Amuos de perdedores - por António Vitorino -
Os resultados das eleições presidenciais proporcionaram várias interpretações instantâneas, mas contêm sinais que exigem um aprofundamento ao longo dos próximos meses.dn
Subsistiu a regra da reeleição do Presidente em exercício à primeira volta. Por margem mais escassa que nos casos antecedentes e com um perfil eleitoral que evidencia uma limitada capacidade de captação de apoios no campo oposto, para além de uma perda líquida de votos em relação ao sufrágio antecedente. O que coloca o Presidente reeleito perante o mesmo desafio que tinha no início do seu primeiro mandato: o de comprovar que alguém, oriundo da área política do centro-direita, consegue assumir a função de Presidente de todos os portugueses.
Outros dados das eleições apresentam, contudo, aspectos novos que importa aprofundar.
Um aumento da abstenção, para limiares antes nunca verificados em eleições presidenciais, mesmo em situações de recandidatura de um Presidente em exercício. Uma apreciável expressão eleitoral de candidaturas essencialmente de protesto, desde Fernando Nobre até ao candidato Coelho. O apreciável número de eleitores que, tendo-se deslocado às urnas, optou por votar branco ou nulo.
Nestes sinais alguns quiseram ver indícios do esgotamento do sistema político português. Mas a verdade é que a soma destes factores não legitima uma leitura unificadora das razões que estiveram por detrás de tais escolhas.
O que não se pode deixar de registar é que nenhuma das candidaturas almejava uma evolução presidencialista do nosso sistema político, já que todas desenvolveram os seus propósitos dentro do actual quadro de poderes definido pela Constituição.
Contudo, a conjugação daqueles elementos mostra que existe um vasto sentimento de mal-estar na nossa democracia que só em parte pode ser imputado ao quadro dos concretos candidatos presidenciais que se apresentaram a sufrágio e ao teor das suas propostas aos eleitores.
Com efeito, para além do que é circunstancial, estes sinais evidenciam transformações na sociedade que se reflectem no espaço político.
Desde logo, um caldo de cultura individualista que esmorece os laços de solidariedade e os incentivos à participação nas decisões colectivas. O crescente sentimento de exterioridade em relação ao sistema político manifestou-se de várias formas e reforçou-se em virtude da situação de crise que o País atravessa. O receio de que este sentimento venha a alastrar deve estar no centro das preocupações dos agentes políticos e muito em especial dos partidos mais representativos.
Por outro lado, a ideia de que do ponto de vista sociológico a esquerda é maioritária em Portugal ficou posta em causa pela segunda vez consecutiva em eleições presidenciais.
Neste ponto, a questão que se coloca à esquerda ultrapassa em muito as fronteiras nacionais. Como explicar que o pico de uma crise internacional do sistema capitalista global corresponda ao período mais baixo dos resultados da esquerda na generalidade dos países europeus? E que esse fenómeno tanto afecte os partidos socialistas e social-democratas que têm alternado no exercício do poder como os partidos da esquerda mais radical que propugnam por rupturas profundas sem, contudo, conseguirem ir além da federação de protestos que a mais das vezes tem mesmo facilitado a ascensão das forças políticas conservadoras? A França, o Reino Unido, a Itália, a Suécia, a própria Alemanha chegam como exemplos, ou ainda querem mais?
Compreende-se que perante esta deriva haja sempre uns decerto bem-intencionados que apresentem a convergência das esquerdas (várias) como a resposta necessária. E que fiquem irritados quando alguém se limita a constatar que há plataformas de convergência da esquerda que em vez de somarem, subtraem apoios. A forma fácil de reagir é a de rotular de sectário ou preconceituoso quem constata um facto tão evidente.
Mais difícil é reconhecer que a questão da convergência das esquerdas como resposta ao galopante avanço da direita depende sobretudo dos valores que sejam o eixo central dessa convergência e das políticas deles decorrentes em termos de possível respaldo popular. Na busca desses valores e dessas políticas nada ajudam os amuos de perdedores.
Obs: De facto, as coisas começaram muito mal no seio da estrutura dirigente do PS por referência ao apoio espartilhado ao poeta Alegre. Como este era um candidato bipolar, o PS acabou por ficar refém dessa limitação, o que acabou, agravado pelo crescimento da abstenção, por favorecer o candidado de Boliqueime - que, uma vez sufragado, denunciou todo o seu fel e rancor sobre os portugueses. Infelizmente, AV tem razão, o mal-estar está a generalizar-se na sociedade portuguesa, um mal-estar que poderia ter sido minorado no quadro destas presidenciais, mas essa foi uma possibilidade dramáticamente perdida por incapacidade e incompetência política. E hoje, creio, a volatilidade sociológica dos eleitorados corresponde à própria volatilidade dos mercados, e isso é trágico para a democracia portuguesa, com as consequências sociais e económicas, além do descrédito no plano internacional - que hoje também dita as condições em que operamos, sobretudo ao nível desses novos previsores do risco e do contingente que são as agências de rating, que tantas vezes se enganam, sem que daí decorra algum tipo de accountability.
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