quarta-feira

O Criminoso de Colarinho Branco

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“Um histórico Preconceito com os pobres e a invisibilidade das ações favorecem os criminosos que agem no silêncio dos gabinetes.”
O termo White-collor crime surgiu na década de 30, com os estudos de Sutherland, visando desmoronar o castelo erguido em torno da idéia de que a criminalidade deriva em grande parte das pessoas provenientes das classes sociais menos favorecidas.
Sutherland dedicou atenção às características do agente criminoso e concluiu que o delito do colarinho branco é aquele realizado por pessoa de elevado status sócio-econômico, de respeitabilidade, no exercício de atividades empresariais, ocorrendo, quase sempre, uma violação de confiança.
Rodrigo Strini Franco¹, Delegado da Polícia federal no Estado de São Paulo, chama a atenção para uma conceituação mais ampla: “A evolução do direito penal econômico e seus diferenciados modelos culturais viriam a criar outras categorias para caracterizar realidades próximas, desde a expressão francesa droit pénal des affaires até as que são mais correntes no mundo anglo-saxônico: occupational crime, business crime ou corporate crime.”
Tem-se por certo que diversos autores contestaram o conceito dado por Sutherland, criando uma controvérsia em torno da definição que ainda hoje permanece em aberto. Mas, para utilidade prática na justiça penal, essa conceituação tem sido considerada.
Rodrigo Strini Franco sustenta que na formação social capitalista o direito (em especial, O Direito Penal) é a expressão legal do modo de produção. Por conseqüência, o autor concluiu que “o que se verifica atualmente é que as classes menos favorecidas sócio-economicamente é que acabam sendo atingidas pela malha do sistema penal; e os chamados criminosos do colarinho branco apenas aplaudem e assistem de camarote o massacre dos excluídos socialmente, posto que não são atingidos pelo sistema”.
Nessa linha de raciocínio, o sistema penal estaria para selecionar pessoas e não ações: seria o seu poder especialmente voltado para as pessoas provenientes de classes socialmente desfavoráveis. Constata-se, com efeito, que determinadas pessoas possuem uma certa “imunidade” frente ao sistema penal, que costuma conduzir-se por estereótipos recolhidos das características das pessoas marginalizadas e humildes.
Maria Lucia Karam² anota que “isolando, estigmatizando e ainda submetendo aqueles que seleciona ao inútil e desumano sofrimento da prisão, o sistema penal faz destes selecionados (marginalizados, humildes) pessoas mais desadaptadas ao convívio social e, conseqüentemente, mais aptas a cometer novos crimes e agressões à sociedade, funcionando, já por isso, como um alimentador da violência, o que faz da demanda de maior repressão penal uma atitude um tanto sadomasoquista”. A invisibilidade dos crimes de colarinho branco
Os crimes de colarinho branco não têm a mesma visibilidade dos crimes comuns, que os cidadãos presenciam nas ruas, nos locais públicos e que se manifestam de forma grotesca. Mais uma vez, a observação é de Rodrigo Strini Franco:
“A visibilidade da infração dos menos favorecidos é muito maior. A polícia atua em lugares de livre acesso(ruas, praças, supermercados, favelas, etc) e esses locais são em massa freqüentados pelas classes sociais menos favorecidas. É lógico que a aquisição da notícia da infração e, por conseqüência, do início do procedimento investigatório sobrevirá das condutas praticadas pelos miseráveis. Ao contrário, como membro de classe média e alta, passam a maior parte do tempo em lugares fechados, imunizados contra a atuação da polícia (casas, apartamentos, escritórios, clubes de elite, restaurantes e boates de luxo, automóveis privados), há muito mais probabilidade de serem os delitos mais miseráveis ‘vistos’ e registrado pela polícia, do que aqueles perpetuados pelas pessoas de posição mais elevada.”
A eleição dos criminosos
Sabe-se que o sistema penal faz uma seleção de criminosos. Ou seja, elege aqueles que, por um estereótipo, ajustam-se ao perfil dos criminosos idealizados pelo mundo capitalista. Jorge Figueiredo Dias³, expoente do Direito Penal português, diz que:
“respeito diferencial da privacidade condiciona igualmente o labor da polícia na recolha da prova e no esclarecimento do crime. Esta disponibilidade da polícia para respeitar diferencialmente a privacidade dos cidadãos é uma das mais importantes fontes de bias na construção de registros oficiais da criminalidade. Ela significa que a suspeita da polícia recai preferencialmente sobre uma pequena secção da população total, uma secção que – não é por acaso, nem incidentalmente – acontece ser a menos poderosa, e residir em áreas oficialmente designadas como de desorganização social.”
O jurista argentino Eugénio Raúl Zaffaroni criou a expressão “cara de prontuário”. Ou seja, há pessoas que, escolhidas pelo sistema, são, de pronto, identificadas como os responsáveis pelas condutas marginais que afetam a ordem social. Isso não é difícil de constatar. Basta tomar como exemplo as operações policiais conhecidas como blitzen, que se concentram nas áreas geralmente freqüentadas por indivíduos que formam as populações mais pobres ou menos assistidas.
Ali, realiza-se um verdadeiro espetáculo, onde o abuso não é raro; onde as garantias individuais são jogadas no lixo; onde a dignidade humana recebe a afronta dos agentes do Estado. Sem mandado judicial e detendo pessoas para submetê-las a corriqueira “averiguação dos seus antecedentes”, sem qualquer fundamentação que não seja a “cara de prontuário” estampada na face, são realizadas essas operações que não teriam o mesmo sucesso se fossem direcionadas para as classes média e alta, como observa o Delegado da Polícia Federal em São Paulo Rodrigo Strini Franco.
A mídia e os crimes de colarinho branco
Os meios de comunicação, sabe-se, formam o chamado controle social. E são exatamente esses meios de imprensa que estão a despertar uma nova consciência, dirigindo as suas atenções, também, para os crimes praticados fora dos olhos do povo, no recanto de gabinetes ou em lugares aparentemente insuspeitos.
A mídia não só está apontando fatos e pessoas, como realiza as suas próprias investigações. Não raramente, já oferece à polícia ou ao Ministério Público os elementos concretos para as providências do aparelho do Estado. Até para localizar fugitivos, a imprensa tem se mostrado mais habilidosa. Nesta linha, não é exagero dizer que todos os fatos de repercussão no país, nos últimos anos, envolvendo figuras expressivas da sociedade, foram, antes, levantados pela imprensa. As autoridades chegaram depois.
As razões da Imprensa
É evidente que a atividade policial e judicial hoje, em todo mundo de imprensa livre, passou a ser fonte geradora não só de notícias para a mídia. Jornais, rádios e televisão colocam no mercado o produto que o cliente quer consumir, porque, sabidamente, há uma enorme curiosidade do povo em torno de fatos que envolvam crimes, investigações e julgamentos. Associado a isso, o lucro milionário, proporcional ao público interessado.
A eleição pela mídia
Em que pese o importante papel que os meios de comunicação têm tido no apontamento de crimes praticados por pessoas fora do quadro de eleição do sistema, ou seja, os de colarinho branco, não se pode desconsiderar que a maior parte das atenções está, ainda, em cima dos crimes praticados pelos indivíduos estereotipados. E isso justifica-se por um fato: a principal fonte de informações da imprensa continua sendo a polícia. E esta tem os seus eleitos.
Alberto Silva Franco observa, nesta linha, que os meios de comunicação de massa obedecem a um processo seletivo na extração da informação a ser transmitida, de maneira que compõe uma realidade distorcida. Via de regra, a fonte dessa informação é a própria polícia e como ela toma conhecimento apenas de determinados delitos contra o patrimônio (furtos, roubos, certos estelionatos), a liberdade sexual (estupro, atentado violento ao pudor) e contra a vida e a saúde, além dos delitos por acidente de trânsito, a sua característica tende a ser a violência. A polícia, entretanto, muito raramente chega de forma direta ao que se relaciona com a propriedade, quando se trata de grandes estelionatos ou fraudes complexas, nem tampouco aos delitos contra a ordem sócio-econômica. Nas ruas que a polícia vigia, não se “acham tais fatos”, como explica Juan Bustos Ramirez4.
Isso, sem dúvida, distorce a realidade, na medida em que certos delitos de violência, mercê da seleção policial, sofrem um incremento bem maior em confronto com os demais.
Cria-se, assim, uma identificação de criminalidade com violência e, conseqüentemente, a adoção de um estereótipo criminal.
Valorização do crime – a importância atribuída pela autoridade policial
Mesmo quando a notícia do crime chega ao conhecimento da autoridade policial, a importância atribuída ao fato pode ser reduzida. Cláudia Cruz Santos5 chama a atenção para essa realidade, que leva a polícia a fazer uma escolha do que, efetivamente, merece ser investigado.
Para a autora, a complexidade das infrações, os custos da investigação e, sobretudo, a valoração feita pela própria autoridade quanto à menor gravidade da conduta são desincentivadoras de uma intervenção efetiva. “E é neste momento que funcionam os próprios preconceitos dos policiais: numa conjuntura de insuficiência dos recursos face ao número de casos a investigar, há que fazer escolhas; as representações dominantes sobre os crimes mais perniciosos para a comunidade e sobre os agentes mais perigosos levarão, na maioria dos casos, a um centrar das atenções nos crimes comuns que têm maior visibilidade”.
Nesse contexto, o que chega ao Ministério Público, para denúncia, e à autoridade judiciária, na forma de ação penal, nem sempre reflete o quadro real das ações criminosas. O Judiciário será delimitado pela “discricionariedade” da atuação policial. Figueiredo Dias, a propósito, escreve:
“Embora os estudiosos, os políticos, os juristas e os cidadãos em geral se envolvam em intérminos debates filosóficos sobre as formas que a justiça deve adoptar, o facto de a sociedade ter confiado a maior parte das suas funções de controlo social à polícia significa que é ela e mais ninguém que toma a maior parte das decisões políticas”.6
Augusto Thompson7, por sua vez, salienta que “submetendo o universo dos delitos ao crivo da visibilidade da infração, da influência do estereótipo do criminoso, das conseqüências da corrupção e da prevaricação, do emprego da violência, consegue a polícia separar com enorme eficácia, do ponto de vista do sistema, os delinqüentes a serem esmagados nas engrenagens da justiça”. Em síntese, segundo o autor, “é a polícia quem controla e comanda a atividade do judiciário, pois este só trabalha com o material concedido por aquela”.
O mundo privilegiado do criminosos de colarinho branco
Rodrigo Strini Franco chegou à conclusão de que o criminoso de colarinho branco possui um plus, um escudo, uma “imunidade” que o exclui do poderio penal. E explica: “Basta verificar a população carcerária para que se constate a origem social das pessoas que lá estão”.
Eugene V. Debs, em Walls and Bars, citado por Cláudia Santos8, escreveu:
“Quando se consegue fazer um estudo inteligente da prisão(...) é-se obrigado a concluir que afinal não é tanto o crime no seu sentido geral que é penalizado, mas antes que é a pobreza que é punida. Faça-se um censo da prisão média e concluir-se-á que uma larga maioria das pessoas está lá não tanto por causa do crime que alegadamente cometeu, mas por causa da sua pobreza e porque não tem dinheiro para pagar os seus serviços de advogados de primeira classe e influentes”.
Tratamento especial no julgamento
O criminoso do colarinho branco é privilegiado também no julgamento. Jorge Figueiredo Dias observa:
Muitos casos são, pois, os estereótipos correntes, a que os juízes não estão imunes, que decidem da verdade processual. Pode pôr-se – deve mesmo pôr-se – em dúvida a validade intrínseca duma prova determinada por estereótipos. Do que não pode duvidar-se é da força persuasiva dos estereótipos e da sua eficácia selectiva: eles operam claramente em beneficio das pessoas que exibem os estigmas da respeitabilidade dominante da associalidade e do crime.” 9
E diz mais o jurista português:
“Os argüidos das classes superiores e aqueles que usualmente com eles sustentam a mesma construção da realidade (as ‘suas’ testemunhas, os ‘seus’ declarantes etc) encontraram no tribunal um universo de linguagem, gestos, estilos de vida, tiques, temas de conversas nos intervalos de sessões, que é o seu próprio universo. As pessoas concretas que desempenham os papéis de juiz ou de ministério público são personagens do seu quotidiano, do seu bairro, dos seus restaurantes, dos seus círculos, os pais dos amigos dos seus filhos”.
No outro compasso, conclui o autor, estão as pessoas de baixo status social e econômico.A Linguagem já não corresponde ao linguajar dos juízes e acaba por não criar a necessária credibilidade na construção da realidade que submete à apreciação judicial.
Diferença na pena aplicada
A resposta do Judiciário, no que diz respeito à pena aplicada, também é diferente. A pena privativa de liberdade recai sobremaneira sobre indivíduos desafortunados. É aplicada sem hesitação. “O juiz geralmente tem a convicção de que para essa pessoa a melhor solução será a privação da liberdade e não outro mecanismo alternativo à prisão”, diz Rodrigo Strini Franco.
Jorge de Figueiredo Dias mostra que:
“diferentemente, os delinqüentes das classes médias e superiores, para além de, por via de regra, aparecerem em tribunal sem o fardo dos antecedentes criminais, serão considerados menos carecidos de tratamento ressocializador. (...) Quer dizer, é o mesmo estereótipo epidemiológico do crime que aponta a um delinqüente as celas de prisão e poupa a outros os seus custos. É, de resto, em nome de considerações de oportunidade ou de política criminal que a generalidade dos juízes só à custa de confessado mal-estar se vêem por vezes compelidos a aplicar a pena de prisão a algum delinqüente de ‘colarinho branco’”.10
Conclusão
Em conclusão, vê-se que o princípio constitucional da igualdade passa ao largo da relação pobre e rico, no que diz respeito à responsabilidade penal. E a questão está associada, primeiro, a aspectos culturais, históricos, que condicionaram o raciocínio a dar maior espaço às delinqüências rotineiras, ou àquelas praticadas por indivíduos sem a proteção da couraça da fortuna. De outro turno, a exigüidade de recursos exige das autoridades que investigam uma concentração de atenções nos crimes comuns, mais fáceis de alcançar, dando à sociedade uma resposta mais rápida. Neste particular, não é demasiado observar que são os crimes comuns que agridem, diretamente, os indivíduos (furto, estupro). Logo, as pessoas diretamente atingidas exigem reação imediata. Enquanto isso, os crimes de colarinho branco, que atingem a todos, mas sem personificação, não recebem a cobrança pontual dos cidadãos. E vão, por conta disso, proliferando no mundo.
Obs: Pedimos aqui desculpa por este linguajar-brasileiro, repleto de erros, mas o texto merece reflexão entre nós. Desde logo, porque este tipo de crime sofisticado e oculto, senão mesmo invisível, tem proliferado em Portugal (o caso BCP é disso um exemplo a meditar...), por outro lado a Justiça - e os meios e recursos de diversa ordem que lhe deveriam ser afectos, já desde o 25 de Abril, talvez não tenham sido os mais realistas aos problemas emergentes. E aqui o problema não é sectorial, mas transversal a toda a sociedade, paralisando-a.
Além da sensação de impunidade que graça neste tipo de crimes sofisticados de classe A, agravados pelos preconceitos (socio-culturais) da estutura policial e até por parte dos juízes, como sublinha no seu estudo Claudia Cruz Santos[link], a taxa de identificação e punição desses criminosos, que se saiba, é ainda insatisfatória.
Com tanta complexidade, biombos, esquinas e elevado grau de sofisticação dos crimes de colarinho branco - seria mais eficaz e interessante, creio, se a dona Fátima Campos Ferreira em vez de eleger o enunciado de programas no seu Pró & Contras - do tipo "Monarquia ou República" - que não passa dum anacronismo na sociedade portuguesa para meia dúzia de intelectuais se ouvirem - ela olhasse de frente para a realidade e tivesse o common sense de inscrever no seu agenda-setting os temas que são verdadeiramente problemáticos e urgentes discutir em Portugal - e que lesam uma grande parte da economia nacional.
Resta saber se ela, e a Direcção de Programas de RTP - querem...