Tiros nos pés - por António Vitorino -
Mergulhados no turbilhão político caseiro quase nem tivemos ocasião para digerir as conclusões da reunião dos chefes de Estado e de Governo da Zona Euro da passada semana. Reunião essa, contudo, que acabará por ter repercussões na nossa vida colectiva muito para além do desfecho da crise do PEC IV... dn
Em primeiro lugar, importa reconhecer que as decisões tomadas no âmbito europeu foram muito além do que era previsível. Confesso que era dos que pensavam que estas decisões acabariam por fazer o seu caminho, mas apenas no último minuto da última hora do próximo Conselho Europeu de 24 e 25 de Março. No entanto, razões que poderão ser mais bem entendidas à luz das vicissitudes da política interna alemã terão levado a chanceler Merkel a definir um quadro de resposta antecipadamente, quer no respeitante ao denominado pacto de competitividade quer no referente às regras de flexibilização do Fundo Europeu de Estabilização Financeira.
Quanto ao primeiro aspecto, as formulações acolhidas quanto às reformas económicas atinentes ao crescimento, ao emprego e à sustentabilidade dos sistemas de pensões nacionais foram sendo buriladas e acabam por se apresentar como previsivelmente aceitáveis para todos os Estados membros da União, sejam ou não membros da Zona Euro.
Já quanto à flexibilização do Fundo de Estabilização, os resultados vão muito para além do que seria expectável. Isto quer à luz das declarações públicas feitas ao longo de várias semanas por altos responsáveis alemães quer em função do que se sabe ser uma reacção negativa da opinião pública alemã em relação ao apoio a dispensar aos países da Zona Euro em situação particularmente exposta à pressão dos mercados internacionais.
As novas características deste Fundo (aumento da dotação efectivamente mobilizável, taxas de juro de referência, possibilidade de compra directa de dívida soberana no mercado primário, prazo de reembolso) justificam plenamente aqueles que sempre disseram que o recurso ao modelo anterior não só não resolvia os problemas de fundo dos países sobreendividados (excepto a garantia de estabilidade no financiamento) como inclusive os agravaria, gerando uma espiral perversa da qual os países não se libertariam tão cedo. A Grécia já manifestou o seu interesse nestas novas condições, a Irlanda está confrontada com o dilema de as aceitar cedendo no seu sistema de taxação das empresas como parte da condicionalidade exigida pelos seus parceiros europeus.
A nova configuração do Fundo faculta, pois, aos países que, no futuro, se vejam confrontados com necessidades de financiamento em relação às quais os mercados imponham condições punitivas ou desproporcionadas, um mecanismo de resposta e de contrapressão em relação aos mercados que assinala uma diferença qualitativa em relação ao cenário antecedente. Os termos em que, entre nós, esta questão tem sido equacionada no debate público não podem ignorar esta mudança significativa.
Resta saber se este novo modelo do Fundo, conjugado com o pacto de competitividade e com as regras de coordenação dos orçamentos nacionais, será suficiente para garantir a sustentabilidade do euro no seu conjunto, pondo termo à pressão dos mercados e ao efeito de contágio que se tem gerado desde a crise grega em Maio do ano passado.
O que me parece evidente é que este novo quadro europeu constitui uma janela de oportunidade para Portugal, quadro esse que há uma semana não estava nem de perto nem de longe garantido e que hoje nos abre uma via de saída. Se, em virtude das vicissitudes da nossa política interna, não a soubermos aproveitar, só nos poderemos queixar de nós próprios. Uma crise política que enfraqueça a capacidade negocial portuguesa neste momento crucial tem efeitos que não se apagam no curto prazo e apresentará uma factura (ainda mais) pesada aos portugueses nos anos que se seguem.
Convém não esquecer que as organizações internacionais e os mercados não se relacionam com concretos governos mas sim com Estados. Ora, por muito emocionantes que sejam as picardias da nossa vida política e por muito sensíveis e calculistas que sejam os seus protagonistas, é todo um povo que estará presente na hora de prestar contas. E os tiros nos pés pagam-se caros!
Obs: Com o dr. Soares a reclamar eleições antecipadas, com o Portugal-profundo a manifestar-se nas ruas contra o Gov, com o principal líder da oposição a ser inflexível e desejar eleições antecipadas, Sócrates foi hoje ao Parlamento vencer mais um debate. E até deixou mais uma promessa: as pensões irão aumentar, ainda que ligeiramente. Claro que foi a intervenção de Francisco Assis, em boa medida, quem salvou o debate, orientado-o para o combate político puro e duro, ao chamar à colação os métodos e procedimentos do Gov durão & Portas, em 2004, ao preparar em Bruxelas os referidos pacotes de austeridade para a economia portuguesa. Só o tempo nos dirá como iremos todos pagar esses tiros nos pés, havendo, contudo, quem já não tenha pés, ande com os cotovelos.
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