terça-feira

O meu livro redescobre uma parte da história portuguesa

A obra de Laurentino Gomes, '1808', surpreendeu o Brasil com a adesão de muitos milhares de leitores a um livro que contava a chegada da corte portuguesa ao Rio de Janeiro. Impensável para muitos, o sucesso 'obrigou' o autor a escrever '1822' - publicado em Portugal pela Porto Editora - e a culminar a trilogia com '1889', relato da implantação da República. dn
Um livro de História não costuma ser êxito literário. Qual a receita de 1808 e de 1822?
O sucesso do livro 1808 e agora do 1822 surpreendeu todos e até mesmo o autor! Sempre se disse no Brasil que quem quiser ser best seller terá que escrever livros de auto-ajuda, esoterismo ou literatura light, mas o facto é que os brasileiros estão a ler a história do seu país e de Portugal.
Há uma razão especial para essa sedução?
Não é apenas curiosidade por factos e personagens pitorescos do passado, mas sim por uma razão mais profunda: a busca por explicações para o Brasil actual. A sensação que tenho é que depois da redemocratização [1985], o povo alimentou ilusões a respeito do futuro e considerou que seria muito fácil resolver todos os problemas. Bastaria uma Constituinte, um pacote económico e eleger um presidente populista para que passasse a ser um país do primeiro mundo.
O que não aconteceu!
Não se verificou e estão assustados com a persistência da corrupção, da desigualdade social e da ineficiência do sector público. Existem sucessos com a presidência de Lula, mas o país não caminha com a velocidade que se pensava. É aí que a História entra, porque ajuda a resolver a pergunta: porque nós somos assim? E a resposta está na necessidade de se olhar para o passado.
E culpar a colonização portuguesa?
Não. É preciso ver que o Brasil possui um território 93 vezes maior que a pequenina metrópole portuguesa. Para ocupar tanta terra de forma bem-sucedida, a solução era recorrer à distribuição de enormes latifúndios e à importação de mão-de-obra escrava. É errado criticar a colonização portuguesa, pois todas elas eram exploradoras.
Este livro relata a independência do Brasil. É um tema ainda mais comercial?
O que procuro explicar em 1822 não é apenas esse momento da história mas fornecer um mosaico com um panorama muito amplo que mostre como é que chegámos àquele momento e o modo como as transformações ocorridas em 1808 e 1822 afectam o presente. A sociedade que não estuda a história não prepara o futuro.
Não será uma obrigação dos professores?
É verdade, mas o seu ensino tem sido muito afectado pela manipulação proposital da história. Basta ver como o rei D. Pedro é um herói multiusos - marcial e épico para o regime militar e desconstruído pelos governos que se seguem. Ainda por cima, a história é manipulada tanto pelo poder como por quem está na oposição, o que afecta a forma como é ensinada nas escolas.
Tem conseguido fugir a essa manipulação?
Penso que sim, e o facto de vivermos num ambiente de democracia e com mais liberdade de publicações permite mais senso crítico sobre personagens do passado.
Os historiadores não devem ter apreciado serem ultrapassados deste modo...
No início foi complexo porque viam-me com alguma apreensão. É natural, porque o seu percurso exige validações constantes e não gostaram que surgisse um jornalista que faz um livro de história do Brasil que se transforma num grande sucesso de leitura. Depois, alteraram a posição porque entenderam que o meu trabalho é de divulgação científica e que complementa.
A sua obra já é aceite pelos historiadores?
Às vezes ainda noto uma certa reacção corporativa e silenciosa e até já vi num blogue esta palavra de ordem: "Jornalistas, deixem a História para os historiadores." Mas os bons historiadores perceberam que o meu objectivo é ampliar o conhecimento da História do Brasil e de Portugal sem banalizar o conteúdo. O desafio é aumentar a audiência sem ficar só pela superfície.
Nunca mistura ficção com a realidade?
Não faço romance histórico, e os meus livros são não-ficção. O que acontece é que utilizo uma linguagem literária, como se pode ler na abertura do capítulo sobre a imperatriz Leopoldina, onde começo assim: "Maria Leopoldina Josefa Carolina de Habsburgo tinha todas as qualidades que o imperador Pedro I valorizaria numa mulher menos a fundamental: beleza e sensualidade." É uma linguagem literária mas fruto de uma pesquisa rigorosa e baseada em fontes aceites pela historiografia, que conferem ao meu trabalho uma legitimidade que os romances históricos não têm. Não invento coisas, relato o que aconteceu numa linguagem jornalística acessível ao leitor mais leigo e a um público mais amplo.
Até que ponto a sua pesquisa é exaustiva?
Basta ver que no 1808 são 180 as fontes entre livros e teses. Além disso, eu vou aos locais fazer uma reportagem sobre os acontecimentos. Fui aos Açores ver de onde saiu a esquadra para o cerco do Porto, visitei os cenários da Guerra da Independência do Brasil, locais sobre os quais a maioria dos brasileiros nem sabe o que ali aconteceu.
Ao fim de 200 anos de independência, o Brasil valoriza pouco o passado. Porquê?
É uma característica da sociedade brasileira, porque o fim da monarquia dá-se em 1889 mas a república é um projecto adiado desde 1822. Apesar de os ideais serem muito fortes, havia o risco de o Brasil se fragmentar em países independentes, receio que fez com que as elites da época optassem pela solução exótica da monarquia.
Manteve-se unido mas sem identidade?
O Brasil paga um preço alto pela integridade territorial porque são adiados os sonhos republicanos e a abolição da escravatura. Quando se dá em 1889 a república, o novo regime precisa de se legitimar, e o que faz é desqualificar os heróis anteriores. O país fica sem pai nem mãe porque os pais da pátria eram todos heróis da monarquia e criaram-se novos heróis da independência. Como foi uma construção de novos mitos muito bem sucedida, hoje o brasileiro não tem grandes referências históricas.
Nem as encontrou no século XX?
O que aconteceu foi que eram referências muito polémicas porque os pais da república eram todos generais e marechais toscos e escravocratas. O grande construtor do século xx é um caudilho, Getúlio Vargas, que namorou o nazismo e o fascismo... E, depois, temos uma ditadura militar [1964]. Ou seja, o que existe no Brasil é uma república com prática monárquica.
1822 é publicado simultaneamente no Brasil e em Portugal. Surpreendeu-o?
Os leitores portugueses têm muita curiosidade nestes temas, o que já confirmei com o sucesso do 1808 em Portugal. A razão deve residir num fenómeno de natureza psicológica, porque a fuga da corte para o Rio de Janeiro é tão prejudicial para os portugueses que se estuda muito pouco essa presença. Falam das invasões napoleónicas, da invasão liberal do Porto e das cortes constituintes, mas muito pouco sobre o que aconteceu entre 1808 e 1821 no Rio de Janeiro, quando na verdade é Portugal que está no outro lado do Atlântico. O meu livro faz a redescoberta desse pedaço da história portuguesa, porque o 1822 ajuda a entender esse momento de separação que é, no entanto, uma continuidade da monarquia portuguesa na América.
Obs: Não deixa de ser curioso que seja um jornalista a redescobrir a história comum luso-brasileira, um exemplo que historiadores e jornalistas deveriam seguir, apesar das resistências corporativas de parte a parte.
Depois, Laurentino Gomes faz uma coisa admirável, aliás, na linha de Nicolau Maquiavel - quando este dizia que em ordem a conhecermos o futuro, temos de conhecer o passado. O jornalista aprende esta lição do fundador da Ciência Política e faz este trabalho admirável, que, seguramente, irá ajudar a desvendar muita coisa que ainda está oculta entre a personalidade colectiva do povo brasileiro e também entre nós, dada a história comum. O que ajudará a explicar as causas do subdesenvolvimento e a corrupção que ainda hoje graça no Brasil.
Talvez até resida aí boa parte da explicação para que as finanças públicas em Portugal sejam crónicamente um jarro roto e o calcanhar de Aquiles da governabilidade em Portugal.
Como nota final, diria que os jornalistas portugueses, por regra com escassa formação cultural e científica, têm aqui um exemplo a seguir proveniente do outro lado do Atlântico que fala a nossa língua. Ou melhor, a língua que demos ao Brasil e sem a qual esse imenso país jamais teria feito feito a unificação que fez após o grito do Ipiranga, ainda que hoje essa federação comporte inúmeras vontades de independência.
Portanto, parabéns ao autor pelo imenso trabalho de investigação que teve para chegar a 1822. Vai certamente fazer história, mesmo entre os historiadores - que terão de engolir este enorme "sapo" editorial.

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