segunda-feira

Problemas do século XXI - por Francisco Sarsfield Cabral -

Problemas do século XXI, in Público
Em 1994 um grupo de financeiros considerados super-inteligentes lançou em Nova York um fundo de alto risco. O Long Term Capital Management começou por gerar lucros fabulosos. E dois dos seus promotores, os académicos Robert Merton e Myron Scholes, partilharam em 1997 o Nobel da Economia.
Só que a ciência dos seus gestores não impediu que o LTCM tivesse em 1998 um prejuízo de 4,6 mil milhões de dólares. A Reserva Federal, comandada por outro mago da finança, Alan Greenspan, veio então salvar o que restava daquele fundo. Essa operação da Fed foi criticada por incentivar à irresponsabilidade na tomada de riscos. Um incentivo do mesmo Greenspan que ganhou fama baixando os juros para proteger as bolsas. E opondo-se à regulação dos novos produtos derivados, muitos dos quais depois se revelaram “tóxicos”. Agora Greenspan diz-se arrependido.
Nos Estados Unidos o sector financeiro só em parte é regulado – a parte da banca comercial. O shadow banking system (com lhe chama The Economist) cresceu brutalmente e quase sem regulação nas últimas décadas, envolvendo bancos de investimento, fundos de risco (hedge funds) e outras instituições financeiras.
Convém recordar estas coisas, agora que se fala na reforma do sistema financeiro, por vezes com demasiada pressa. É o caso de Sarkozy, pois a presidência francesa da UE acaba no fim do ano. Importa considerar sobretudo as ideias de quem conhece por dentro os mercados.
O caso mais célebre é o de George Soros. Mas há outros. Em 2005 saiu em França um pequeno livro, onde um homem de negócios, político e professor de Economia, Jean Peyrelevade, põe em causa o “capitalismo financeiro”. Traduzido e prefaciado por Alfredo Barroso, o livro acaba de sair em Portugal e ganha acrescido interesse porque a crise financeira veio dar razão a várias afirmações do autor (O Capitalismo Total, ed. Século XXI).
Não é preciso concordar com tudo o que Peyrelevade diz para apreciar este livro. Por exemplo, é enganadora a distinção radical que faz entre capitalismo financeiro e economia real, com o primeiro a dominar a segunda.
Toda a economia, incluindo a financeira, é real. No séc. XVIII os fisiocratas julgavam que só a agricultura produzia valor. Depois, com a revolução industrial, acrescentou-se a indústria. Para os regimes soviéticos só contava o produto material. Hoje, nas sociedades avançadas predominam os serviços, incluindo os financeiros. É tudo real.
Claro que na finança há muita coisa enganosa. Mas não são retirados do mercado medicamentos que, afinal, fazem mal? Ou não há electrodomésticos que se compram e depois não funcionam?
Dito isto, é inegável que o sector financeiro cresceu demasiado depressa e sem regras adequadas. O peso desse sector na bolsa americana passou de 5% em 1980 para 24% em 2007. E a vertigem do lucro fácil e rápido fez-se sentir sobretudo na área financeira.
Peyrelevade tem razão ao criticar a “utopia incoerente” dos adversários da globalização. Mas sublinha a grande questão do século XXI, a perda de força dos Estados nacionais frente a um poder económico global e anónimo. Sem enquadramento político da globalização, a democracia perde sentido, pois quem realmente manda não responde perante os cidadãos.
O autor deste livro também considera uma utopia a abolição do mercado. Mas aponta falhas na maneira como ele está agora organizado. Por exemplo, o capitalismo anglo-saxónico, que tem virtudes e conquistou terreno nas últimas décadas, assenta muito no mercado bolsista.
Ora a excessiva dependência das cotações bolsistas tem efeitos perversos, com os gestores a empenharem-se nos lucros trimestrais e não na saúde a longo prazo das empresas. Tanto mais que parte dos vencimentos dos gestores está ligada a essas cotações. Só que, acrescento eu, a ditadura do curto prazo também existe na politica democrática, com eleições cada quatro anos...
E há uma questão politicamente explosiva, que Peyrelevade aponta: a crescente vantagem do capital sobre o trabalho na repartição dos ganhos económicos. O que, graças ao êxito do capitalismo industrial nos primeiros três quartos do séc. XX, é um problema da classe média, para a qual passou a maioria do proletariado. A estagnação dos rendimentos da classe média é central na campanha eleitoral americana – é nela que estão os eleitores que contam.
Francisco Sarsfield Cabral Jornalista
Obs: Medite-se nesta reflexão, nas suas referências e nos eventuais ensinamentos que dela possamos retirar para a economia nacional. Enfim, mais uma boa prestação do Francisco. No fundo, andamos todos a querer saber como REGULAR a "besta" da globalização predatória (R. Falk) que se impôs ao mundo (desarticulando a vida dos Estados, fragmentando a vida das sociedades, escavacando algumas empresas, atomizando as pessoas). Regulá-la, desde que a humanizemos também...