quarta-feira

A nova estória: o modelo RTPúm!!! +++ Sociologia da justificação

A RTP anda desencantar a História em busca de grandes portugueses. Salazar, para mal dos nossos pecados, figurará nessa lista. Com muitos prós & contras, naturalmente, com muita emoção, lágrimas e raiva e alguma razão, bem entendido. Percorrer o séc. XX é entrar na intimidade de Salazar, o velho "botas". Mas segundo sei, Salazar não andou pra aí a julgar os seus ministros, nem a conjecturar o que, em seu entender, poderiam ter sido os pensamentos daqueles no wishefull-thinking tenebroso que coloca em revisão a estória de Portugal. Salazar era só sujeito dum tempo e duma representação política que modulou Portugal, com vantagens e desvantagens. Mas agora andam pra aí uns revisionistas do costume que se transformam em investigadores e metamorfoseiam-se simultaneamente em sujeitos e objectos de luxo duma estória sem "h". E não é do teatral historiador José Hermanao Saraiva que falamos, que dizia que Salazar fora um grande democrata.
Alguns, poucos, sabem que a história da humanidade nasceu de múltiplos projectos, mas sem projecto, e a história de Portugal também nasceu de múltiplas finalidades, mas sem finalidade. Hoje ao "ouver" parte do programa monologado pelo sr. doutor A. Moreira fiquei com a sensação de que estava alí, na realidade, o Presidente do Conselho falando dos seus ministros, e não um seu ex-ministro debitando caractéres sobre o ditador. Há qualquer coisa de estranho que ficou recalcado nesses homens que tiveram algumas responsabilidades, mas a dada altura queriam, desejavam, ambicionavam ter (tido) a máxima responsabilidade e a máxima potência e, por não a terem tido, perfilam-se hoje na história para nos doutrinar o que ela seria se Salazar não tivesse existido. Um raciocínio ardiloso, portanto.
Onde quero chegar? Confesso que me preocupa ver alguns agentes do Estado Novo que fizeram a transição para a democracia, fingir que nunca tiveram um passado, dando a ideia que já nasceram democratas e pluralistas. E porque razão isto sucede? Além da ambição recalcada de não terem sido o que desejaram ser (ou seja, sucedâneos do velho "Botas" - talvez já sem atacadores) o que os novos-velhos historiadores andam pra aí a fazer mais não é do que exteriorizar a sua própria interioridade, i.é., não olhando para a substância da história, mas vendo nela um campo relacional, povoada de configurações de relações entre actores individuais e colectivos, os de primeiro e segundo grau, os filhos e os enteados, os que beijavam a mão da Maria (a governanta) e os que não passavam do portão, os que viam Salazar ajoelhado na missa e os que só o viam de longe a acenar com o chapéu.
Esta história relacional, que sobrevive só na medida em que há poucos sobreviventes dessa velhíssima geração para (re)contar essa estória - é uma estória que não interesse nem ao "menino jesus", porque ela é profundamente auto-justificativa, e incorre naquele erro da exteriorização da interioridade, i.é, do branqueamento dos desejos que não chegaram a realizar-se e agora são vertidos em factos mais ou menos estabilizados. Ora, não são.
Essa estória, apesar de bem contada, com floreados de carochina para adolescentes e muito esfregar de mãos, com inúmeros tiques papais que escondem, na realidade, sinais ditatoriais econdutas vingativas, é uma estória de superfície, espumosa feita por agentes que nunca agiram livremente e sempre estiveram comprometidos dos dois tempos, com os dois senhores, cosm os dois quadros de mentalidades: o antes e o depois. E é óbvio que esta dualidade só pode conduzir a uma esquizofrenia analítica, semântica, conceptual que distorce inevitavelmente os fluxos da própria história cujo diagnóstico só se revela correcto no campo das relações internacionais, mas errado e autojustificador no quadro das relações domésticas e no campo de forças que aí se inscreviam, especialmente após a queda da cadeira por Salazar.
É aqui os narradores de serviço da nova-velha estória espelham as consequências não intencionais da sua acção, denunciando como o seu inconsciente funcionou (e funciona), e se hoje história fazem (com "h") é a da sua própria intimidade, fornecendo quadros e sintomas daquilo que sempre ocultaram. Ontem quando via a new version de Hermano Saraiva on tv by the river reformatando a história à medida, tipo alfaite do Conde Barão, e com muita pobreza à mistura (só faltou falar das sopas de cavalo cansado e da sopa dos pobres aos Anjos...), lembrei-me de um outro perigo ao colocarmos os "enteados" dos juízes a julgarem o majistrado-mor da aldeia. E do que me ficou foi uma des-naturalização da história como novo método (ensaiado) para apreender o velho processo socio-histórico da sua naturalização.
Por fim, subsiste ainda um outro perigo nestas abordagens pseudo-históricas que consiste no seguinte: quando se pretende reescrever a história, ainda que de modo suave, incorre-se no risco de o caso particular contagiar o interesse geral, o singular abranger o colectivo, e é esta dinâmica personalista, por vezes egocêntrica (embora ocultada, dissimulada) que conduziu no passado à fragmentação de grupos. Franco Nogueira sofreu essa erosão, após ter beneficiado da protecção do "Botas", until certain extent...
E qual o objectivo destas jogadas intelectuais de des-singularização da história de molde a que os narradores de serviço (conhecidos em Benfica e em Carnaxide como os "restolhos") voltem a recontá-la já reconstruída a seu belo modo? A resposta parece-me óbvia e cristalina: tal decorre porque certas pessoas, por disporem de alguns recursos narrativos e expositos, além de bons contactos com a rede de informação do serviço dito público da rtpúm, pretendem ser objectivadas pela história duma certa maneira, de forma a religar certas personalidades às grandes dinâmicas colectivas da história política contemporânea.
De tudo decorre uma coisinha: não desgosto de ver esses programas encenados e coreografados junto ao rio Tejo donde partiram as Caravelas que fizeram os Descobrimentos e as globalizações, até me divertem (pelas sms que envio a alguns amigos antevendo logo as suas reacções...), mas coloco sérias reservas a essas leituras nitidamente autojustificativas que visam, tão somente, accionar mecanismos (mentais) visando religar certas pessoas aos grandes feitos da história. Formando-se assim como equivalências funcionais para harmonizar aquilo que uma personalidade pensou, disse ou fez com o interesse comum que acabou por se realizar no seio da nação.
É lamentável que em Portugal algumas personalidades pretendam reescrever a história como quem muda de camisa ou de universidade, ou de patrão, engendrando toda uma sociologia da justificação - meio cínica, meio canalha e oportunista que visa servir ao zé povinho alienado um novo prato de lentilhas confeccionado com umas alfaces ferrugentas e esburacadas, com grilo e bicho da seda à mistura e tudo...
É essa sociologia da justificação que visa nuns casos branquear erros macacos, noutros empolar ou transmutar factos e comportamentos já estabilizados e que agora sofrem de novos inputs no espaço público. Isto porque há pra aí uns "restolhos" que não se resignam a passear a surdez pelos corredores das universidades que ajudaram a destruir, antes querem ser, a todo o custo, indivíduos plurais. Mas confesso que para este peditório o Macroscópio nem um cêntimo dará, aliás, esta reflexão é uma desmontagem transparente desses intuitos, e de indivíduos plurais a mim basta-me a assembleia de heterónimos do genial Fernando Pessoa.
Deste, Salazar até queria confiscar a inteligência criativa acompanhada da respectiva genialidade. Estou convencido que se Salazar cá regressasse os nogueiras, os veigas, os adrinos, os cunhas e conexos eram relegados para quarto plano comparativamente a Fernando Pessoa, apesar do Salazar ter uma biblioteca modesta, quiça do tamanho da de Cavaco Silva.