Uma Carta de Direitos para o Sobreiro em Portugal
Há dias cruzando algumas belas terras do Alentejo confrontei-me com um problema de perspectiva, como decorre em tudo na vida: de avião, o Montado de sobro recorta pequenos cogumelos e parece algodão-doce vendido em feira, rasteiros, compondo as onduladas planícies alentejanas; visto de terra são árvores imponentes, com 20-25 m. de altura e com um diâmetro impressionante, que nos fazem parecer anões. Tudo é, pois, uma questão de perspectiva. À primeira vista são só grandes, mas depois descobre-se-lhes imensas qualidades e potencialidades: além da cortiça própriamente, as matas de sobreiros representam árvores com uma tremenda longevidade, tal como os corvos, servem múltiplas finalidades no âmbito socio-económico, além da sua importância ecológica (que está oculta). Frutos, carvão, carne (que serve para alimentar gado bovino, suino e caprino), plantas medicinais, caça, turismo cinegético e o mais. São outras tantas finalidades. Ou seja, aquilo que aparentemente só dá cortiça para fazer rolhas para garrafas para conserva o vinho, em que também somos grandes produtores mundiais, representa uma multiplicidade de fins que nem nos passa pela cabeça, e que depois integra vários sectores de actividade económica, desde o calçado à construção civil e a materiais vários para isolamentos térmicos, acústicos, etc. O sobreiro é, assim, uma mega-árvore porque produz vários bens de natureza material que alimenta a economia nacional, além das valências invisíveis na protecção do aquecimento global, por reter dióxido de carbono que assim não migra para a atmosfera, contribuindo para aliviar as condições do aquecimento global do planeta que provoca degelos e altera as condições de vida da humanidade. Temos, portanto, uma árvore única, com uma multiplicidade de valências e de significados - a meio caminho daquilo que poderá ser considerado, simultaneamente, um Património Mundial Cultural e Natural, i.é, um património misto que habita este nosso clima mediterrânico, e que encontra a sua maior mancha a sul do rio Tejo, em particular no Alentejo. Além do facto de sermos o maior exportador mundial de cortiça, importa sublinhar e valorizar o seu elevado valor paisagístico, já que se trata de um verdadeiro "monumento" da natureza, encontrando-se alguns já classificados como Árvores de interesse Público.
E é aqui que bate o ponto, ou seja, tratando-se duma árvore de excepção, com um especial valor económico para o País, e já sendo proibido por lei o seu abate, não se compreende por que razão ocorre a progressiva artificialização a que o montado tem sido sujeito, agravado por uma exploração intensiva e desregrada que só deteriora as próprias condições climatéricas do meio.
Sobretudo, conhecendo-se o seu elevado valor conservacionista, já que o montado abriga uma rica e diversificada flora e fauna, designadamente em espécies cinegéticas, ainda por cima sendo a cortiça uma matéria-prima limpa e os bens que ela permite produzir, bens totalmente recicláveis. Estas vantagens representam, portanto, um "activo" incomensurável de valor estratégico e simbólico para o País no seu tecido conjuntivo.
Se assim é, e todos o reconhecem, seria da maior urgência que as instituições e entidades competentes (públicas, privadas e mistas) em articulação com a sociedade civil, incluindo aqui universidades e politécnicos e agentes activos de produção de saber, bem como a fileira das empresas que operam neste sector da cortiça, promovessem um debate para recolher testemunhos que depois seriam codificados numa espécie de Carta de Direitos do Montado de sobro em Portugal. É certo que, na prática, a lei já proibe o seu abate e promove a sua conservação, mas é insignificante num país ainda com escassa cultura de valorização do que tem de melhor em termos de Património Natural - que, doravante, deverá passar a ser visto como um "activo simbólico e estratégico" intra e extra-muros - vocacionado para a valorização do Turismo em espaços rurais, explorando o fomento de actividades satélites que podem valorizar esse desígnio, como a observação de aves, realização de passeios equestres, entre outros.
Dito isto, percebe-se que o país, e as regiões mais directamente envolvidas nesta valorização da paisagem natural de valor excepcional, em particular o Alentejo, encontrem aqui um desafio estratégico. O qual consiste em procurar demonstrar, seja no plano técnico e científico, seja no plano mais político e institucional, que estamos diante de um ecossistema com um valor simultaneamente sociológico, ecológico, antropológico que merece devida atenção por parte de todos os agentes envolvidos no processo deste reconhecimento mundial.
Daí a importância da codificação de um conjunto de direitos suplementares que se deveria creditar ao Montado de sobro em Portugal, talvez essa fosse a melhor "rampa de lançamento" para fazer interessar e reconhecer nesse ecossistema a ideia de obra-prima da Mãe-Natureza, a excepcionalidade duma paisagem, um testemunho único de uma tradição cultural com valor social e económico assinalável, de fixação humana e de ocupação do território tradicional representativo de uma cultura, especialmente quando o mesmo se torna vulnerável sob o efeito de mutações irreversíveis, exemplo excepcional de processos ecológicos e biológicos essenciais à preservação do ambiente, na medida em que contribuem fortemente para a contenção dos habitats naturais e da sua diversidade biológica. Só por estas razões, que são muitas e de valia, o Montado merecia a sistematização e codificação de um conjunto de direitos vertidos na tal Carta do Montado de sobro, o que exigiria um debate entre experts e generalistas, cuja ideia em 1ª mão aqui avançamos, a fim de melhor garantir a sua sobrevivência, diversidade biológica e, claro, o reconhecimento do valor universal excepcional nos planos da ciência e da conservação, mas também nos planos da economia e do turismo - que representa um sector de actividade de interesse estratégico em Portugal.
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