A crise global vista de Paris - por Mário Soares -
A CRISE GLOBAL VISTA DE PARIS
Mário Soares
1 . Passei o último fim-de-semana alargado em Paris. É sempre agradável, apesar do mau tempo: frio, com vento e muito enevoado. Sobretudo para quem viveu tantos anos na Cidade-Luz, por estar expulso da sua terra, como eu. Paris, que era então o centro cultural do mundo e hoje já não é. Mas está, agora, na presidência da União Europeia, com o agitado, frenético e imprevisível Presidente Sarkozy, onde os problemas mais agudos da actualidade estão tão presentes nas televisões, nos debates, nos jornais, nas conversas e preocupações das pessoas. Sente-se o mal-estar, a incerteza e a desconfiança quanto ao futuro. Talvez mesmo um começo de pânico.
Fui a convite de Ignacio Ramonet e da equipa do Le Monde Diplomatique e a temática proposta para o colóquio tinha duas vertentes: democracia e progresso social na América Latina, por uma política europeia independente; e a crise financeira internacional vista do Sul: como reconstruir um sistema em falência?
Nela participaram personalidades sul-americanas e europeias: como o ministro dos Negócios Estrangeiros da Venezuela, Nicolas Maduro, Miguel Ángel Martínez, socialista espanhol, vice-presidente do Parlamento Europeu, Edgar Morin, o filósofo francês da complexidade (que à última hora não pôde estar presente, por um incómodo de saúde), Raúl Morodo, antigo embaixador de Espanha em Portugal e na Venezuela, Bernard Cassen, o professor suíço Jean Ziegler, deputados e senadores europeus, de vários países, embaixadores em França e na UNESCO de países latino-americanos, entre muitos outros. Por lá passou ainda o antigo primeiro-ministro francês Villepin.
A sombra da crise, não só financeira mas global, com inúmeras vertentes, pior do que a de 1929, esteve presente em todos os debates. Não uma crise que está a ser debelada, com a injecção de milhares de milhões de dólares e de euros europeus, dos bancos centrais, nos respectivos bancos, seguradoras e algumas empresas dos respectivos Estados, mas antes uma crise, extremamente complexa, que está para durar, no mínimo dois anos, embora alguns reputados economistas (como Stiglitz) falem em pelo menos uma década.
Como já escrevi nesta coluna, não basta injectar dinheiro, muito dinheiro - como tem sido feito - para a crise ser debelada. Porque a especulação continua e há gente a ganhar muito dinheiro com a crise. A crise é sistémica - é preciso que as pessoas tomem consciência disso - foi o neoliberalismo que entrou em falência e a globalização desregulada, os paraísos fiscais e a especulação desenfreada que daí decorrem e continua. Portanto, não é voltando a encher os bolsos aos maiores responsáveis que podemos resolvê-la. É preciso uma mudança também global do sistema, mudar o modelo económico - o capitalismo na sua fase financeira e especulativa, de tipo virtual - para voltarmos à economia real, com os pés fincados na terra, lutando contra as desigualdades sociais, a pobreza e em defesa do planeta, ameaçado. É o fim do capitalismo? Respondo: do capitalismo virtual e especulativo, com certeza.
O Magazin Littéraire, francês, publica no seu último número - de Outubro de 2008 - um dossier dedicado a Marx intitulado Razões de Um Renascimento. É um dossier muito completo - e pedagógico - elaborado por filósofos, politólogos, economistas, sociólogos e antropólogos, condicionado pelo "espírito do tempo" (Zeitgeist, como lhe chamava Hegel) que mudou com a crise. Diz-se na introdução: "Passada a época dos anátemas e das caricaturas, somos levados, pela lógica das coisas, a redescobrir o pensamento marxista, em todos os seus registos e paradoxos: antropologia, economia, sociologia, filosofia e militantismo político." Tendo em conta - obviamente - o deficit do pensamento de Marx "em matéria de teoria política, segundo Patrice Bollon, que conduziu às derivas autoritárias que se conhecem"... E eu acrescento: totalitárias, com Lenine, Trotsky, Estaline, Mao Tsé-Tung e tutti quanti...
2.Repensar a esquerda. Eis a que nos conduz o espírito do tempo, se queremos vencer a crise e substituir o sistema. Não se trata, como sugeriu o Presidente Sarkozy, de "destruir o capitalismo financeiro e especulativo e punir os responsáveis" para "refundar outro capitalismo", ou seja: a mudança necessária para que tudo fique na mesma. Trata-se de algo mais simples e concreto: manter a economia de mercado, introduzindo-lhe regras éticas e jurídicas estritas capazes de assegurar a justiça social, numa nova ordem político-económica mundial que tenha como objectivos: erradicar a pobreza, no plano internacional, reduzir drasticamente as desigualdades, encerrar os paraísos fiscais, centros principais de especulação, punindo os traficantes e os especuladores financeiros e voltando aos valores éticos. Reforço do Estado, das instituições internacionais (começando pelas herdadas de Bretton Woods, o FMI e o Banco Mundial, que devem ser integradas na ONU, bem como a Organização Mundial do Comércio).
O multiculturalismo e o pluralismo ideológico e político, num mundo global e, portanto, multilateral, são fundamentais para podermos vencer a crise global, mediante um esforço de governação mundial, no quadro de uma ONU reestruturada e democratizada, única forma de fazer frente, com êxito, aos desafios também eles globais, com que estamos confrontados: a paz, as graves ameaças que pesam sobre a Terra, a criminalidade mundial, a fome, a droga, pandemias como a sida, etc. Marx está de volta? Ou Keynes? Em parte, sim, em virtude do fracasso estrondoso do neoliberalismo e da concepção hegemónica, unilatera- lista, do pensamento único da chamada democracia liberal, que os americanos sonharam impor ao mundo. Mas não para restabelecer o dogmatismo da cartilha marxista, na leitura que dela fizeram Lenine, Estaline ou Mao...
O socialismo democrático, que trouxe à Europa a paz - e os "30 gloriosos" anos de crescimento económico, em liberdade e bem-estar para todos -, foi de algum modo "colonizado" pelo neoliberalismo. Está hoje sem rumo e sem lideranças. É por isso que precisa de ser repensado - e está a sê-lo, por toda a esquerda europeia, social, sindical e partidária. Poderá ser uma luz ao fundo do túnel, para as nossas angústias, se houver diálogo, espírito de tolerância e de bom senso, entre todas as correntes que se reclamam da esquerda, moderada e radical.
3.Obama é sem dúvida uma esperança. E está a ganhar caminho todos os dias. Inscreve-se no "espírito do tempo". Que é a mudança. Não só pela sua vitória pessoal - que só por si representa uma revolução cultural na América -, mas pela vitória dos democratas no Congresso (muito provável, dadas as divisões dos republicanos) e pelas consequências que a dupla vitória tiver no Supremo Tribunal Federal...
Obama não é socialista. Mas é keynesiano e tem como referência Franklin Delano Roosevelt. Está confrontado com a pior crise de sempre. Quer trazer os soldados americanos de volta do Iraque, reformular a ONU, voltar ao pioneirismo americano, interessar-se pelo bem-estar de todos os americanos, saúde, educação, segurança social. E sobretudo ouvir e dialogar com as pessoas. Com os americanos e os outros. O que representa um virar de página. Eis o que significa uma revolução pacífica e democrática. Abre o caminho para um mundo, seguramente, melhor. O resto, dependerá do desenvolvimento da cidadania global. Obs: Divulgue-se.
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