e que a sociedade ficou diminuída no seu tecido conjuntivo e no seu potencial em torno destas racionalizações sociais divergentes acerca da identidade da sociedade.
No que respeita ao futuro também os diferentes grupos assumem projecções sociais diferenciadas. De um lado, os que aspiram à modernização e ao crescimento, que também querem preservar as suas posições sociais dominantes, na produção e na combinação racional dos recursos disponíveis na sociedade. São os aristocratas do risco. De outro lado, os que se consideram vítimas desse processo de organização da sociedade, e que, por tal, consideram ser-lhes devida uma justa compensação por essa inferioridade social que lhe foi imposta pela estrutura das relações sociais, daí o ressentimento e rejeição aquilo que são as exigências do crescimento e da modernização.
Resultado: trata-se de dois imaginários distintos, sendo certo que uns, os aristocratas do risco, ficam associados a posições competitivas, e os outros, as vítimas, ficam presas a uma posição de protecção que nem sempre o Estado consegue assegurar. E o mais grave é que esta grelha tanto se pode aplicar ao meio académico, como ao meio político e empresarial. Pode aplicar-se ao conjunto dos operadores sociais sem excepção. Daí, talvez, a utilidade na meditação destas racionalizações que são, cremos, mais do que um mero jogo de espelhos.
De certo modo, elas também ajudam a explicar a razão pela qual certos actores da história recente, sob cujas ordens mataram e mandaram matar na guerra do Ultramar, hoje tentam branquear-se fazendo programas de "história da carochinha" (sem ofensa para esta) paga pelos impostos de todos nós.