sexta-feira

Uma década perdida - por António Vitorino -

Em finais de 2001, logo a seguir aos atentados terroristas de New York e de Washington, iniciou-se um debate profundo na comunidade internacional sobre os fundamentos da violência radical que reclamava uma inspiração islâmica.dn
Logo então algumas vozes sensatas e avisadas colocaram o dedo na ferida: o caldo de cultura do fundamentalismo islâmico era indissociável do enquadramento autoritário e ditatorial de vários países do Norte de África e da Península arábica.
Aos que assim equacionavam a questão contrapunham-se os que entendiam que esses regimes, embora causando embaraços do ponto da vista da democracia e das liberdades fundamentais, apresentavam a vantagem não despicienda de conterem as organizações fundamentalistas, mantendo-as afastadas do poder de Estado numa região tão sensível. Citavam, em sua defesa, os acontecimentos dos anos 90 na Argélia, onde a Frente Islâmica de Salvação só não alcançou o poder por via eleitoral em virtude de uma intervenção das Forças Armadas, imunizadas pelo regime da penetração do fundamentalismo islâmico.
Este debate então nascente foi abruptamente interrompido pela intervenção americana no Iraque. A partir de então, o Iraque passou a dominar as atenções, as linhas de demarcação dos campos foram-se cristalizando em função da posição que cada país assumia perante essa intervenção e a natureza dos regimes políticos dos países árabes passou para segundo plano, a ponto de se ir desvanecendo sequer como questão relevante na análise das implicações da luta antiterrorista.
As referências à célebre "rua árabe", ao sentimento popular nos países islâmicos, surgiam aqui e além a propósito das caricaturas de Maomé publicadas num jornal dinamarquês ou sempre que se assistia a um agudizar do conflito israelo-palestiniano ou a propósito da questão nuclear iraniana.
Contudo, para quem seguia de perto as edições em língua inglesa da cadeia de televisão Al Jazeera, não seria difícil perceber que esse sentimento popular ia bem além das questões internacionais que dominam as agendas dos media ocidentais, sendo inúmeros os sinais de insatisfação e de contestação dos regimes autoritários vigentes nesses países ao longo destes anos.
Depois de um período em que os EUA e os países europeus impuseram alguns constrangimentos a esses países, sobretudo no domínio do financiamento das organizações terroristas e da troca de informações sobre suspeitos e grupos fundamentalistas islâmicos, a questão da estabilidade dos países do Magrebe e do Médio Oriente rapidamente voltou ao que era antes do 11 de Setembro: um não-assunto, um dado adquirido.
A eclosão da revolta popular na Tunísia apanhou os países ocidentais completamente desprevenidos. A própria França, cujas ligações àquele país do Magrebe são conhecidas, adoptou uma postura que não considerava sequer a hipótese da queda do Presidente Ben Ali, tendo por isso que desenvolver um complicado exercício de contorcionismo político para se adaptar ao novo quadro político tunisino, com consequências que perdurarão no tempo.
A partir do momento em que a revolta tunisina "contaminou" o Egipto, passaram a ser os EUA a evidenciar a sua impreparação e surpresa perante um cenário de contestação e violência que supunham inverosímil sob o comando do Presidente Hosni Moubarak. Mais rápidos que os franceses, contudo, cedo perceberam que lhes seria fatal deixarem-se arrastar pelo destino de Mubarak e rapidamente reconverteram a sua posição graças às estreitas relações que mantêm com os altos comandos das forças armadas egípcias.
Os sinais que chegam da Jordânia, da Síria, do Iémen (e o mais que ainda se vai ver...) mostram bem a amplitude do fenómeno de contestação popular aos regimes autocráticos e de que chegou a hora de a "rua árabe" falar para dentro e contar como factor decisivo na estabilização destes regimes políticos cruciais para a paz na vasta região do Mediterrâneo sul ao mar Vermelho.
Os processos de transição democrática ora iniciados vão decerto ser complexos, marcados por avanços e recuos, mas são, sem dúvida, um virar de página. E um dedo acusador a quem se deu ao luxo de desperdiçar uma década inteira desde Setembro de 2001!
Obs: Uma análise interessante que revela que AV se não fosse ex-político, hoje advogado, daria um excelente docente na área das Relações Internacionais, em particular na área da segurança e dos sistemas de pensamento que reflectem sobre o terrorismo globalitário contemporâneo. A propósito desta reflexão deixo aqui umas notas:

1. Afinal, a contestação no mundo islâmico não decorre apenas das condições impostas pelo Ocidente, mas resultam das condições técnicas e políticas com que são exercidos os poderes públicos na região, quase sempre em regime autocrático e, portanto, com um défice de democracia, liberdade e desenvolvimento. É natural que isto deixe as populações insatisfeitas, e até às revoluções sociais vai um passo. Tunísia, Egipto sofrem hoje desse desprezo dos ditadores pelas condições de vida das suas populações. E aqui já não haverá um papel de federador para tipos como Bin Laden. Ele jamais federaria hoje as condições duma revolta, pois o que os povos querem é pão, emprego e melhoria geral das condições de vida. Rezar 5 vezes ao dia virado para Meca também é um convite à improdutividade, por isso há quem defenda que a religião (ou a sua interpretação degenerada e fanática) é o motivo de tanto subdesenvolvimento.

2. Em relação ao Ocidente, com os EUA à cabeça, diria que seria útil evitar o erro do curandeiro, que crê na sua propaganda, sendo que o que se pode fazer, nestas circunstâncias especiais das sociedades que estão inseridas numa dinâmica de crise, é gerir a "convalescença", pois mais do que o remédio ser decisivo é a capacidade de regeneração das próprias sociedades quando confrontadas com os efeitos dessas crises. Tentando identificar aquilo que no processo de transição, estará a contribuir para a formação do novo padrão ou configuração de relações internacionais (regionais).

3. Por outro lado, convinha que a realidade das chamadas "vizinhanças turbulentas", como sucede na relação dos países do Magreb, Grande Magreb e Machrek (incluindo o Egipto até ao Iraque e Península Arábica) e nós, países do Sul do Mediterrâneo, não se agravassem, pois os prejuízos comerciais e económicos são de monta, o que poderá implicar mais desemprego e miséria para os dois lados dessa fronteira e relação política.

Daí o cuidado que a Europa - onde está Portugal - deverá depositar nas relações com a vizinhança árabe, seja por motivos económicos, seja ainda por motivos de natureza de segurança, tanto interna como externa, que deverá ser uma preocupação central da União Europeia, que não se pode constituir como uma fortaleza sem sentido ou desígnio estratégico, e com Durão barroso à sua frente, esta Europa só pesca "carapaus alimados", ou seja, revela uma total falta de direcção política global, falta de desígnio para o mundo, e deixa-se secundarizar pelas posições - retardadas - do Tio Sam. Neste sentido, Barroso deixou de ser o Mordomo lusitano na Cimeira dos Azores, para passar a ser o Mordomo europeu dos EUA. Ou seja, piorou. Com sorte, talvez o psd o apoie daqui por 5 anos para Belém. Will see...

No fundo, a desgraça que está a ocorrer na região do Grande Magreb não deixa de significar lição para nós, Europeus, pois a atitude psicológica de cidade cercada impede qualquer reforma económica e social de envergadura e acaba por conduzir ao retorno dos Estados nacionais e aos seus velhos poderes autárcicos, e isso, nos tempos que correm, é (ou pode ser) fatal.

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