Surrealizar a história por recurso à (podre) sociologia da justificação
Aparte ideologias, facciosismos, emoções, razões e outras comoções é sabido que Salazar foi um estadista que moldou os destinos de Portugal e até do séc. XX em toda a Europa, e esta imagem - que agrada a uns e a desagrada a outros - bem poderia hoje colonizar a parede de um qualquer átrio de universidade, igreja ou fundação. Mas não é de toponímias decorativas e outras bricolage dessa natureza que versa este ponto, mas antes sobre a justificação pública que alguns agentes do velho Estado novo (qal face de janus) dão do seu próprio passado tendo em vista reescrever a história e, desse modo, a inscreverem a sua própria imagem na fotografia e no filme dos acontecimentos. A essa técnica de branqueamento retro-histórica, com base na realização da história por medida, poderemos denominar de sociologia da justificação.
É ela que caracteriza boa parte da acção dos indivíduos numa sociedade espectáculo como a nossa. Basta que para o efeito um desses actores metamerfoseados - tenha boas relações com os poderes mediáticos (como consultores da direcção de programas da RTP, por exemplo) e se façam contratar para encenar a história, orientá-la, estimulá-la e dirigi-la para o local do imaginário colectivo que permite ao povo recriar essa nova imagem pretendida, desejada pelo próprio narrador que ora (passa) a contar uma outra história sobre a velha história no espaço público. Assim, matam-se dois coelhos duma só cajadada: os media têm pasto para mais uns programasitos alienantes escolhendo uns portugueses maiores, médios e menores e sacam algum com a Pub. e esmifram a concorrência; os narradores incham de júbilo porque interferem na história passada a partir do presente, alteram os ponteiros das horas e, assim, passam a interferir no tempo histórico reservando para si um papel cimeiro que, na realidade, nunca tiveram.
Nesta reconfecção da história o que terão de fazer os narradores de serviço para se desocultarem dum papel secundário (do passado) e recrudescer num papel maior (no presente)? Terão, em rigor, de fazer sete registos, alinhar sete tipos de justificações para, desse modo, assumirem a grandeza que pretendem reclamar.
A saber:
1. Uma justificação de pobreza - justificada num passado de pobreza, de privações, de analfabetismo mas, ao mesmo tempo, de grande comunhão entre todos: pobres e ricos. Assim, oferece-se uma imagem de solidariedade transclassista, de probrezinho mas de personalidade nobre, técnica indispensável para (re)construir um trajecto, uma personalidade, em suma, converter uma ficção numa aparente realidade, ou seja, fixar uma imagem pública;
2. Uma justificação cívica - justificada pela vontade colectiva e pela bondade individual ligada à polis;
3. Uma justificação de tipo industrial - para se vender a ideia de eficácia, de produtividade, de inovação e de competência;
4. Uma justificação doméstica - fundada no saber-viver do povo, o que se cimenta citando uns ditos populares entre outras conversas com as gentes humildes da aldeia. É daí que também emergem relações de confiança no espaço público que atestam àquela imagem de competência, seriedade, honra e produtividade que religam elos duma cadeia provínciana-urbana entre todos os membros duma colectividade;
5. Uma justificação - fundada na democracia de opinião, i.é, quem tem alguma capacidade expositiva, mesmo que não diga nada de novo, pode fazer o papel de guia de turismo, uma espécie de cicerone de Vila histórica que mostra o Castelo aos turistas de máquina digital ao peito e mochila às costas;
6. Uma justificação negocial - baseada no êxito dos negócios de Estado e, ao mesmo tempo, projectando uma imagem de hábil negociador e de grande reformista e, se possível, amigo dos pobres, dos negros e dos desavalidos da Terra. Sem nunca deixar de citar o Papa (qualquer que ele seja) e reproduzir a sua mímica, mostrando que se leu bem a filsofia de Gabriel Tarde e se põe em prática as suas leis da imitação;
7. Uma justificação religiosa - colhida em Sto Agostinho... Mostrar que se leu os doutores da Igreja é crucial, revela o alinhamento com a igreja, pilar fundamental da sociedade, e também fonte de espiritualidade e de reflexividade útil à gestão dos negócios de Estado.
Estas sete justificações consubstanciam aquilo que aqui designamos por podre sociologia da justificação. Ou seja, expedientes a que certos narradores da nova estória (sem "h") recorrem para se legitimarem e, desse modo, estabelecerem com o imaginário colectivo uma nova de relação de dominação com a memória de todos nós.
Só que nesse rebanho há sempre uns tipos que escapam à hegemonia cultural que lhes pretende ser impingida, e desmontam essas estratégias pessoais em dois tempos e revelam que, afinal, o rei vai nú. Este é um modelo trans-histórico, i.é, tanto serve para tentativas de branqueamento do tipo das memórias de S. Lopes (num livro que o mesmo pretende editar pela ex-deputada comunista.., para contar o quê? desgraças, vergonhas) como também serve para alguns ex-ministros de Salazar se respaldarem numa história que hoje está a levar segmentos, pistons, camisas e cambota novas. Assim não vale...
É comum hoje os dirigentes políticos anunciarem o que não podem realizar, os analistas anteciparem o fracasso e privilegiam nas agendas noticiosas acontecimentos negativos e tendências desfavoráveis de modo a confirmarem as suas previsões. E agora temos uma nova categoria da sociologia da Justificação - também conhecida como - o efeito restolho - que visa neutralizar um passado que não interessa e, ao mesmo tempo, a recriar um imaginário único que viabilize a formulação duma identidade que fixe no altar da sociedade lusa uma imagem de grande consensualização. A teoria económica chama a isto um péssimo negócio para o povo; a moralidade aplaude porque cultiva a hipocrisia; e a teoria polítológica de Carnaxide designa esta sacanice por efeitor restolho que depois a sociologia política ratifica como sociologia da justificação. Sempre soube que o presente e o futuro podem construir-se, agora quando algumas pessoas recriam o passado é porque têm de ajustar contas com a história com o fito de lavarem a alma e de se branquearem perante o tecido conjuntivo da nação. Qualquer dia, com tanta interferência nos ponteiros do relógio do tempo passado, ainda veremos a direcção de "pugramas" da RTPúm convidar Salazar (num role-playing, claro está!!) para que este possa dizer o que pensa de ex-colaboradores. Embora as mentes mais lúcidas pensem que é já isso que está a acontecer... E mais: doravante ficámos todos a saber que há duas espécies de Salazar, o bom e o mau. Este já morreu, o outro ainda passeia a surdez pelos corredores da história..., numa tentativa de a reconstruir (à medida).- Ao nosso amigo JAM que anda entre dois mundos e já não se sente pertença de nenhum deles. Mas entre o "cá" e o "lá" qualquer dia decide-se por lá...
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