quarta-feira

“Uma criança que nasça hoje não vai saber o que é privacidade”, diz Snowden


“Uma criança que nasça hoje não vai saber o que é privacidade”, diz Snowden

Snowden fala aos britanicos no Natal sobre privacidade CHANNEL 4/AFP

A mensagem tem os habituais desejos de boas festas mas logo passa para uma referência a George Orwell. Edward Snowden, o antigo analista da norte-americana NSA (Agência de Segurança Nacional) que revelou um programa de vigilância em larga escala desta agência, foi o escolhido para a “mensagem de Natal alternativa” que todos os anos o britânico Channel 4 emite, em alternativa à mensagem tradicional da Rainha.
A privacidade é o tema principal da mensagem: “uma criança nascida hoje vai crescer sem qualquer conceito de privacidade”, diz Snowden no vídeo já a circular no YouTube (irá para o ar na TV às 16h15). “Nunca saberá o que quer dizer ter um momento privado para si própria, um pensamento não gravado, não analisado.”
Snowden explica depois porque é que isso é um problema. “Porque a privacidade é importante. A privacidade é o que nos permite definir quem somos e quem queremos ser.”
Os meios de vigilância de hoje não têm nada a ver com os do livro de Orwell. “Temos sensores nos nossos bolsos que nos acompanham por todo o lado onde vamos. Pensem no que isso quer dizer para a privacidade da pessoa comum.”  
Por isso, “a discussão que há hoje irá determinar a confiança que podemos ter na tecnologia à nossa volta e no Governo que a regula”, diz o antigo analista, agora a viver num local secreto em Moscovo. “Juntos, podemos encontrar um equilíbrio melhor, acabar com a vigilância em massa, e lembrar ao Governo que se quer saber como nos sentimos, perguntar é sempre melhor do que espiar”, conclui Snowden.
A mensagem alternativa de Natal do Channel 4 é feita desde 1993, e já contou com nomes como Jesse Jackson, Brigitte Bardot, personagens de Sasha Baron Cohen como Ali G a Marge Simpson, e políticos como então Presidente iraniano Mahmoud Ahamadinejad.
Snowden faz a sua mensagem de Natal um dia depois de uma entrevista ao Washington Post, a primeira que dá desde que em Junho tinha falado com o Guardian em Hong Kong logo após a sua saída dos EUA com um manancial de documentos sobre a vigilância norte-americana. Ao Washington Post, Snowden disse que considera que a sua missão foi cumprida já que conseguiu um debate público em torno dos limites dos programas de espionagem em larga escala.
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Obs: Se inicialmente não se conseguia determinar os contornos dos comportamentos de E. Snowden nem as suas verdadeiras motivações - com o desenrolar do tempo e o exílio político russo (dourado) que Putin lhe concedeu - demonstrou-se que este ex-agente da CIA tinha preocupações verdadeiramente éticas e de direito que remetem a discussão para os limites - jurídicos e funcionais - que as agências de informação do Estado norte-americano pode (e deve) ter para com o seu povo. 
Snowden veio demonstrar múltiplos aspectos na relação do cidadão com a Administração, a saber:
1.  O Estado não pode espiar os cidadãos, mesmo alegando motivos de national security, muitas das vezes animados por outros vested interests. Tais exageros têm e devem ser refreados, e punidos quando violados pelas agências de informação que seria suposto observar o rule of law. Afinal, a América tem a Constituição mais avançada (e curta) do mundo e nela estão previstos vários direitos, entre os quais o direito à privacidade;
2. A onda de terrorismo globalitário saído dos ataques de 11 de Set. 2001 - levados a cabo pela Al Qaeda não pode justificar todos os programas de espionagem sobre as populações e até sobre as altas esferas políticas de decisão dos líderes dos países da União Europeia, como foi denunciado por revistas alemãs e pela generalidade da Comunidade internacional. O Brasil chegou mesmo a suspender visitas oficiais até que Barak Obama explicasse tal actuasse abusiva por parte das agências de informação. Nunca explicou, ou explicou mal perdeu a face. Por  isso, não admira o ódio de estimação que tenha por Snowden, mas Obama passará à história e o exemplo anti-big brother deixado pelo ex-agente ficará como um legado de reforço pelos direitos humanos contra os abusos dum Estado intrusivo na esfera individual de cada cidadão;
3. Snowden, juntamente com as acções do Wikileaks, em momentos diferentes e com motivações também distintas, mas que convergiram em alguns aspectos contra a velha realpolitik dos Estados, veio por a nu as debilidades da diplomacia secreta dos Estados e dos expedientes utilizados pela superpotência restante da Guerra Fria - designadamente os EUA - para enfraquecer os aliados, o que tornou infame (por via da traição de confiança) a utilização abusiva e ilegal que as agências de recolha e tratamento de informação norte-americanas dão às suas instituições, quer no relacionamento doméstico, quer no âmbito das relações internacionais de espionagem aos próprios aliados. 
4. O mérito de Edward Snowden traduz-se, de facto e de iure, em toda a linha e deve fazer meditar todos os operadores políticos de molde a alterar as normas que regulam a actividade de espionagem doméstica e transnacional. 
Snowden, à contrário de Bin laden, é o exemplo de super-indivíduo que tem e exerce um poder benévolo em favor de todos os povos do planeta, porque obriga os poderes invasores do Estado a recuar para níveis tais que respeitem os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos e, simultaneamente, assegurem procedimentos de recolha e tratamento de informação que possa combater o terrorismo e as formas emergentes de criminalidade global que afectam hoje a vida a qualquer sociedade aberta.  
Razões bastantes que justificam o mérito pessoal de E. Snowden e o demérito político de Obama, que devia ter reconhecido o erro prematuramente e procedido a alterações normativas e funcionais no âmbito da cadeia de decisão de recolhe e trata a intelligence na República Imperial, como Aron em tempos lhe chamou. 
A lição (outra) que podemos tirar de toda essa relação controversa entre poder político, povo, agências de informação e ex-agentes ressentidos com o funcionamento da administração é a de que os Estados, mormente uma superpotência como são os EUA, se não forem vigiados e controlados mediante mecanismos de checks & balances verdadeiramente efectivos não há estado de direito, e quando tal acontece a democracia residual representa apenas um estatuto formal que de nada vale perante a violação grosseira dos direitos, liberdades e garantias dos povos onde tais violações ocorrem.
Paradoxal é que tais violações emanem duma grande democracia, e não, como seria previsível, duma ditadura nova, ou seja, duma democracia musculada tipo russa que, curiosamente, se arvorou em grande defensora dos direitos humanos ao conceder asilo político àquele que passou a ser o inimigo n.º 1 dos EUA - enfraquecendo politicamente o próprio Obama nesse processo.
Contudo, deve-se lembrar Putin que é tudo menos um exemplo dos direitos que pretende fazer crer ao mundo que defende, pois enquanto se assassinam jornalistas, como Anna Politkovskaya - não se tem legitimidade para grande coisa. 

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