segunda-feira

A história do maior conflito na cúpula do capitalismo português do pós-25 de Abril

Quando os problemas financeiros, as polémicas — algumas associadas a investigações policiais — e as lutas pelo poder dentro do Grupo Espírito Santo se tornaram evidentes, Ricardo Salgado deixou de ter condições para se manter no Grupo Queiroz Pereira (dono da Semapa, que agrupa a Secil, Portucel, Soporcel e Inapa). E assinou um pacto de separação de águas com Pedro Queiroz Pereira (PQP), pondo fim a uma parceria empresarial de oito décadas. Ricardo Salgado, em processo de sucessão, já não se podia dar ao luxo de ter um corpo estranho (o próprio PQP) na cúpula do Grupo Espírito Santo, com 7% do capital (e ainda muita informação, poder arbitral e capacidade de influenciar). A Revista 2 revela agora os detalhes dos bastidores desta disputa que se travou entre os dois grupos — uma história cheia de incidentes e omissões.
Há 12 anos, Pedro Queiroz Pereira, presidente do Grupo Queiroz Pereira (GQP), interrogou Ricardo Salgado sobre quem eram os verdadeiros donos da Mediterranean (uma sociedade luxemburguesa que agregou três offshores, com presença forte na Semapa) e que o BES representava. O industrial conta que sempre ouviu a explicação: “Pertencem a investidores que não querem ser conhecidos, são discretos.” Não ficou elucidado.
Dez anos mais tarde, a resposta de Salgado continuava a mesma. E dois dias depois de PQP ter recusado nomear um delegado da Mediterranean para os órgãos de gestão das holdings familiares, por desconhecer a sua verdadeira titularidade, o BES assumiu, finalmente, o controlo. Foi a gota de água que fez transparecer a discórdia. Se a acção de Salgado foi táctica ou outra coisa, não se sabe.
Mas na Semapa (com actividade nas áreas do cimento, do papel e pasta de papel e do ambiente, e a jóia da coroa do Grupo Queiroz Pereira) estas movimentações accionistas são conhecidas como “o assalto à diligência”. PQP foi, nos últimos dois anos, o general das tropas anti-“investida” de Salgado, com um lugar-tenente, Fernando Ulrich (à frente do BPI, que detém 10% da Semapa e que assessorou PQP) e um oficial, José Maria Ricciardi (presidente do BES Investimento, BESI, e opositor assumido de Salgado na família Espírito Santo).
Queiroz Pereira acusa Salgado de o ter “iludido” para prosseguir um plano paciente e sistemático para dominar a Semapa, que reconstruiu após a morte do seu pai, Manuel, fundador do Grupo Queiroz Pereira em 1940.
Já os círculos próximos de Salgado garantem que o banqueiro nunca quis mandar na Semapa e procurou ainda, por razões de afinidade histórica, proteger as irmãs Margarida Queiroz Pereira Simões e Maude Queiroz Pereira Lagos. Estas, por sua vez, não vendo os seus interesses particulares salvaguardados, recorreram a Salgado, em períodos distintos do tempo, para se defenderem do irmão.
Há acções judiciais a correr entre todos, mas sem acusações de ilícitos ou de roubos. Os detractores de PQP não lhe contestam o mérito, mas o caminho que escolheu para dominar: não ouviu ninguém, atropelou quem quis. O industrial discorda: nunca adquiriu para si uma única acção do grupo que herdou. E insiste no argumento central: “O meu pai deixou aos filhos uma empresa, que eu multipliquei infinitamente…” O Grupo Queiroz Pereira tornou-se líder industrial e o maior exportador nacional em valor acrescentado. Em 2012, o volume de negócios da Semapa foi de cerca de dois mil milhões de euros (1,5 mil milhões de pasta e papel).
A Revista 2 ouviu os círculos próximos dos intervenientes e personalidades independentes. Apenas PQP, antes de os acordos com o BES e a família terem sido firmados nas últimas semanas, aceitou comentar aspectos históricos do grupo. Já os restantes actores (BES, Maude Lagos e os primos Carrelhas, accionistas minoritários), por intermédio dos seus advogados e assessores, declinaram abordar o conflito que minou uma relação que remonta às primeiras décadas do século passado.
Da fundação à revolução
1937. Datam daí os primeiros contactos entre os grupos Queiroz Pereira e Espírito Santo. Manuel Queiroz Pereira, filho de Carlos Pereira, accionista do Banco Comercial de Lisboa, cruzou-se com Ricardo Espírito Santo Silva (avô de Salgado e de José Maria Ricciardi), herdeiro do proprietário da Casa Bancária Espírito Santo. As duas instituições funcionavam paredes meias na Rua do Comércio e decidiram avançar para a fusão. “O Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa (BESCL) foi desde o primeiro momento presidido por figuras do Grupo Espírito Santo, pois o meu pai, ao contrário dos irmãos Espírito Santo, apresentava-se como industrial. Mas houve sempre um grande entrosamento entre eles”, sublinha, 73 anos depois, PQP. Era, portanto, o começo de uma bela amizade… mas com percalços.
Ora, o primeiro desentendimento entre as duas famílias deu-se, na década de 1930, quando Oliveira Salazar decidiu, por decreto, criar uma indústria nacional de refinação e se concertou com Ricardo Espírito Santo numa “parceria-público ou privada”: a Sacor, de capitais públicos e onde o BESCL tinha uma posição, destinava-se a assegurar 100% da refinação e 50% da distribuição de crude. Assim que a Sacor estivesse a funcionar, a capacidade de distribuição da Sonap ia reduzir-se de 40% para 25%. Como a Sonap era detida por Manuel Queiroz Pereira (em conjunto com Manuel Boullosa), o industrial foi surpreendido e não gostou de ver o banqueiro desalinhar dos seus interesses particulares, pois era accionista do BESCL, para além de administrador.
Formado em Ciências Económicas e Financeiras de Lisboa, com 17 valores, Ricardo Espírito Santo era mais do que banqueiro. Era polifacetado, mecenas, amante de Amália, era ainda um homem de poder e de grande influência política — visitava Salazar todos os domingos à tarde. “Era brilhante, uma figura proeminente que marcou uma época”, enquanto “o meu pai, embora muitíssimo respeitado, era discreto”, considera PQP.
1937. 17 de Maio. Sain o quê? A Manuel Queiroz Pereira, o nome Martin Sain nada dizia, mas a dupla Salazar e Ricardo Espírito Santo vão envolver na construção da Sacor este romeno, refugiado em Paris. Nesse ano, o Estado concedeu alvará à Redeventza, de Martin Sain, para construir em Cabo Ruivo uma unidade de refinação e de distribuição de petróleo.
1939. 1 de Setembro, início da Segunda Guerra Mundial. Visitar São Bento era um direito reservado a um núcleo restrito. O pai de PQP foi ter com Salazar: “O custo da refinaria [Sacor] está a ser pesado e a deixar ‘comissões’ em todo o lado, Martin Sain não é pessoa fiável.” De onde vinha o poder de Sain? Com olhar malicioso, o ditador respondeu: “Saiba Vossa Exa. que empreendimentos desta grandeza [Sacor] não se fazem com meninos de coro.”
1949. A 5 de Março, nas vésperas do renascimento da Europa pós-guerra, nasceu, em Lisboa, Pedro Queiroz Pereira, cinco anos depois de Ricardo Salgado (Cascais). Um período que coincidiu com a primeira grande vaga de industrialização do país (obras públicas, barragens, electrificação), a que se seguiram os planos de fomento. A receita é sempre a mesma. Para promover a modernização da economia, Salazar criou o Banco de Fomento Exterior que entrou no capital da Sodim (hoje da família Queiroz Pereira) para construir, em Lisboa, o primeiro hotel de cinco estrelas. E pediu a Ricardo Espírito Santo que juntasse empresários para levar por diante o plano. Após a morte do banqueiro, em 1955, Manuel Queiroz Pereira ficou encarregue de executar a obra.
1960. Os dois sócios da Sonap, Manuel Queiroz Pereira e Boullosa, estão numa encruzilhada porque defendem estratégias diferentes para a empresa e decidem separar-se. O que, na prática, se traduziu numa grande zanga. Amigo de Manuel Queiroz Pereira, o novo presidente do BESCL, Manuel Espírito Santo Silva, aceitou financiar-lhe a compra da posição de Boullosa, pois estava convencido de que este aceitaria vender a sua parte. Mas com o industrial dos petróleos não se brincava, era mais esperto do que imaginavam. Boullosa meteu-se num avião e foi ao estrangeiro levantar os fundos que lhe faltavam. Acabou por ser Manuel Queiroz Pereira a deixar a Sonap. O volte-face deu sururu na época.
José Roquette, ex-banqueiro do BES e hoje empresário da Herdade do Esporão, tinha na altura 23 anos e acabara de chegar ao BESCL para assessorar tecnicamente o presidente. E ainda se lembra “que era suposto que fosse o sr. Queiroz Pereira a ficar com as acções, pois tinha mais património [do que Boullosa] e o BESCL era o grande banco. Era alguém de peso na administração, muito activo”.
Com a acumulação de capital resultante do negócio da Sonap, o relacionamento entre os grupos Queiroz Pereira e Espírito Santo vai aprofundar-se. A partir daí, o industrial começou a diversificar os negócios sectorial e geograficamente e investiu não só em África, como no Brasil, o que era invulgar na época, mas ajudará o grupo a resistir fora de Portugal após a revolução.
1970. No poder, Marcelo Caetano procurava vias para liberalizar a economia. “Como havia uma clara intenção de forçar o aparecimento de um concorrente no sector dos cimentos dominado por Champalimaud [dono da Siderurgia Nacional], o Rogério Martins [secretário de Estado da Indústria de Caetano] ficou satisfeitíssimo quando o Queiroz Pereira, com capacidade financeira, requereu a instalação de duas novas unidades”, evoca agora Torres Campos, à época director-geral da Indústria. “Ele [Rogério Martins] queria usar a concorrência para contornar o condicionamento industrial, aprovou com o argumento de que ia quebrar o monopólio do Champalimaud.” E foi assim que a família Queiroz Pereira se envolveu na área dos cimentos, que perdeu com a revolução. Vinte anos depois, PQP voltaria aos sectores da celulose e do cimento, onde a família já tinha estado, ganhando um pouco dos dois.
1971. “Pêquêpê” era amante de ralis e o curso no Instituto Superior de Contabilidade e Gestão estava a ficar para trás. Tinha 23 anos quando foi mobilizado para cumprir o serviço militar em Angola, onde se encontrava no 25 de Abril. Pertencia à elite burguesa da época, que circulava entre Lisboa e Cascais. “A casa dos Queiroz Pereira era a melhor do Restelo [vendida à Embaixada do Brasil depois da revolução], sem comparação com nenhuma das outras e eram todas boas”, recorda um ex-vizinho, hoje no mundo dos negócios, que ainda se lembra de que “os filhos Queiroz Pereira tinham ‘bombas’ em casa que nunca estacionavam na rua como acontecia com as restantes famílias ricas”. E acrescentou: “‘Pêquêpê’ era o segundo filho, um enfant terrible, mas encantador com os amigos, a quem, ainda hoje, gosta de proporcionar boas coisas.” Onde uns viam um enfant terrible, outros olhavam para um miúdo determinado. Conta Pedro Roriz, ex-jornalista da área automobilística, que o conheceu no Colégio Militar, com 12 anos, “quando já era um desportista, um excelente jogador de futebol”: “Apesar de ter um estatuto que lhe permitiu começar num plano elevado, agarrou no grupo do pai e tornou-o no maior grupo industrial que para mim é o importante. Não vendeu, não fechou, expandiu. Que importância tem ter sido aventureiro se ao chegar a hora da verdade se superou?”
1973. No final deste ano, se em África o conflito se agudizava, em Portugal verificava-se uma grande aceleração monopolista. Na revista Análise Social, o académico Américo Ramos dos Santos refere no artigo “Desenvolvimento Monopolista em Portugal” que, entre 1968 e 1973, o núcleo do poder económico era formado por 14 famílias, onde pontuavam os nomes Espírito Santo, Mendes de Almeida, Queiroz Pereira. Um espaço de cruzamentos. Em 1972, PQP casou-se “para a vida” com Maria Rita Mendes de Almeida, de quem tem três filhas [Filipa, Mafalda, Lua].
Nesse ano, em retaliação ao apoio norte-americano a Israel, os Países Exportadores de Petróleo aumentaram em 300% o preço do petróleo. As bombas de gasolina, em Portugal, encerravam ao fim-de-semana. Um dos capitães de Abril, Sousa e Castro [13/3/2000], contou ao PÚBLICO: “Nas vésperas do 25 de Abril, assisti, no supermercado militar, a uma bulha entre clientes para ver quem chegava primeiro às prateleiras.” “Um factor que ajudou a acelerar a Revolução”, explicou.
Relançamento do grupo
1974. 24 de Abril. O que em Janeiro valia uma nota de 100 escudos custava agora 133. Na madrugada de 25, na Escola Prática de Cavalaria de Santarém, os relatos contam que o capitão de Abril Salgueiro Maia discursou: “Meus senhores, como todos sabem, há diversas modalidades de Estado. Os estados sociais, os corporativos e o estado a que chegámos. Ora, nesta noite solene, vamos acabar com o estado a que chegámos! […] Quem não quiser sair fica aqui.” O batalhão marchou para a capital. Manuel Queiroz Pereira assistiu em casa, em Lisboa, à rendição de Caetano no Largo do Carmo. Manuel Alfredo de Mello, filho de Jorge de Mello do Grupo CUF, estava, então, na dupla condição de militar e filho de industrial [PÚBLICO 13/3/2000]: “Pensou-se que a mudança se reflectiria sobretudo nas saídas de Américo Thomaz e de Caetano. E as declarações de Spínola indicavam que a descolonização ocorreria progressivamente, não se prevendo para a economia grandes rupturas.” Puro engano. [...]

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