segunda-feira

Bento XVI e as Nações Unidas - por Francisco Sarsfield Cabral -

Bento XVI e as Nações Unidas, in Público
O Papa Bento XVI apelou na Casa Branca ao recurso à diplomacia para resolver conflitos internacionais e pediu aos Estados Unidos que apoiassem a ONU. Essa posição foi defendida com maior ênfase ao discursar na ONU. Bento XVI denunciou o “paradoxo evidente de um consenso multilateral que continua em crise porque está subordinado às decisões de um pequeno número, quando os problemas mundiais exigem, da parte da comunidade internacional, intervenções sob a forma de acções comuns”.
Não são ideias do agrado da chamada “direita cristã” americana nem do Presidente Bush. Mas os Papas têm insistido nestas causas. Na sua mensagem para o Dia Mundial da Paz deste ano (1 de Janeiro) Bento XVI disse que “a força há-de ser sempre disciplinada pela lei”, mesmo “nas relações entre Estados soberanos”. E afirmou existirem normas jurídicas para o relacionamento entre as nações.
Em idêntica mensagem, sete anos antes, João Paulo II escreveu ser “necessária uma renovação do direito internacional e das instituições internacionais, que tenha o ponto de partida e critério fundamental de estruturação no primado do bem da humanidade e da pessoa humana sobre qualquer outra coisa.” Ainda antes, a constituição Gaudium et Spes do Concílio Vaticano II dizia que “as instituições internacionais, mundiais ou regionais, são beneméritas do género humano. Aparecem como as primeiras tentativas para lançar os fundamentos internacionais da inteira comunidade humana”.
Poderia citar muitos outros textos da Igreja Católica na mesma linha. Não são meros votos piedosos ou flores de retórica para abrilhantar discursos. Traduzem a convicção profunda de uma igreja que se proclama universal e por isso se preocupa com o bem comum mundial, sem confundir religião com política.
“As Nações Unidas, disse Bento XVI na sexta-feira, são uma instância privilegiada onde a Igreja se empenha por contribuir com a sua experiência de humanidade, desenvolvida ao longo de séculos entre diferentes povos e culturas”. E sabe-se como a diplomacia do Vaticano se caracteriza por um alto profissionalismo. Bento XVI fala a sério ao empenhar-se no reforço da ONU. Seria bom que os americanos ouvissem a sua voz, por muito que ela contrarie o unilateralismo e o desprezo pela ONU que é bandeira dos neoconservadores apoiantes de Bush.
Aliás, não começou com Bush a tendência para tomar posições unilaterais pelo simples facto de os EUA serem a única super-potência. Bill Clinton foi incapaz de traçar um novo papel para o seu país, uma vez terminada, e ganha, a guerra fria. “Libertou” o Kosovo bombardeando a Sérvia, sem mandato da ONU, e agora o mundo e sobretudo a Europa confrontam-se com os sarilhos decorrentes daquela independência unilateral. E os EUA só pagaram parte das quotas devidas à ONU após Clinton sair da Casa Branca.
As Nações Unidas foram uma criação dos americanos, numa altura em que o seu predomínio económico e militar no mundo era muito superior ao actual. No fim da segunda guerra mundial a maioria dos países beligerantes, incluindo os vencedores, estava de rastos. Ora a guerra não atingira território americano e tinha acabado aí com a depressão económica dos anos 30. E os EUA tinham então o monopólio da bomba atómica. No entanto, empenharam-se num grande projecto multilateral, a ONU. Mandava nessa época em Washington uma excepcional geração de políticos, conscientes de que o poderio americano não dispensava, no próprio interesse dos EUA, as organizações internacionais e a cooperação com os outros países (lembremos o Plano Marshall, por exemplo).
É fácil criticar a ONU, acusando-a de corrupção (que existe) ou de manter países ditatoriais em comissões ditas de defesa dos direitos humanos. Mas a maioria das falhas da ONU é da responsabilidade dos Estados membros, que devem reformá-la, não acabar com ela. Ora a urgente reforma das Nações Unidas só terá perspectivas de avançar quando a potência dominante liderar o processo de mudança. Até agora, isso não aconteceu. Com Bush e os “neo-cons” assistiu-se, mesmo, à tentativa de destruir esta peça imperfeita, mas indispensável, da cena mundial. Será que o próximo presidente americano meterá ombros à tarefa de reformar a ONU, como via necessária para um mundo menos selvático?
Francisco Sarsfield Cabral Jornalista
Obs: Publique-se, laicamente.