domingo

Sociedade da (des)confiança em Portugal




O que conduz uma sociedade a seguir um caminho distinto das demais assenta na sua cultura, cujos valores impele as sociedade para uma rota de desenvolvimento sustentado ou, ao contrário, para uma rota de empobrecimento, como ora se regista em Portugal. Ou seja, nas sociedades onde perpassam os fios da confiança entre as pessoas, as empresas, entre estas e os agentes económicos e os responsáveis políticos, tende a existir um ciclo de desenvolvimento sustentável; nas sociedades onde essas ligações inexistem assiste-se à ruptura das relações entre todos aqueles actores, porque impera a desconfiança em todos eles. Desse modo, a confiança é o cimento duma sociedade; a desconfiança opera como o câncer da sociedade, por vezes acompanhada de metástases no  corpo social que se alastra à economia, que é o que se verifica actualmente em Portugal, em que a necessidade do equilíbrio das finanças públicas matou a capacidade de iniciativa económica geradora de emprego, riqueza e bem-estar. 

Neste quadro, pode-se dizer que a sociedade portuguesa, condição agravada nesta última semana em que os principais agentes do Estado se comportaram como verdadeiros terroristas de Estado, minando a sua credibilidade interna e externa, com reflexos imediatos graves nos mercados financeiros (leia-se, cotações de empresas em Bolsa a cair e aumento dos juros da dívida pública) é uma sociedade de desconfiança, porque conduzida pelo medo, pela impreparação para a governação e uma grande descoordenação política e falta de sentido estratégico para Portugal. É assim que os investidores e especuladores, que ditam as regras, olham para Portugal. 

Em larga medida, esta desconfiança provem das cúpulas e contagia todo o governo e funcionamento do sistema político, em que um dos partidos minoritários da coligação entende que o PM em exercício não é competente e capaz de liderar; este, por sua vez, entende que o líder do partido menor não deve ter um peso desproporcional à sua representação sociológica e, por isso, não deve ser auditado sempre que o PM toma uma decisão, faz uma nomeação, concebe e executa uma política pública, por mais erradas que sejam todos esses actos de poder. 

Este jogo do "gato e do rato" tem consequências políticas marcantes: profunda desconfiança entre os líderes políticos que suportam a coligação (e entre os respectivos partidos que sustentam esta coligação contranatura), falta de coordenação política ao nível governamental, cisão entre ministros e políticas sectoriais, etc. Os resultados dessas políticas públicas estão à vista em quase todas as pastas. E a carta de demissão de Gaspar traduz a síntese global desse falhanço que hoje compromete a reforma do Estado, a recuperação económica e o equilíbrio das finanças públicas, que sempre foi crónico desde a queda da monarquia. 

Portanto, a sociedade portuguesa, quer na sua componente civil, quer na sua componente mais política é hoje uma sociedade profundamente desconfiada, animada pelo medo, pelas desigualdades, pelas injustiças, pelo sentimento de impunidade que alguns corruptos, que se locupletaram de bens públicos não são feitos arguidos e passem a responder perante a justiça, como no conhecido caso BPN.

Este sentimento de impunidade decorre da ineficácia da justiça, da má qualidade das nossas elites, da irresponsabilidade dos políticos e da expansão das desigualdades e da pobreza entre as pessoas. Factores a que o desemprego, a draconiana carga fiscal e o não crescimento económico são alheios. Naturalmente, a resolução destes bloqueios não se resolvem com medidas de cosmética, que são imediatamente criticadas e caricaturadas nas redes sociais, como ocorre com os briefings diários cujo agenda-setting consiste em apresentar factóides políticos, ou seja, factos que não são factos, apenas para entreter a opinião pública e ganhar tempo para justificara erros e mais erros. 

Com uma sociedade cimentada nos valores da desconfiança, na incompetência, na previsão falhada, nas políticas públicas erradas tudo aquilo que o Estado ganha traduz uma perda para os cidadãos, alargando ainda mais o fosso entre governantes e governados. Por isso, não surpreende que os cidadãos vejam o Estado como um inimigo de que querem ver-se livres. 

Esta última semana, no plano das atitudes e dos comportamentos dos agentes políticos, representou décadas de retrocesso político, cultural e civilizacional entre nós. Parecemos um país do 3º Mundo. As perdas imateriais, logo não quantificáveis por esta erosão de confiança, representam a total descredibilização da classe política, da sua falta de vergonha e pudor. Elementos que, esperemos, não sejam sancionados por Belém, apenas porque o dinheiro da troika, no quadro do ajustamento da economia nacional, deve sacrificar tudo em seu redor. 

Tudo na terra deve ter uma tempo limitado, sobretudo as más políticas, que fazem sofrer os povos; os maus políticos também não devem apegar-se ao poder e devem ter os seus mandatos cada vez mais limitados e vigiados, a fim de evitar a multiplicação e o alargamento das condições geradoras de injustiças sociais que podem descambar em conflitos sociais sangrentos. Portugal não é a Grécia, mas pode vir a ser, pois o tempo é composto de mudança, e esta, em tempos de grande aflição social, pode comportar dinâmicas verdadeiramente surpreendentes. 

É sabido que a principal função da política é a produção e distribuição dos bens colectivos necessários ao desenvolvimento de uma sociedade, para o que urge tomar um conjunto de decisões em tempo útil, com escassez de dados e de recursos, num meio complexo que as novas condições socioeconómicas parecem complicar ainda mais. Especialmente, quando as soit-disant elites políticas no poder se comportam como verdadeiros "terroristas de Estado" - que usam e abusam das suas funções em resultado da vaidade, das birras e caprichos, da impreparação e da incompetência e ainda da gula de poder que animam os decisores políticos em Portugal. 

Creio que este não deve ser o perfil do escol dirigente em Portugal, e, por essa razão, entendo também que Belém não deverá sancionar a manutenção desta situação profundamente podre em Portugal, dado não ser a mais adequada ao processo de tomada de decisões num quadro de elevada complexidade. 


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