terça-feira

Três homens, três projectos de autonomia socio-política através dos media e da net

Já vimos, na reflexão infra, que as razões que levaram o PR, Cavaco Silva, a recorrer aos media para resolver a questão do diferendo relativamente ao Estatuto dos Açores, quando poderia ter sido atalhada caso fizesse o que devia: enviar o diploma ao TC, a instituição de direito que deveria analisar da constitucionalidade dos projectos de lei. Cavaco resolveu jogar a cartada dos media para decidir uma questão de natureza jurídica. Está no seu direito, mas foi um erro político.

Cavaco aparece aqui (no quadro do Estatuto dos Açores) como alguém que procurou apropriar-se dos media e captar a simpatia dos movimentos sociais e dos cidadãos para coadjuvar o seu processo de tomada de decisão e, desse modo, condicionar aqueles que queriam limitar os seus poderes presidenciais quando se coloca a questão de dissolver órgãos regionais.

A escolha pelos media por parte de Cavaco foi tomada em função do critério de interesse, pela sua singularidade em marcar uma posição firme no âmbito dos seus poderes constitucionais e dar um sinal forte ao PS-Açores (e nacional) que ele não está em Belém cumprindo apenas um papel simbólico, de corta-fitas.

O que constituíu novidade no approach de Cavaco a 31 de Julho foi o seu modus operandi, o facto de ter recorrido à política espectáculo e à espectacularização da informação para dar um sinal ao país de que certas forças políticas estavam a tentar tolher os seus poderes constitucionais. Nesse sentido, e tomando em linha de conta de que Cavaco é um político sóbrio e discreto, um actor com um estilo de actuação clássico, esta forma de actuar foi quase subversiva, guiada por critérios de interesse político atendíveis, embora relevassem pouco para a alimentação da estabilidade política, porque feito à margem do quadro institucional e dos canais adequados que existem para o efeito.

Portanto, a questão da interpretação do normativo do Estatuto dos Açores irritou de tal modo Belém que Cavaco resolveu inovar no plano da comunicação política, interagindo no tal mix de comunicação de diferentes estratégias que, por regra, são apanágio das Agências de comunicação. Algumas delas nada conseguem fazer dos "clientes" que têm e a sua mensagem não passa. O caso recente de Luís Filipe Meneses, ex-líder do PSD, foi um desses exemplos. Um caso em que o "embrulho" da comunicação não colava ao discurso e a opinião pública não aderia. O resultado foi o que se viu...

Ao invés, a actual direcção do PSD (com Ferreira Leite) não recorre às Agências de comunicação e o resultado ainda é pior, portanto não há regras fixas neste domínio da análise relativamente à forma escolhida para desenvolver a comunicação política. Com ou sem a intervenção das Agências de comunicação - o resultado final em termos de eficácia política - é sempre uma incerteza.

Analisada a forma como Cavaco procurou pressionar o PS-Açores (e o PS nacional) por via da apropriação dos media - tendo como pano de fundo a interpretação do normativo do Estatuto dos Açores que lhe limita o campo de actuação operacional, é útil perceber como é que cada um dos players usa os media como afirmação de autonomia sócio-política na Era da Informação para fazer política e, desse modo, influenciar o "pensar e o sentir" dos movimentos sociais e dos cidadãos.

Vejamos agora três casos que correlacionam os poderes públicos face aos media. Um caso que envolveu o ex-Ministro da Cultura do Governo de António Guterres, Manuel Maria Carrilho, um segundo caso que envolveu o ex-Ministro Morais Sarmento (do Governo Durão Barroso, no quadro da coligação PP-PSD), e um terceiro caso que envolveu a independência de Timor-Leste, o 1º Estado criado à sombra na Internet e do poder das redes virtuais e chamou a atenção de uma parte significativa da população portuguesa que rápidamente se solidarizou com aquele povo e com aquela causa no âmbito das relações internacionais na dobra do III milénio.

O primeiro caso - que envolveu Carrilho, traduziu-se na contestação pública ao encerramento do portal "Terràvista" gerido pelo Ministério da Cultura, do então governo liderado por António Guterres. Os actores desse processo foram os jornais que publicitaram a existência online de imagens do herói Goku, da série Dragon Ball, envolvido em cenas pornográficas. Esta situação levou ao encerramento por Carrilho do referido portal na net seguido dos protestos de milhares de utilizadores do Terràvista. Embora tenha sido um protesto iniciado na net ele rápidamente se generalizou à sociedade e granjeou a atenção dos jornais, da rádio, da tv mostrando como as estratégias de protesto passaram a influenciar os mecanismos de decisão política em Portugal. Constituindo até um 1º caso em como o encerramento de um portal ligado ao Estado mereceu estratégias de protesto centradas nos media com vista a pressionar os órgãos de soberania.

O segundo caso - ocorre em 2002, e teve lugar após o anúncio público por parte de Morais Sarmento, ministro do governo Durão Barroso (coligado com o PP) que visava reestruturar a televisão pública. O programa Acontece de Carlos Pinto Coelho desapareceu, por ser demasiado dispendioso, e o protesto liderado pela própria televisão pública teve na própria Internet uma sequência alucinante a fim de fazer engrossar o caudal das mensagens de protesto dos telespectadores, após o que se transformou num movimento contra o encerramento da Rádio Televisão Portuguesa. Também aqui nada ficara como dantes, e os fóruns e os blogues exerceram um papel importante na modificação das percepções e das opiniões junto da sociedade.

O terceiro caso - remete para a independência de Timor-Leste, cujo movimento de apoio remonta a 1999. Durante umas semanas, de forma intensa, usou-se o mix da comunicação para sensibilizar a opinião pública internacional de que era urgente fazer recuar a Indonésia e libertar a antiga "colónia" portuguesa no Sudeste asiático. Combinando os mass media com os meios da net mobilizaram-se milhões de pessoas anónimas para esta causa de protecção e promoção dos direitos humanos. Uma causa que concitou o apoio de jornalistas, políticos, diplomatas, militares, associações de cidadãos, ONGs, movimentos sociais em torno de uma acção global - exercitando uma diplomacia informal pressionando a Indonésia a recuar, a engajar a ONU no processo de independência de Timor-Leste e, naturalmente, a recolher o apoio dos EUA e da Austrália (potências regionais com uma palavra a dizer na área) para revalidar essa intenção cívica e política global. Tratou-se, sem dúvida, da maior manifestação cívica que mais pessoas e recursos concentrou em torno de Portugal desde o 25 de Abril de 1974. Desta forma, o processo que conduziu à independência de Timor-Leste resultou de um movimento global de mobilização dos media que ganhou forma num protesto global veiculado pelos media clássicos e também pela Internet.

É óbvio que Guterres, enquanto PM de Portugal e líder da Internacional Socialista (IS) tinha um poder, uma autoridade e uma influência internacionais relevantes que permitiram a Portugal acelerar esse processo de independência do 1º Estado a ser constituído à sombra da Internet e da Era da Informação. Chegou mesmo a dizer-se que Guterres ameaçou sair do Governo e demitir-se da IS se Bill Clinton, então às voltas com o delicado processo de costumes que o envolveu com Monica Lewinsky, caso o então presidente da República Imperial não tomasse partido favorável à independência de Timor-Leste tirando o tapete ao então ditador Suarto da Indonésia.

Estes três casos, distintos entre si, têm, contudo, um aspecto em comum: as práticas mediáticas dos sujeitos políticos analisados entronca com o peso crescente da Internet, ainda que cada um daqueles players os utilize de forma diferenciada tendo em vista atingir os seus objectivos.

Significa que cada um dos actores políticos, Cavaco em relação ao Estatuto dos Açores, Carrilho no caso do encerramento do portal Terràvista, Morais Sarmento na reestruturação da televisão pública, ou até Guterres no processo que conduziu à independência de Timor-Leste - revelam diferenciadas formas de apropriação dos media na sociedade em rede nesta Era da informação.

Cavaco na questão do Estatuto dos Açores, e ao não remeter - como devia - o documento para o filtro do TC - decidiu o que pretendia fazer, e só depois escolheu os media que melhor serviu o seu propósito: desgastar o PS-Açores (e o grupo parlamentar do PS na AR) através da pressão lançada na opinião pública, comprando (antecipadamente) uma guerra, supondo que lançando a questão através duma tão simples quanto estranha comunicação ao País a 31 de Julho - a interacção da tv, com a rádio, os jornais e a net - fariam o resto da pressão política sobre o PS e, desse modo, a questão não se resolveria por recurso à competência formal do TC, mas recorrendo ao peso constritor dessa nova gibóia que é a sociedade espectáculo - de que falava Guy Débord e, de forma mais estruturada e política, Roger-GérardSchwartzenberg.

E foi esta nova relação de Cavaco com o poder, os media, a net e a política que constituíu novidade em Portugal, tanto mais que se trata de um actor político com perfil tradicional, avesso às luzes da ribalta e sempre defensor de que os diferendos de carácter institucional se deveriam resolver nos gabinetes, nos corredores do poder e, bem entendido, nos órgãos de soberania adequados. Ora, a declaração à nação a 31 de Julho subverteu todos esses valores e princípios defendidos por Cavaco Silva, actual PR.

Não recordo já qual foi o grau de admiração ou a espessura da surpresa que Marcelo Rebelo de Sousa, também Conselheiro de Estado, revelou por tal declaração do PR, mas António Vitorino - por mais de uma vez, sublinhou no seu programa Notas Soltas na RTP - que o PR ao não reenviar o diploma para o TC estava a criar um obstáculo, como a prática revelou.

Com estes breves exemplos, poderemos concluir pelo seguinte:

1. Guterres utilizou os media, a net, a diplomacia e demais alavancas em seu poder para ajudar a libertar um povo, contruir uma nação, dar corpo a um Estado - Timor-Leste - o 1º Estado a ser criado na Comunidade internacional à sombra da Era da Informação e da sociedade do conhecimento.

2. Cavaco Silva - utilizou (ainda que pontualmente, mas de forma atípica) uma comunicação ao País - que já submergia em férias - para surpreender os jornalistas e deixar estupefactos 10 milhões de portugueses, que esperavam que o sr. PR utilizasse melhor os poderes de que dispõe - até em razão própria - para unir e não dividir os portugueses.

Afinal, até foi sob esse lema que foi eleito...