sábado

De volta à realidade - por Constança Cunha e Sá

Três boas razões para ler este artigo:
1. Futebóis
2. Extinção do PS por Sócrates
3. Participação de Portugal no Líbano
  • De volta à realidade (in Público) Constança Cunha e Sá
  • Ao contrário do que se costuma dizer, o mundo do futebol não é um mundo à parte: é um mundo que revela, como nenhum outro, a aflitiva indigência em que caiu Portugal. Para variar, o deprimente confronto com a realidade, que se segue naturalmente ao calor das férias e ao deserto noticioso de Agosto, deu-se através do futebol e do famigerado caso Mateus. Confesso que "o interesse público" do imbróglio me escapa. Mas, como a maioria dos portugueses que lêem jornais ou vêm televisão, não consigo escapar ao permanente espectáculo oferecido pelo inacreditável major Valentim Loureiro e por essa ruína histórica que dá pelo nome de Madaíl. Pelo meio, como é óbvio, travei conhecimento com o sr. Fiúza, um ilustre desconhecido que, de repente, se transformou na principal figura da actualidade nacional. Há duas semanas, que o país gira à volta das inanidades proferidas pelos representantes máximos do seu futebol, com o presidente de um obscuro Gil Vicente no centro deste glorioso folhetim e sob o olhar severo dos dirigentes da FIFA, que, em nome de uma "justiça desportiva" de carácter universal, ameaçam suspender a participação dos clubes portugueses e da selecção nacional de todas as competições internacionais. Sem querer entrar em detalhes, que sobressaem apenas pela sua absurda singularidade, é impossível não referir a esplendorosa miséria que se reflecte nos inúmeros episódios que recheiam o caso. Ao contrário do que se costuma dizer, o mundo do futebol não é um mundo à parte: é um mundo que revela, como nenhum outro, a aflitiva indigência que reina em Portugal. O major Valentim Loureiro, presidente da Liga, implicado no processo Apito Dourado e um dos grandes vencedores das últimas autárquicas é um produto típico do sistema que mostra, antes de mais, o país em que vivemos: um país, onde floresce a impunidade e a justiça se transformou numa farsa que se caracteriza pela ineficácia e pela prescrição dos grandes processos. Não, o futebol não é um mundo à parte. Pelo contrário, é o espelho que melhor reflecte a nossa mediocridade.
  • À margem das emoções deste caso, o eng. Sócrates comunicou ao PS, através de um jornal, que tenciona formalizar a inexistência do partido, extinguindo a sua comissão permanente e acumulando a sua liderança com as funções de primeiro-ministro. O PS, como já era de esperar, leu, ouviu e calou. Manuel Alegre fez saber que iria ao congresso, com o seu inofensivo milhão de votos - o que não deixou de surpreender alguns espíritos mais atentos a este tipo de "novidades". E a antiga "ala esquerda"do partido, que tanto barafustou com o eng. Guterres, desapareceu, sem deixar rastro, depois de se ter rendido incondicionalmente à autoridade do chefe. A "pluralidade interna", esse duvidoso trunfo do passado, evaporou-se perante os benefícios da maioria absoluta e o "novo estilo" do eng. Sócrates, que rompeu, abruptamente, com o famoso diálogo socialista. Em vez do diálogo, o eng. Sócrates privilegiou o conflito com os interesses dos "privilegiados" e os "benefícios" de que gozavam as "corporações". Professores, funcionários públicos, magistrados e outros grupos afins transformaram-se, de acordo com o discurso oficial, no bode expiatório de uma crise para a qual os governos do PS, nomeadamente aqueles de que o eng. Sócrates fez parte, tinham generosamente contribuído. Paralelamente, os portugueses são confrontados, todos os dias, com anúncios gloriosos que não só tardam em concretizar-se como acabam, muitas vezes, por ser negados pela própria realidade. A verdade é que, apesar de todos os "planos" apresentados, o desemprego mantém-se, a despesa do Estado cresceu, o investimento caiu, o número de funcionários públicos aumentou e o país mantém-se, firme e empobrecido, na cauda da Europa, desmentindo taxativamente os grandes desígnios da propaganda. Subsiste o "novo estilo" do primeiro-ministro, uma espécie de cavaquismo reciclado, que se caracteriza pelo mito da autoridade, a imagem de determinação, a coragem das medidas "impopulares" e o velho e apreciado desprezo pela ideologia e pelos "jogos" partidários que pontificam na oposição. Com a bênção do prof. Cavaco Silva, em Belém, o eng. Sócrates criou um deserto à sua volta, sem que nada, no seu Governo, garanta que vai "modernizar" Portugal, como afirma a moção de estratégia que vai levar ao próximo congresso do PS - um evento que, como já se percebeu, servirá apenas para amplificar a imagem do primeiro-ministro e o sonho de um "novo estilo" que infelizmente não tem nada de muito novo.

  • O ministro da Defesa foi, esta semana, à Assembleia da República explicar as razões que levaram o Governo a disponibilizar uma "companhia de engenheiros" para integrar a força de "interposição" que se irá instalar no Líbano, sob a bênção das Nações Unidas. Com excepção dos eleitos do costume, os deputados, do CDS-PP ao PS, passando pelo PSD, acolheram com particular simpatia as explicações dadas pelo ministro. As "obrigações internacionais" do país e o discurso de Estado que estas invariavelmente proporcionam justificam, em parte, o clima de amena concórdia que se gerou à volta do envio de tropas portuguesas para o Médio Oriente. E, no entanto, não é fácil compreender as razões de Estado invocadas pelo dr. Severiano Teixeira, para não falar das circunstâncias em que o país vai participar nessa misteriosa força de "interposição". É evidente que ninguém estava à espera que Portugal fosse para o Líbano pronto a colaborar no desarmamento do Hezbollah - que infelizmente teima em não se deixar desarmar - numa guerra desigual para a qual as nossas tropas não estão preparadas. Mas daí a enviarmos uma companhia de engenheiros que irá ajudar à reconstrução do território, num "contexto humanitário", como garantiu solenemente o ministro, vai um passo difícil de aceitar. A resolução das Nações Unidas, cujos contornos as mesmas Nações Unidas evitam cuidadosamente definir, não aponta para qualquer missão humanitária, onde encaixem os nossos planos de construção civil, mas sim para uma missão militar cujos objectivos passam pelo "desarmamento de todos os grupos armados no Líbano" de forma a permitir que o Governo desse país controle efectivamente todo o seu território. Como é que isso vai ser feito, com um governo que não é mais do que uma ficção e sem impedir o fornecimento de armas ao Hezbollah através da fronteira com a Síria, é um enigma que ainda está por decifrar. Mas seja qual for o destino dessa força internacional, não se consegue perceber que papel está reservado a uma companhia de engenheiros, empenhada na reconstrução do Sul do Líbano e integrada num "contexto humanitário" que, pura e simplesmente, não existe. Convinha que o Governo e a oposição "responsável" explicassem melhor ao país a posição que tão unanimemente defendem.
  • Jornalista