Há duas espécies de autarcas: os que "sim" e os que "não"...
Como em tudo na vida, há sempre duas espécies de homens, mormente na esfera pública em que os interesses avultam e a ambição e desejo de enriquecimento rápido torna a natureza humana mais permeável às tentações desse vil metal que, por regra, incorrem em ilícitos penalizados pela lei. Apesar de em Portugal, como é sabido, a culpa tende a morrer solteira, razão por que certos autarcas em lugar de estarem na cadeia estão, simplesmente, no exercício de funções autárquicas. Este quarteto é, apenas, uma amostra conhecida do Portugal-profundo e miserável que temos, e, entre outras coisas, revela bem o funcionamento e capacidade do sistema judicial em Portugal, mormente no apuramento, celeridade e julgamento daquilo que podemos designar por crimes ligados ao universo complexo e oculto da corrupção política. Libertos do princípio republicano do limite de mandatos, os autarcas assumem um grau de poder pessoal que não deve comparar-se com o poder dos demais titulares de cargos públicos. De resto, a sua benevolência ou hostilidade pode beneficiar certa empresas ou grupo de empresários, mas também pode penalisar ou mesmo arruinar certos agentes sociais e económicos ou meros cidadãos. Esta dualidade é, por maioria de razão, aplicável à relação do poder das autarquias com os chamados "patos bravos", ou seja, os construtores civis, que hoje já não andam de mercedes com o palito na boca e com o cotovelo à janela enviando cuspidelas para a via pública enquanto estacionam à beira das obras. Hoje, tudo é mais sofisticado, porém existem certos procedimentos que ainda se mantém e que visam alimentar aquela dualidade que acima referimos. Na prática, basta atrasar certos pedidos de resposta para efeitos de licenciamentos de obras para que os custos financeiros das mesmas se demorem e arrastem no tempo, e sendo assim os custos disparam e tudo se transforma num tremendo pesadelo. A lentidão das respostas das autarquias constitui, desse modo, uma forma de manobra política e, ao mesmo tempo, uma marca do pior dos procedimentos corruptos que, infelizmente, algumas autarquias em Portugal ainda hoje praticam para "sacar" (ou extorquir, como se quiser ver o problema) dinheiro aos cidadãos, aos empresários que querem realizar as suas obras. Mas é óbvio que neste jogo há sempre contrapartidas para as autarquias, para os empresários e, por regra, quem fica penalisado é o próprio cidadão, por ser o elo mais fraco dessa cadeia de relações tão complexas quanto obscuras. Paralelamente, as pequenas autarquias ao gerirem "criteriosamente" a "caixa dos interesses e dos favores", estão a gerir o seu próprio futuro e a afastar cada vez mais do poder a oposição - por via da "compra de recursos" que lhes permita dilatar no tempo a sua permanência nesse mesmo poder. Por outro lado, a lógica da proporcionalidade do poder, que remonta a 1976 e foi uma conquista importante do PCP a fim de viabilizar a sua presença no poder autárquico e conferir uma garantia de democraticidade, já não têm o mesmo valor que há uma ou duas décadas. Pois é sabido que em certos casos a "oposição também se compra" a fim de viabilizar maiorias funcionais que permitam fazer aprovar as propostas votadas. O passivo deste sistema implica que os autarcas do chamado centrão (PS e PsD) têm de partilhar benesses perante a central sindical dos autarcas que é a Associação Nacional de Municípios. Tal implica que a partilha dos interesses e das benesses públicas observe uma lógica transpartidária e não uma lógica partidária ou mesmo sectária, como à partida se suporia. Veja-se o exemplo purificador (e singular) de Rui Rio quando este chegou à Câmara Municipal do Porto - onde hoje desempenha funções. Rio chegou e denunciou imediatamente as patranhas e a corrupção instalada na autarquia da 2ª maior cidade do País, meteu Pinto da Costa no seu devido sítio, cilindrou os compadrios, intensificou os processos judiciais, impediu que muitos oportunistas continuassem a enriquecer ávidamente gerando desigualdades sociais gritantes e criou hábitos, práticas e uma cultura de maior transparência política que hoje é muito positiva no clima de confiança geral na vida da cidade e na sua relação com os seus agentes e forças vivas. Mas é óbvio que esta nova cultura de justiça e de transparência imposta por Rui Rio na cidade do Porto - desagradou a muita gente, os mesmos que dantes viviam sentados à mesa da gamela do orçamento da autarquia. Mas paralelamente a este tipo de corrupção mais dura - existe, diria, aquilo a que poderia chamar a corrupção soft, i.é, aquela que não envolve directamente ilícitos ou actos que violem gravemente a lei, mas que pressupõem esquemas de sedução pública e de efeitos de colagem a clubes de futebol, promessas mais ou menos estabelecidas entre eles, apoios cruzados entre massas associativas e certos agentes autárquicos e todo um conjunto de relações que visam estreitar esse tipo de relacionamento entre autarcas e agentes desportivos que, por força da natureza das coisas, envolvem as massas associativas desses clubes que, nos momentos eleitorais, acabam por ter alguma influência - directa ou indirecta - na eleição de determinados autarcas. Este tipo de relações acaba por desvirtuar a democracia pluralista e o rule of law... Ora, esta relação de sedução semi-pública, em inúmeros casos acentuada com permanência em programas de carácter desportivos que contam com a presença de certos autarcas que comentam o fenómeno desportivo de forma sistemática, deveria ser revista pelo legislador em nome do chamado interesse público (maior) que deveria ser acautelado. Permitir a situação que hoje existe é um convite à eventual promiscuidade entre agentes políticos locais e agentes desportivos no habitual trade-of entre esses dois mundos que hoje se fundiu nessa perversidade que responde pelo nome de "futebolítica". De resto, e já que a Associação Nacional de Municípios deseja a transparência, deveria começar, desde já, por dar o exemplo e assegurar a defesa dos autarcas - independentemente da sua filiação partidária - que passaria, naturalmente, por evitar que esses agentes políticos se possam passear (e autopromover) de forma sistemática por programas públicos de tipo exclusivamente desportivo - sem que daí resulte um comentário desportivo especializado e qualificado mas, perversamente, se enraize um tipo de relacionamento entre certos autarcas e certos clubes de futebol tendente ao reforço dos interesses mútuos que nesse perigoso e promíscuo jogo de sedução político se estabelece. Um jogo sempre obscuro e que, por regra, lesa o interesse público, baralha o já cego Tribunal de Contas, não valoriza a verdade desportiva e apenas dá azo a que um grupo de pessoas vaidosas, arrogantes e egocêntricas se aproveite abusivamente dos contactos mediáticos de que dispõem para inflacionar a sua notoriedade e conquistar o poder autárquico em Portugal ou, em certos casos, reforçar as condições objectivas para o seu reforço no quadro da sua manutenção no poder. Se a Lei não olhar para este tipo cruzado de interesses promíscuos entre alguns agentes do poder local/autarcas e alguns agentes desportivos (lato sensu) será a sociedade, no seu conjunto, que deverá censurar este tipo de práticas e de aproveitamentos manhosos que o Poder local vai registando em Portugal sem que daí resulte algum benefício acrescido para os munícipes das vilas e cidades deste nosso querido Portugal. Até que esta censura social se estabeleça entre nós como prática saudável, continuará a haver sempre pequenos políticos oportunistas que farão dessa parasitagem do fenómeno ligado à futebolítica um meio de singrarem na política (local e nacional), e enquanto estes esquemas sociais perversos forem permitidos entre nós o paraquedismo político em certas autarquias continuará, lamentavelmente, a ser uma triste realidade.
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