O preço da boa consciência - p'lo Francisco -
O preço da boa consciência (in Público)
Entre nós, toda a gente condena a brutal ditadura da Birmânia. Já são discutíveis algumas indignações recentes contra alegadas falhas éticas na política externa portuguesa. Por causa de interesses económicos, por falta de coragem para enfrentar os poderosos ou por qualquer outro motivo menos nobre, estariam a ser postos em causa valores sagrados.
Até concordo com várias dessas críticas. Mas parecem-me superficiais certas condenações feitas em nome da ética. Nelas tem predominado um desagradável tom de superioridade moral: nós, os puros, não somos como os políticos, que abdicam cinicamente dos grandes princípios. Uma posição cómoda, pois quem tem que decidir são os políticos.
A vida não se compadece com simplismos. Um bom político não recorre a cartilhas para tomar decisões difíceis. Mário Soares foi muito atacado quando, um dia, referiu a hipótese de falar com terroristas. A verdade é que, em certas circunstâncias, o diálogo com terroristas pode abrir o caminho à paz, como aconteceu na Irlanda do Norte. Não há regras absolutas.
E não há porque estão quase sempre em causa diferentes valores, alguns deles incompatíveis entre si. O que implica ter de sacrificar algo de valioso para não perder outra coisa ainda mais importante. Por isso não servem as respostas simples, de mera escolha entre preto e branco. Uma decisão responsável – isto é, uma decisão realmente moral – exige ponderar múltiplos factores, numa perspectiva a longo prazo. Envolvendo, claro, o risco de errar, pois na vida há um alto grau de contingência e de imprevisibilidade.
Já se tornou lugar comum, mas é útil lembrar a distinção, formulada há um século por Max Weber, entre ética de convicção (absolutizando os princípios, a aplicar inflexivelmente, sejam quais forem as consequências) e ética de responsabilidade (que obriga a considerar as previsíveis consequências dos actos, na situação concreta em causa).
O político guia-se pela ética de responsabilidade. Como escreveu J. Manuel Fernandes a propósito dos problemas suscitados pelo novo Código do Processo Penal, “os legisladores, quando fazem uma lei, devem actuar com prudência e perceber se essa lei é aplicável de forma razoável”.
Recorde-se o veto presidencial à lei, aprovada no Parlamento por unanimidade, sobre a responsabilidade do Estado e dos seus agentes por prejuízos causados aos cidadãos. O prof. L. Campos e Cunha indicou aqui, no passado dia 14, várias consequências nefastas dessa lei, se ela entrasse em vigor tal como está redigida. Consequências muito para além de uma maior despesa pública com indemnizações (a rasteira preocupação com os gastos do Estado foi apresentada por alguns críticos como a grande motivação do veto presidencial).
Não medindo as consequências práticas do que aprovaram e tendo valorizado apenas a obrigação (irrecusável) de o Estado compensar quem prejudicou, os deputados foram irresponsáveis. Nessa medida, tratou-se de uma decisão imoral, por muito que os críticos do veto tomassem a posição de guardiões da moralidade.
Do mesmo modo, para serem sérios, os reparos a posições (ou falta de posição) da política externa portuguesa não devem reflectir apenas a gratificante sensação de contrapor a nossa boa consciência ao sujar das mãos própria dos políticos. Seria uma boa consciência a preço demasiado barato.
Importa, sim, mostrar as consequências negativas de certas atitudes. Por exemplo, foi contraproducente o apoio americano a ditadores anti-comunistas durante a guerra fria. Para evitar o comunismo no imediato, descredibilizou-se a democracia pluralista de que os Estados Unidos se diziam campeões. Algo que os EUA tragicamente repetem, agora, com a falta de respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades no seu combate ao terrorismo.
Outro exemplo: convidar Mugabe para a cimeira UE-África poderá agradar a líderes africanos que apoiam o tirano do Zimbabwe, como J. Eduardo dos Santos. Não o convidar inviabiliza a cimeira. Mas convidá-lo será uma traição aos que em África lutam pela liberdade. Traição que eles não vão esquecer.
Os fins não justificam os meios. Não apenas no plano dos altos princípios, mas sobretudo porque o emprego de certos meios (como fechar os olhos a violações aos direitos humanos) acaba por perverter os fins. A política não precisa de moralismos. Precisa, sim, de moral autêntica.
Francisco Sarsfield Cabral
Jornalista Obs: Publique-se pelo valor ético e moral que mais este artigo do Francisco comporta, lição para todos nós.
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