quarta-feira

Ponto de luz - por Viriato Soromenho Marques

Ética

Há vidas que são o lugar de onde brotam obras que lhes sobrevivem. Na arte, no conhecimento, na política. Outras vidas vão mais longe. São elas próprias uma obra. Uma construção que faz do tempo o seu elemento plástico, e são por si uma aventura do conhecimento contra o triunfo, permanentemente reclamado, da indigência e do vazio. A filósofa Cristina Beckert (1956-2014), professora da Universidade de Lisboa, ofereceu-nos uma existência deste segundo grau. A sua produção como investigadora e ensaísta é generosa, profunda e inovadora. Deixa uma marca própria, que prosseguirá nos trabalhos que estimulou e inspirou nos domínios da ética, em particular o campo cheio de desafios e promessas da ética ambiental, em que deixou a reflexão mais sólida e consistente escrita em língua portuguesa. Mas a conquista maior de Cristina Beckert foi o exemplo de uma vida em íntima sintonia com a sua exigência crítica e meditativa. Num tempo em que a eficiência, mesmo a que apenas produz entropia e sofrimento, aparece como mais importante do que o sentido do que se faz, a filósofa nunca desistiu de dar um testemunho pessoal sobre as questões essenciais que conferem dignidade à vida humana: a justiça; o cuidado com o Outro (sobretudo com os que não têm voz, como os mais pobres dos humanos, e todos os animais); a nossa responsabilidade, própria e intransmissível, no desenlace sobre o grande combate entre harmonia e caos, que decidirá se humanidade e futuro são conceitos compatíveis. Perseguida desde muito jovem por uma doença debilitante, Cristina Beckert nunca alimentou revolta ou ressentimento. Foi, como sabiamente escreveu um aluno, "um ponto de luz que passou pela Terra para nos iluminar".

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Obs: A intensa mediatização da vida privada e pública converteu-se numa espécie de vitrine global onde todos demonstram os seus afectos e sentimentos pelos que mais gostam, ou pensam que deviam gostar por um qualquer efeito de colagem ou mesmo de auto-promoção social. Qual mania de apreciar os mediáticos ou aqueles que são considerados influentes - pelos pobres de espírito que, à hora da despedida, até citam os clássicos à la minuta para fazer elogios fúnebres. 

Nos últimos dias, a sociedade portuguesa registou os efeitos dessa manifestação pública e privada cuja ampliação foi promovida pelas redes sociais, mormente pelo Fb - onde os testemunhos roçaram a mais pura esquizofrenia e, em certos casos, o habitual egocentrismo de algumas dessas vedetas enciclopédicas que, por se terem mediatizado na arte da banalidade, julgam ser detentores de algum conhecimento ou, no limite, sagesse. Num caso, porque se tratava de um filho duma jornalista conhecida, e que mereceu um tratamento de antena verdadeiramente desproporcional; no outro, porque se relacionava com um membro do PSD, maçon e académico. 

Todos, certamente, muito importantes, até porque o valor da vida, democraticamente, deveria valer o mesmo em qualquer ponto do globo, mas não vale. E alguns desses ridículos testemunhos só contribuíram para uma coisa: agravar ainda mais a desigualdade de tratamento entre as pessoas, na vida e também na morte.

Mas o que importa sinalizar nestas pequenas desgraças que tolhem a vida colectiva, feita com os "pequenos nadas" que tecem a vida de cada um de nós, é a injustiça decorrente do tratamento desigual que as pessoas se atribuem na vida e na morte, e os elogios fúnebres de alguns desses "patetas alegres", uns académicos, outros pseudo-académicos que escolheram essa vida por raiva ou último recurso sem terem a mínima vocação para o ensino, não exprime senão a necessidade de auto-promoção social que, por efeito de colagem e de contágio, acaba por fazer dos seus elogios fúnebres pequenas óperas bufas.

Não é, seguramente, o caso relatado no artigo acima referido, em que se compreende que o testemunho do articulista, VSM, é circunstanciado e autêntico e assente num verdadeiro conhecimento pessoal em relação à filósofa desaparecida. 

Isto faz toda a diferença relativamente às "macacadas" escritas nas redes sociais nos últimos dias, quer por gente comum, quer por gente "mais académica" e que, por essa razão, deveria ser um pouco mais comedido na arte do elogio fúnebre fácil. Alguns, até citaram clássicos à pressão, desconhecendo-se se a citação visava enriquecer o perfil do defunto ou revelar mais 1gr de conhecimento "encicplêidico" por parte do testemunho. Pobres de espírito...

Infelizmente, as universidades estão repletas de tralha. E alguns elogios fúnebres denotam isso mesmo. 

Coitado de quem morre, e alguns morrem duas vezes por sofrerem estes elogios fúnebres...

Daí concluir-se que é hoje impossível morrer em paz em Portugal. 

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