sábado

A fuga de Natasha: rocha Tarpéia

A história desta menina, Natascha Kampusch, de 18 anos, que havia sido sequestrada no caminho da escola e passou oito anos em cativeiro numa pequena cidade próxima a Viena, é tão fascinante quanto arrepiante. Poucas pessoas, a avaliar pela lucidez e resistência mental e física que demonstrou na entrevista, conseguiriam resistir daquela forma. Confesso que, under the circunstances, fiquei surpreendentemente agradado com a sua performance de normalidade. Julgo que num caso daquelas, pelo tempo longo e pelo modo como foi mantida, qualquer pessoa ficaria com desordens, ou seja, perturbações, transtornos e múltiplos distúrbios. Já para não falar nos comportamentos fóbicos e paranóides - que se espraiam nas reacções, nas vivências ameaçadoras que irá, certamente, ter de enfrentar pela vida fora.
  • Contudo, ficou pouco claro para mim um aspecto que, a partir de certa altura me baralhou naquela entrevista. Deve ter sido quando fui ao WC. Fiquei com a sensação de que o raptor não era (físicamente) violento e não lhe impunha elevados padrões de segurança. Se (repito se) assim fôr custa-me a perceber porque razão Natascha não se escapuliu antes?! Isto leva-me a uma sub-questão: teria ela, a partir de certa altura, começado a desenvolver a doença conhecida como síndrome de Estocolmo - e sentir uma compaixão pelo raptor - a ponto de se tornar sua cúmplice?
  • Eis a hipótese que já foi aventada, mas que não deixa de fazer algum sentido, até pela ausência de raiva, ódio ou outro sentimento ou pulsão mais forte que Natascha poderia ter deixado perpassar naquela entrevista e, de facto, não vi. Pareceu antes que ela desenvolveu com o raptor um certo regime cooperativo, até por uma questão da sua própria sobrevivência, além da identificação com o raptor. Esta hipótese afigura-se de tal modo verosímil que Natascha acabou por manifestar um sentimento muito apurado de peso de consciência ou remorso por, através da sua fuga, ter impelido o seu rapto ao suicídio. Foi aqui que tive muita pena que ela não se tivesse pirado antes, assim o trouxa ter-se-ia "tratado" mais cedo.
  • Confesso que esta hiper-normalidade me assusta, dadas as circunstâncias. A questão que aqui coloco aos psicólogos e demais operadores do sector é saber como é possível um ser humano, naquela idade, conseguir manter um padrão de normalidade tão linear? Não perder o contacto com a realidade... Não ficar esquizóide. Parece até que daquela estranha relação de cativeiro havia nascido um apego, um afecto, uma relação - ainda que ditada unilateralmente pelas circunstâncias do raptor. Em suma: Natascha revelou naquela entrevista várias coisas que sistematizarei:
  • 1. Uma forte personalidade doseada por uma endurance psicológica excepcional capaz de fazer inveja aos resistentes dos vietcongs
  • 2. Uma lucidez e uma normalidade brutais, não revelando problemas de memória nem da organização do pensamento ou de desconexão das ideias
  • 3. Um domínio da língua, do vocabulário capaz de articular fácilmente os factos/datas/circunstâncias - o que também não é normal, porque se tratou duma criança que foi abruptamente (isto aqui não é nenhuma indirecta para o pacheco pereira) afastada do seu processo escolar e de socialização
  • 4. Um apurado sentido do dever - denotando ter uma consciência kantiana que muitos dos nossos políticos desconhecem - já que depois de prejudicarem o povo sentem-se alegres e felizes
  • 5. Natascha Kampush - já que deseja ser actirz - deveria vir viver para Portugal porque o Manoel de Oliveira teria o maior gosto em atribuir-lhe um papel de protagonista no seu próximo filme, por ocasião da celebração dos seus 122 anos... Que exagero!!!
  • Esta menina, feita mulher em cativeiro, conseguiu empurrar um transloucado para a morte com uma fuga. Hoje parece estar bem. E se assim é e pelo que vi hoje pela sua entrevista na tv, podemos concluir que esta mulher está votada ao sucesso. Creio firmemente que poderá ser uma grande actriz, ou escritora (aqui terá de pedir conselho a todos menos a zaramago que ainda não aprendeu a escrever apesar de já se ter nobilizado..) espero que o realizador não lhe dê um papel que implique alguma violência física e/ou psicológica, de tudo resultando que Nastascha vê-se agora no papel daqueles traidores da Roma antiga - a Rocha Tarpéia - (o obelisco donde eram precipitados os traidores). Embora neste caso isso não se lhe aplique. Aplica só a lição que a Rocha Tarpéia encerra: é que entre o momento da queda e o momento da ascenção fulgurante medeia um lapso. E é nesse instante que ela agora terá de pensar. Um instante que será a sua eternidade votada ao sucesso e reconhecimento planetário depois de ter passado o que passou em cativeiro.
  • Esperemos agora que a moda não pegue em Portugal, é que já cá temos tantas vedetas armadas em escritoras que nunca foram raptadas...
  • É por estas e por outras que às vezes penso que Deus passa muito tempo a dormir... E às vezes quando acorda do seu sono profundo já vai atrasado para a próxima cena. Até já Lhe pensei em comprar um relógio, um despertador, um telemóvel, uma cafeteira de água a ferver, sei lá (lá está!!!)... Mas coloca-se sempre o mesmo problema logístico: como Lhe entregar tais utilidades?!
  • E o mais grave, e agora é uma boca foleira de quase psicólogo, é que a maior parte desses energúmenos que sequestram crianças - mas que depois mantéem com elas relações amorosas/sexuais - mais ou menos consentidas (neste caso não sabemos se existiram ou não, mas não nos é difícil imaginar que em 8 anos anos de cativeiro dentro daqueles 12m...), e numa fase em que Natascha vivenciou o seu ciclo menstrual e viu - bem ou mal - desenvolver-se alí toda a sua puberdade/sexualidade) - são sexualmente impotentes.
  • Será caso para se dizer, e a confirmar-se a existência do síndrome de Estocolmo - que uma desgraça nunca vem só. Afinal, quantos fantasmas Natascha terá de matar?
  • Dedicamos este post à Natascha Kampush por ser uma heroína e ter conseguido derrotar um monstro sem ter de lutar com ele.