sexta-feira

DETALHES - por António Vitorino -

DETALHES [link] António Vitorino
jurista
Os europeus normalmente recusam reconhecer que a vida política americana tem sempre grande impacto no Velho Continente.
Mas basta atentar na projecção da corrente campanha eleitoral nos EUA para verificar como as opiniões públicas europeias seguem atentamente o que se passa do outro lado do Atlântico.
Com efeito, desde há várias décadas a política americana tem sido um laboratório de inovação que antecipa tendências que, mais cedo ou mais tarde, acabam por assentar arraiais na Europa.
Por isso, muitos especialistas europeus em eleições e campanhas eleitorais, além de responsáveis partidários, seguem de perto a conduta dos partidos e candidatos americanos.
Ora um dos aspectos em que os padrões americanos não têm tido sequência directa na generalidade dos países europeus diz respeito à correspondência dos padrões de conduta privada dos políticos e sua projecção na vida pública.
As últimas semanas têm sido férteis em exemplos.
Tudo começou com a demissão do governador do estado de Nova Iorque: um político oriundo da vida judiciária, eleito com base numa campanha de moralização da sociedade, que era frequentador de uma rede de prostituição. O seu substituto, o vice-governador que foi promovido na sequência da demissão daquele, veio logo a público (com a mulher) divulgar que no passado, no decurso de uma crise conjugal, ambos haviam cometido adultério, mas no seu entendimento tal facto, agora confessado, não o impediria de exercer o cargo a que acabara de aceder.
Estes dois casos revelam formas distintas de assumir a projecção da vida privada na assumpção de responsabilidades públicas. Independentemente das diferenças entre os dois, o ponto comum é o de que em ambos os casos o juízo de carácter sobre os titulares de cargos públicos abrange a sua esfera privada.
Esta cultura política de escrutínio exaustivo da vida privada, naquilo que ela tem de mais íntimo, felizmente que não se encontra (ainda) presente na vida política europeia, com excepção da imprensa tablóide britânica, embora aqui sem o impacto e a projecção colectiva que tem nos Estados Unidos.
O mesmo, contudo, já não se verifica quanto à situação fiscal dos candidatos. Esta semana, Barack Obama divulgou os seus rendimentos e responsabilidades fiscais nos últimos seis anos, desafiando Hillary Clinton a proceder da mesma forma. Na Europa, de igual modo, o perfil contribuinte dos titulares de cargos públicos tem vindo a acompanhar de perto a evolução americana, sendo hoje claramente um elemento relevante de valoração de candidatos e de políticos em exercício de funções. No seu conjunto pode-se dizer que a vida privada dos políticos releva dos dois lados do Atlântico, diferindo contudo a fasquia do escrutínio público quanto ao âmbito das matérias desse foro privado que relevam para o julgamento dos eleitores.
Esta diferença corresponde também a uma distinta valoração que americanos e europeus fazem dos políticos. Na realidade, de um modo geral, pode-se dizer que a opinião pública americana tem os seus políticos em melhor conta do que os europeus têm os seus. Por isso, a exigência de exemplaridade na conduta dos políticos é mais ampla entre os americanos do que entre os europeus.
Só que nos Estados Unidos essa exigência leva os políticos, por vezes, a pretenderem elevar-se à categoria de heróis. Esta semana a senhora Clinton foi vítima desse excesso de zelo, ao apresentar-se como um modelo de virtudes ao desembarcar em Sarajevo debaixo de fogo de atiradores furtivos no final dos anos 90. Logo de seguida as televisões mostraram imagens tranquilas de um desembarque com a filha bem longe do cenário dantesco que a candidata havia descrito, o que a obrigou a uma retractação pública. E, contudo, só quem não esteve de facto na Bósnia nesses tempos é que pode ignorar que o perigo dos atiradores furtivos era então bem real...
Por isso a visita da senhora Clinton foi um acto de coragem que ninguém pode negar. O que a perdeu foi o exagero e a vertigem da heroicidade. E aos heróis não se perdoa que falhem nos detalhes.
PS: É interessante ver como António Vitorino (AV) enquadra aqui uma reflexão sobre a história das ideias políticas e o modo de formação cultural que teve a sua génese na Revolução Americana, em 1776 - cujas correntes de pensamento assentaram uma década mais tarde no Velho Continente, mormente em França (País europeu de vanguarda) - donde depois inundaram os restantes países da Europa, quando, na prática, se esperava uma reflexão sobre a Lusofonia ou o estreitamente da cooperação entre Portugal e Moçambique.
Mas ainda bem, no que concerne ao puritanismo fundamentalista vigente na sociedade norte-americana - que exige dos seus agentes políticos condutas de heróis - que essa matriz cultural e comportamental não singrou nos países do Velho Continente. Doutro modo, muitos dos agentes políticos e titulares de cargos públicos, desde políticos a juízes, passando pela chamada alta administração, já teria sido demitida por quem ainda estivesse imaculado desses pecados da carne. Tais são os pecadilhos de origem sexual e conexos que - de forma mais ou menos genérica - afectam inúmeros agentes sociais e políticos, ainda que não se descubram, embora sejam inerentes à própria natureza humana.
Lembremo-nos do que sofreu (políticamente) Bill Clinton só porque teve um momento de fraqueza e pôs a srª Mónica Lewinski a fazer aquilo que, provavelmente, mais ninguém faria com ela. Lembremo-nos da conduta persecutória e execrável que o então Procurador teve para com Bill Clinton em nome dum puritanismo que, em termos privados, todos desrespeitam.
Ora, toda esta discussão, apesar de considerar que deve haver limites para tais práticas desviantes e que podem colidir com o chamado interesse público, evoca-me a conduta do Alipiosinho de Abranhos soberbamente descrito pelo melhor romance político de Eça de Queirós, ao ver nele um homem que pretendia ser deputado e ascender na vida social à conta do Desembargador Amado, mas em termos privados frequentava as meretrizes e quando chegava a casa emborcava na garrafa do gengibre.
Numa palavra: o fito era vender uma fórmula - moralidades públicas, vícios privados, e é de certo modo isso que hoje o puritanismo cínico e hipócrita vigente na sociedade norte-americana acaba, perversamente, por fomentar ao colocar a sociedade dentro desse colete de forças. Não será por essa via que os norte-americanos serão menos adúlteros, embora temam mais a Deus e ao destino...
De resto, AV perscruta eficientemente essa realidade sociológica e revela as suas contradições apesar de hoje já não haver heróis, e os que existem também se abatem por meras meretrizes de Sala oval que, em rigor, acabam por não o ser, embora tenha sido essa a imagem que procuraram dar ao mundo, porque sabiam que ao explorar nos media essa situação teriam a atenção da CNN sobre esse epifenómeno, escreveriam um livro sobre esse tipo de relações e, assim, acabariam por enfileirar na galeria das meretrizes mais oportunistas da história da Humanidade. E, com sorte, só em direitos de autor, poderiam ficar ricas..., e passar a ser convidada para dar entrevistas e, quiça, fazer até um programa de TV sobre a prostituição na alta roda...
Seja como fôr, a reflexão de António Vitorino não deixa de constituir simultaneamente uma peça de sociologia da cultura, da informação e da comunicação, além de um subsídio epistemológicamente interessante para o estudo da matriz da formação cultural e ideológica dos dois lados do Atlântico que acaba, bem ou mal, por ter consequências imediatas na vida e na conduta privada desses mesmos agentes políticos - hoje cada vez mais escrutinados ante o olho macroscópico dos media globais.
Se fizermos o pararelo desta matriz de avalição com a qualidade dos políticos em funções em Portugal atrevo-me a pensar, um pouco arriscadamente, que muitos deles - hoje na reserva - não se deixam seduzir pela política activa porque receiam que um desses escândalos possa eclodir nas suas vidas, e se assim for a Nação pode perder algumas políticas públicas de qualidade em benefício do silêncio de algumas escandaleiras de origem sexual (ou conexas) que assim fica no segredo dos deuses.
Afinal, o que é melhor: termos políticos bons mas com com alguns pecadilhos morais na penumbra, ou políticos medíocres (cheios de mundanismo, vida nocturna, montes de divórcios, trajectórias no Jet-set e afins) que nem bons políticos conseguem ser?!